Íntegra
do Acórdão
Ocultar
Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.Recomenda-se acessar o PDF assinado.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 052.764-2 (OE), DA COMARCA DE CURITIBA AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ INTERESSADO: MUNICÍPIO DE CURITIBA CURADOR: PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO REL. CONV.: DES. ANTÔNIO MARTELOZZO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARTE FINAL DO INCISO XV DO ART. 11 DA LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE CURITIBA DECRETOS MUNICIPAIS 696/95 E 759/95 1) MUNICÍPIO QUE LEGISLA ACERCA DAS REGRAS DE TRÂNSITO VIOLAÇÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EXCLUSIVA DA UNIÃO AFRONTA AO PRINCÍPIO FEDERATIVO INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1º, I, 15 E 16 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL 2) POLICIAMENTO DAS VIAS URBANAS VIOLAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO ESTADO DO PARANÁ PARA EXERCER PODER DE POLÍCIA SOBRE O TRÂNSITO ATIVIDADE QUE CABE À POLÍCIA MILITAR AFRONTA AO ART. 48 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL 3) DELEGAÇÃO DE ATIVIDADE TÍPICA DE ESTADO PARA ENTIDADE PRIVADA, IN CASU, A URBS, SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE E DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I - VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 052.764-2 (OE), do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, em que é autor o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, interessado o MUNICÍPIO DE CURITIBA e curadora a PROCURADORIA GERAL DO ESTADO.
ACORDAM os Senhores Desembargadores integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em julgar procedente a Adin, com atribuição do efeito ex nunc (a partir da publicação); por maioria, vencidos quanto ao efeito os Senhores Desembargadores Luiz Lopes e Carlos Mansur Arida. Trata-se a presente de Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de liminar, ajuizada em 10.10.1996, pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, Dr. Olympio de Sá Sotto Maior Neto, objetivando a declaração de inconstitucionalidade do art. 11, inciso XV, parte final, da Lei Orgânica do Município de Curitiba, e dos Decretos Municipais n.os 696/95 e 759/95, editados pelo então prefeito Sr. Rafael Greca de Macedo.
Tais decretos, editados com fulcro no mencionado artigo da Lei Orgânica do Município, disciplinam o trânsito nas vias exclusivas para ônibus, impedindo que ciclistas, skatistas e patinadores transitem por elas, e autorizando à URBS Urbanização de Curitiba - a remoção e depósito dos veículos, assim como a aplicação e cobrança de multa.
Alega o autor, na inicial, que tanto os Decretos Municipais, quanto o referido dispositivo da Lei Orgânica violam os artigos 15, 16 e 48 da Constituição do Estado do Paraná. Seus argumentos subsumem-se ao seguinte:
1) O Município, ao se compreender competente para legislar sobre infrações de trânsito "instituindo penalidades e dispondo sobre a arrecadação das mesmas", invadiu competência legislativa da União, desrespeitando o princípio federativo, presente nos artigos 15 e 16 da Carta Paranaense. Essa tese faz, também, remissão ao art. 22, XI, da Constituição Federal.
2) A Administração Municipal, ao delegar à URBS, mediante os mencionados decretos, o poder de fiscalização da lei, assim
como a aplicação de penalidades, pratica ato eivado de inconstitucionalidade, ao afrontar o art. 48 da Constituição Estadual, que delega tal competência à Polícia Militar do Estado. Evoca, ademais, o art. 37, IV, da Lei Estadual nº 6.774/76, que dispõe sobre as atribuições do Batalhão de Polícia de Trânsito.
3) Há dispositivos infraconstitucionais, encartados no Código Nacional de Trânsito, cuja interpretação corrobora a tese de inconstitucionalidade em discussão, assim como revela erros de conceituação em ditos Decretos. Seriam de interesse, à questão, os artigos 57 e 105 do Código Nacional de Trânsito, em vigor à época.
Por fim, requereu a concessão de liminar, a fim de que fossem suspensos os efeitos dos dispositivos legais em questão.
Às fls. 214/224, o relator concedeu a liminar, suspendendo a eficácia do art. 11, XV, da LOMC e dos Decretos Municipais nº. 696/95 e nº. 759/95, o que foi posteriormente confirmado pelo colegiado do Órgão Especial, às fls. 276/280.
O Sr. Prefeito prestou informações às fls. 233/254, sustentando a autonomia municipal para "legislar e promover ordenamento territorial mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano", nos termos do art. 30, VIII, da Constituição Federal. Afirmou, também, que a edição dos Decretos Municipais 696 e 759 não feriram competência exclusiva da União, enfatizando que a "circulação de bicicletas, skates e rollers pelas canaletas vêm causando transtornos ao tráfego dos ônibus de transporte coletivo".
Sustentou, ademais, que "se é dado ao Município regulamentar o uso das vias sob sua jurisdição, por óbvio, igualmente sobra- lhe competência para prescrever sanções". Neste sentido, argumentou que a Administração Pública detém poder de proceder à execução forçada dos atos administrativos, e que seria "embaraçoso" se não pudesse coagir.
O representante do Parquet manifestou-se à fl. 270, pugnando pela procedência do pedido, nos exatos termos da fundamentação invocada na inicial.
Sobreveio a decisão colegiada de fls. 296/304, que, revogando a liminar, afastou as alegações de inconstitucionalidade do inciso XV do art. 11 da Lei Orgânica do Município de Curitiba e dos Decretos Municipais 696/95 e 759/95, fundamentando sua decisão em exegese do art.
22 da Constituição Federal, em leis infraconstitucionais (Código Nacional de Trânsito, especialmente, o art. 21, V) e em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário (fls. 308/319), pugnando pela declaração de inconstitucionalidade das normas em questão, frente aos artigos 22, XI; 23, XII e 30, I e II, todos da Constituição Federal.
O Município de Curitiba ofereceu contrarrazões de recurso, às fls. 327/340, reiterando os argumentos de fls. 233/254.
O recurso foi admitido pelo Presidente desta Corte, (fls. 342/344).
Em seu parecer, o Subprocurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro, opinou pelo parcial conhecimento do recurso para o fim de anular o acórdão impugnado, extinguindo o processo sem o julgamento do mérito, sob o fundamento de que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná carece de competência para julgar inconstitucionalidade de norma municipal em face da Constituição Federal. No mérito, opinou pelo provimento do recurso.
Às fls. 366, o relator do Recurso Extraordinário, Ministro Dias Tóffoli, em 03/12/2009, determinou a intimação do recorrente, para que manifestasse interesse no prosseguimento da causa, assim como para que as partes esclarecessem se a legislação objeto do recurso ainda se achava em vigor.
O Ministério Público manifestou-se às fls. 371/372, informando que as normas seguiam em vigor, requerendo o prosseguimento do processo.
Ato contínuo, o Ministro Relator, em decisão monocrática, datada de 16/03/2010, anulou o acórdão recorrido, determinando o retorno dos autos a este Tribunal "para que o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade fosse realizado nos limites da Constituição Estadual".
O relator designado, Des. Mendonça de Anunciação, determinou a intimação da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, para que atuasse como curadora. Em sua manifestação, a Procuradoria-Geral do Estado colacionou decisão do Superior Tribunal de Justiça, opinando pela impossibilidade de que sociedade de economia mista (URBS) possa aplicar sanção pecuniária.
Por sua vez, o representante do Ministério Público, Subprocurador-Geral de Justiça Dr. Lineu Walter Kirchner, manifestou-se às fls. 450/466, informando que o parecer de mérito já fora apresentado às fls. 285/287, ratificando o petitório liminar.
Sem embargo, ressaltou que os dispositivos constitucionais violados estão expressos na inicial, quais sejam, arts. 15, 16 e 48, todos da Constituição Estadual, assim como o art. 1ª, I, que, apesar de não mencionado, também pertine ao caso. Sublinha que, ao interpretar as mencionadas normas constitucionais, conclui-se haver ofensa ao princípio federativo, mormente quando analisadas em conjunto com o art. 22, XI, da Constituição Federal.
Teceu comentários acerca da expressão "interesse local", contida no art. 30, I, da Carta Magna, aduzindo que "em relação ao trânsito, não tem a amplitude e o alcance defendidos pelo legislador municipal".
Ressaltou não ser competência do Município os atos de fiscalizar e aplicar sanções para infrações de trânsito, muito menos "por intermédio de empregados de uma sociedade de economia mista, como o faz através da URBS".
Por fim, ratificando o que fora postulado na peça preambular, requereu a declaração de inconstitucionalidade da parte final do art. 11, XV, da LOMC e dos Decretos Municipais 696/95 e 759/95.
Intimado a se manifestar (fl. 474), o Município, ratificando o pedido de improcedência do pedido, requereu a intimação da URBS, para que se manifestasse nos autos, o que não foi deferido. É o relatório.
II O VOTO E SEUS FUNDAMENTOS
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelo Sr. Procurador-Geral de Justiça, em face do art. 11, XV, parte final, da Lei Orgânica do Município de Curitiba (LOMC), que trata da competência municipal para instituir penalidades de trânsito e dispor sobre a arrecadação das multas, e dos Decretos Municipais nos. 696/1995 e 759/95, que autorizam à URBS recolher bicicletas e outros veículos que circulem pelas vias expressas, exclusivas de ônibus, multando os infratores.
A presente ação é procedente e, conseguintemente, devem ser declaradas inconstitucionais as referidas normas, pelos fundamentos a seguir expostos.
Inicialmente, no que concerne ao art. 11 da LOMC, é oportuno frisar que apenas a parte final de seu inciso XV é que se encontra em discussão:
Art. 11. Compete ao Município prover a tudo quanto respeita ao seu interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe, em especial: XV. Disciplinar o trânsito local, sinalizando as vias urbanas e estradas municipais, instituindo penalidades e dispondo sobre a arrecadação das multas, especialmente as relativas ao trânsito urbano.
O autor da ação delimitou adequadamente o pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma, requerendo apenas a supressão da parte final do dispositivo, que outorga ao Município competência para instituir penalidade de trânsito, dispondo sobre a arrecadação de multas.
1) VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO
Com efeito, sob qualquer ângulo de análise, conclui-se que tal dispositivo viola o princípio federativo encartado na Constituição do Estado do Paraná (CE), uma vez que invade a competência da União para legislar sobre matéria de trânsito.
O princípio federativo é basilar ao nosso contrato social e tem força normativa. Esse princípio base mesma do Estado Brasileiro ao repartir as competências entre os poderes (União, Estados e
Municípios), harmoniza-os e dota-os de autonomia. E como cláusula pétrea, vê-se encartado já no inciso I do art. 1º da Carta Estadual (em simetria ao art. 1º. da Constituição Federal):
Art. 1°. O Estado do Paraná, integrado de forma indissolúvel à República Federativa do Brasil, proclama e assegura o Estado democrático, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais, do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político e tem por princípios e objetivos: I - o respeito à unidade da Federação, a esta Constituição, à Constituição Federal e à inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais por ela estabelecidos.
Não obstante estar explícito no artigo transcrito, este princípio subjaz toda a redação da Constituição Estadual, permeando-a com seu espírito e orientando o sentido de vários outros dispositivos do mesmo diploma, tais como os artigos 15 e 16, por exemplo, apontados também pelo Procurador-Geral de Justiça, em sua inicial.
Pois bem, legislar sobre matéria de trânsito é competência privativa da União, por força do art. 22 da Constituição Federal:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XI - trânsito e transporte;
E o Município de Curitiba, ao outorgar competência para instituir penalidades de trânsito e dispor sobre suas multas, usurpou competência alheia, violando o princípio federativo. Por essa razão, deve ser declarada inconstitucional a parte final do referido inciso, com a supressão de seu texto.
Cabe, entretanto, um breve comentário acerca da competência dos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, outorgada pelo art. 17, I, da CE, fazendo eco ao art. 30, I, da CF, cuja aplicabilidade à hipótese fora aventada pelo Sr. Prefeito, em sua defesa.
Diga-se que a elaboração das regras gerais de trânsito - a instituição de normas, infrações e penalidades são de competência exclusiva da União e não podem ser confundidas com a disciplina do trânsito local de pessoas e veículos, em que se determina o tipo e sentido das vias, os lugares de estacionamento, parada, etc.
A disciplina do trânsito é de interesse local e compete ao Município efetuá-la. As regras de trânsito, suas infrações e sanções, competem à União.
Portanto, imperioso reconhecer que a parte final do inciso XV do art. 11 da LOMC, ao usurpar competência exclusiva da União, viola o princípio federativo, padecendo de vício de inconstitucionalidade. Em decorrência, o dispositivo é nulo.
Mencione-se que este Órgão Especial, em respeito ao princípio federativo, vem declarando a inconstitucionalidade de normas municipais que usurpam competência legislativa da União. Cite-se, como paradigma, o acórdão nº. 10638 (DJ 19/08/2010), de relatoria da Desª. Regina Afonso Portes:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - 1- PRELIMINAR - ALEGAÇÃO DE SE TRATAR DE LEI DE EFEITO CONCRETO - DETERMINADA CATEGORIA DA POPULAÇÃO COMO BENEFIFICÁRIOS - NÃO CARACTERIZAÇÃO - CARÊNCIA DE AÇÃO REJEITADA. - 2- MÉRITO - INCOMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA LEGISLAR SOBRE PROTEÇÃO À SAÚDE - INFRINGÊNCIA AO SISTEMA FEDERATIVO - AÇÃO PROCEDENTE. 1. Para a configuração de atos com efeitos concretos haveria necessidade de prévia individualização dos beneficiários, o que não ocorre na presente hipótese 2. A Lei atacada usurpa a competência legislativa de outros entes da federação, investindo contra o princípio federativo - (CE, art. 1º, inc I) e desbordando os limites previstos no art. 17, incs. I e II, da Carta Paranaense.
Por sua vez, os Decretos Municipais nº. 696/95 e nº. 759/95, editados pelo então prefeito Sr. Rafael Greca de Macedo, também desrespeitam o princípio federativo, usurpando a competência da União para legislar, visto terem como objetivo regular o trânsito, instituindo regras que não lhe competem.
2) VIOLAÇÃO DO ART. 48 DA CONSTITUIÇÃO ATIVIDADE QUE COMPETE À POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO PARANÁ Entretanto, como se verá, não somente a competência legislativa da União foi usurpada, mas também a competência administrativa do Estado do Paraná, na medida em que o poder de polícia de trânsito, que lhe é exclusivo, foi delegado pelo Município à URBS, violando-se o art. 48 de nossa Carta Estadual.
Para melhor comodidade da análise, transcrevam- se trechos dos Decretos:
DECRETO Nº 696/1995 Art. 1º - Os veículos encontrados em circulação ou estacionados nas canaletas e/ou vias exclusivas para ônibus, nos Terminais de Transporte ou nos pontos de parada ao longo das mesmas, serão removidos, apreendidos e retidos, em face da destinação restrita de uso definida no art. 1º do Decreto nº 584/93. Art. 3º - Competirá à URBS - URBANIZAÇÃO DE CURITIBA S.A., dada a sua qualidade de Gerenciadora do Transporte Coletivo de Passageiros de Curitiba (arts. 1º e 8º da Lei nº 7.556/90, através de sua estrutura organizacional, a fiscalização, o controle, a remoção, a apreensão e a retenção referidas no art. 1º supra. Art. 4º - Os veículos removidos, apreendidos e retidos serão depositados em local apropriado, sendo que a restituição far-se-á aos seus condutores à ocasião ou aos seus proprietários, mediante o pagamento de multa no valor equivalente a 1 (uma) Unidade Fiscal de Curitiba - UFC e demais despesas.
DECRETO Nº 759/1995 "Art. 1º - Fica aprovada a Norma de Execução URBS nº 01, de 1º de setembro do corrente, expedida pelo Presidente da Urbanização de
Curitiba S/A - URBS, parte integrante do presente decreto. ANEXO: NORMA DE EXECUÇÃO URBS Nº 01/95. O Presidente da URBS - Urbanização de Curitiba S.A, no uso das atribuições legais e tendo em vista o disposto no Decreto nº 696 de 28 de agosto de 1995, Resolve: Art. 1º - Constatada irregularidade pela utilização indevida dos locais de uso restrito de ônibus urbanos do Sistema de Transporte Coletivo de Passageiros de Curitiba, a que alude o Decreto nº 696 de 28 de agosto de 1995, os agentes fiscalizadores apreenderão o veículo e lavrarão Auto de Infração e Apreensão, previsto no Anexo desta. Art. 4º - Após o decurso do prazo supramencionado, a autoridade julgadora examinará auto-lavrado e considerando-o formalmente em ordem e procedente, aplicará ao infrator multa no valor equivalente a 01 Unidade Fiscal de Curitiba UFC".
Como se verifica, o art. 1º do Decreto nº. 696/95 constitui, deliberadamente, uma norma de trânsito. O art. 4º, por sua vez, dispõe acerca de penalidade a ser aplicada no caso de infração da regra. Tais normas usurpam, indubitavelmente, competência da União, violando o princípio federativo, tal como já dito anteriormente. Apenas isso seria suficiente para a declaração de inconstitucionalidade das normas, ensejando a sua nulidade.
Não obstante o art. 3º do referido édito municipal outorga à URBS a fiscalização e o controle da norma, assim como a remoção, a apreensão e a retenção dos veículos. No mesmo sentido, o Decreto nº. 759/95, ao aprovar a "norma de execução nº. 1", editada pela URBS, incorporou-a totalmente ao edito, passando a ter força cogente.
O notável é que tais normas são explicitamente de fiscalização do trânsito, julgamento de infrações em nível administrativo e aplicação de sanções. Há detalhes, inclusive, sobre como o auto de infração deve ser lavrado pelos "agentes fiscalizadores" (art. 1º da Norma de Execução) e "examinado pela autoridade julgadora", que também "aplicará ao infrator multa no valor equivalente a 01 Unidade Fiscal de Curitiba" (art. 4º da Norma de Execução).
Em outras palavras, a normativa emitida pelo presidente da empresa, que trata de verdadeiro poder de polícia de trânsito com normas de fiscalização, apreensão, sanção, etc. foi alçada ao nível de Decreto Municipal.
Entretanto, tais prerrogativas, mormente as de fiscalização, lavratura de autos de infração, apreensão de veículos e aplicação de multas, constituem verdadeiro poder de polícia, cuja competência é da Polícia da Militar do Estado do Paraná, nos termos do art. 48 da Constituição Estadual.
Art. 48: À Polícia Militar, força estadual, instituição permanente e regular, organizada com base na hierarquia e disciplina militares, cabe a polícia ostensiva, a preservação da ordem pública, a execução de atividades de defesa civil, prevenção e combate a incêndio, buscas, salvamentos e socorros públicos, o policiamento de trânsito urbano e rodoviário, de florestas e de mananciais, além de outras formas e funções definidas em lei.
Conclui-se, assim, que o policiamento do trânsito cabe, por força de norma constitucional, à Polícia Militar do Estado, mais especificamente, ao Batalhão de Trânsito (art. 39, III, da Lei Estadual nº. 16.575/2010, que sucedeu ao art. 37, IV, da Lei Estadual nº. 6.774/76).
Necessário, para entender todos os pontos da questão, explicitar que o Município pode e deve exercer atividade administrativa sobre o trânsito local, regulando a direção das vias (normas de circulação), a localização de semáforos e estacionamentos, etc. Poderia, inclusive, acerca dessas matérias, exercer poder de polícia, haja vista tratar- se de atividade administrativa. Entretanto, o policiamento ostensivo do trânsito urbano é este sim de competência exclusiva da Polícia Militar do Estado do Paraná.
Heraldo Garcia Vitta, aluno do mestre Celso Antônio Bandeira de Melo, em sua obra "Poder de Polícia", expõe quais os limites administrativos do Município:
"(...) poderá haver hipóteses em que a competência legislativa é de certa entidade política e a atividade material, ou administrativa, de outra. Por exemplo. Compete à União legislar a respeito de trânsito e transporte (art. 23, XI, da CF); adveio, pois, o Código de Trânsito Brasileiro, com âmbito de validade para todas entidades políticas. Já, os Municípios podem, observadas as normas da referida legislação, regular o trânsito em seu território, pode meio de "leis locais" e de "atos e atividades" de polícia de trânsito (determinação das direções das vias; os locais em que semáforos e placas serão apostos; etc.)" (in "Poder de Polícia". São Paulo: Ed. Malheiros, 2010).
Em suma, o Município não pode, por vedação constitucional, exercer o poder de polícia de trânsito respeitante às regras gerais de trânsito, salvo quando se trate de normas relativas ao trânsito local. Razão pela qual os decretos municipais inclusive a parte final do inciso XV do art. 11 da LOMC, caso sua interpretação seja extensiva são inconstitucionais. 3) VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE PODER DE POLÍCIA DE TRÂNSITO INDELEGABILIDADE DA ATIVIDADE À PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO E mesmo na hipótese de que o Município pudesse exercer tal poder de polícia de trânsito, tampouco seria possível delegá-lo à URBS, uma sociedade de economia mista, de personalidade jurídica de direito privado, que conta, inclusive, com acionistas passíveis de auferir lucro.
Acerca da impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares, Celso Antônio Bandeira de Melo ensina:
"Os atos jurídicos expressivos de poder público, de autoridade pública, e, portanto, de polícia administrativa, certamente não poderiam, ao menos em princípio e salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas, ser
delegados a particulares, ou ser por eles praticados. A restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros" ("Curso de Direito Administrativo", 25. ed., São Paulo: Malheiros Editora, 2007, p. 826).
Neste sentido, a URBS jamais terá competência para praticar atos típicos da Administração Pública, como o poder de polícia. Isso porque há que se respeitar os princípios encartados no art. 27 da Constituição Estadual:
"Art. 27. A administração pública direta, indireta e fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, eficiência, motivação, economicidade (...)":
Saliente-se, então, que o poder de polícia somente pode ser exercido com o fim de atender ao interesse público, em defesa da supremacia do interesse público sobre o particular, como apontou o doutrinador. Assim, a impessoalidade de tais atos públicos, sobretudo quando se fala em poder de polícia, é condição sine qua non para sua validade.
Como parâmetro, cite-se o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal que entendeu inconstitucional, em face da Carta Magna, a outorga de poder de polícia a particular. Embora se trate no presente caso, de controle de constitucionalidade estadual, há simetria na análise das hipóteses, estando em questão os mesmos princípios da impessoalidade e da supremacia do interesse público, que regem tanto a Constituição Federal quanto a Carta Estadual.
"DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS
PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime" (STF, ADIN 1717-DF, Rel. Min. Sydney Sanches, J. 07/11/2002).
Ademais, embora não se trate de acórdão proferido em sede de controle de constitucionalidade, é oportuno, também, citar julgado do Superior Tribunal de Justiça que decide pela impossibilidade de se delegar poder de polícia de trânsito à sociedade de economia mista, o que fortalece a tese de antijuridicidade constitucional das normas sob análise:
"ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e 24), na medida em que estes artigos tratam da
competência dos órgãos de trânsito. O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por consequência o cumprimento do requisito do prequestionamento. 2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista). 3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção. 4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção). 5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público. 6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro aplicação de multas para aumentar a arrecadação. 7. Recurso especial provido" (STJ - 2ª Turma, REsp nº. 817534-MG. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. J. 10/11/2009).
Portanto, considerando as normas, jurisprudência e doutrina analisadas, conclui-se que o Município de Curitiba, além de outorgar à URBS um poder que não detinha, não poderia tê-lo feito, haja vista tratar-se de atividade administrativa típica de Estado, indelegável, portanto, à entidade de caráter privado.
Ante o exposto, voto no sentido de declarar a inconstitucionalidade da parte final do inciso XV do art. 11 da Lei Orgânica do Município de Curitiba, suprimindo-lhe o texto, e do inteiro teor dos Decretos Municipais 696/95 e 759/95, posto violarem diversos princípios e normas da Constituição Estadual, notadamente os princípios federativo, da impessoalidade e da supremacia do interesse público sobre o privado, assim como, especificamente, os artigos 1º, I; 15; 16 e 48, todos deste diploma. III - Cumpre seja analisado se o caso posto comporta ou não modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, consoante dispõe a Lei específica.
Para que ela se dê, dois efeitos se apresentam como pressupostos materiais: razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
No particular, os decretos municipais mencionados e a Lei Orgânica do Município de Curitiba (esta invalidada apenas em parte), atingidos pela presente decisão, vinham há muitos anos produzindo efeitos, em razão de serviços prestados pelos agentes da Urbs.
A modulação dos efeitos impõe seja feita a partir da publicação do acórdão no órgão oficial do Judiciário, a fim de que sejam minoradas as consequências advindas da solução ora encontrada (os desembargadores Luiz Lopes e Carlos Mansur Arida conferiam efeito ex tunc; na oportunidade, fruto dos debates, ponderou-se para não se conferir referido efeito, o que importaria em retroagir à data em que os atos inválidos acabaram sendo praticados, o fato de o Município poder vir a ser responsabilizado e demandado, precisando arcar com recursos de que poderia prejudicá-lo, vez que o número de pessoas multadas, que tiveram veículos apreendidos, que chegaram a perder a carteira de habilitação etc, foi levado.
Também foi objeto de ponderação o fato de a Urbs haver prestado serviços de fiscalização.
ACORDAM os Senhores Desembargadores integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em julgar procedente a Adin, com atribuição do efeito ex nunc (a partir da publicação); por maioria, vencidos quanto ao efeito os Senhores Desembargadores Luiz Lopes e Carlos Mansur Arida.
Participaram do julgamento os eminentes Desembargadores MENDONÇA DE ANUNCIAÇÃO, Presidente em exercício com voto, ROSANA AMARA GIRARDI FACHIN, CARLOS MANSUR ARIDA, REGINA AFONSO PORTES, LUIZ OSÓRIO MORAES PANZA, GUILHERME LUIZ GOMES, SÉRGIO ARENHART, RAFAEL AUGUSTO CASSETARI, MIGUEL PESSOA, ADALBERTO JORGE XISTO PEREIRA, RUY CUNHA SOBRINHO, ROGÉRIO COELHO, RABELLO FILHO, PAULO CEZAR BELLIO, LÍDIO JOSÉ ROTOLI DE MACEDO, LUIZ LOPES, ANTÔNIO LOYOLA VIEIRA e JOSÉ AUGUSTO GOMES ANICETO.
Curitiba, 16 de setembro de 2011.
DES. ANTÔNIO MARTELOZZO Relator Convocado
|