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Acórdão
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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 769.703-4 - COMARCA DE ASSIS CHATEAUBRIAND VARA CRIMINAL E ANEXOS.
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. RECORRIDO : JOSIMEIRE BARNABE DOS SANTOS. RELATOR : DES. MARCUS VINÍCIUS DE LACERDA COSTA. RELATOR CONVOCADO : JUIZ ROGÉRIO ETZEL. Recurso em sentido estrito. Furto tentado. Inquérito policial. Homologação de prisão em flagrante. Decisão que relaxa a segregação e concede habeas corpus de ofício. Trancamento do inquérito. Juízo de prelibação positivo. Mérito procedente. Princípio da insignificância. Critérios para aplicação. Valor, reprovabilidade e periculosidade da conduta. Reconhecimento prematuro da atipicidade. Reincidência. Circunstância pessoal passível de análise. Decisão cassada. Fluência do inquérito policial. 1. O princípio da insignificância é amplamente acolhido tanto pela doutrina quando jurisprudência, sobretudo diante da falência do sistema penal brasileiro, abarrotado de investigações e processos. Sob um prisma de mínima intervenção estatal, parece clara a necessidade de afastar, desde o procedimento administrativo, as condutas que não tenham oferecido à sociedade substancial (ou qualquer) dano ou que sejam infimamente reprováveis. Em contrapartida, o princípio da lesividade erige-se nos momentos em que a atividade delitiva praticada em detrimento de outrem gere não só repulsa social, mas também achaquem a esfera patrimonial, seja ela pública ou privada. Este conflito de princípios, aliado a atual conjuntura do sistema penal nacional (falida, principalmente no sistema prisional), gera uma necessidade de, por muitas vezes, procurar o julgador desafogar o sistema, sendo uma das válvulas de escape a ausência de justa causa (que obsta a ação penal) fundada na atipicidade do delito, diante de uma ínfima e insignificante afronta a direito/patrimônio/incolumidade de outrem. 2. Vale-se para aplicar a bagatela da análise acurada das circunstâncias do delito, sua reprovabilidade social, o grau de lesão social/moral/patrimonial e a periculosidade da conduta. O valor da agressão não pode ser critério único para a configuração da atipicidade penal. 3. Para fins de aplicação da bagatela, as circunstâncias pessoais do agente podem ser levadas a efeito, desde que caracterizem reincidência, estando afastadas aquelas abarcadas pelo período depurados e as que manifestem maus antecedentes. Recurso conhecido e provido. Trata-se a espécie de recurso em sentido estrito interposto pelo Representante do Ministério Público do Estado do Paraná em face da decisão proferida pelo Douto Juízo a quo (fls. 59/62 v. TJ), onde restou relaxado o flagrante da recorrida Josemeire Barnabé dos Santos, bem como, ato contínuo, concedeu-se habeas corpus de ofício visando o
trancamento do inquérito policial, ante suposta ausência de justa causa.
Inconformado, o Parquet apresentou suas razões de recorrer (fls. 66/78) onde cindiu suas teses em: impossibilidade de reconhecimento do princípio da insignificância no momento da comunicação do flagrante, sob o pressuposto de que sequer foram colhidas provas suficientes para a aplicabilidade de tal princípio; o trancamento do inquérito policial preveria requisição expressa do Ministério Público, sob pena de afrontar o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal.
Ao final, pugnou pelo conhecimento e provimento do apelo, no sentido de reformar a decisão hostilizada.
A recorrida Josimeire Barnabé dos Santos, contra arrazoou o apelo, (fls. 82/89) pugnando pelo não provimento das arguições neste aduzidas.
Vieram os autos a este Tribunal de Justiça (fl. 90)
Nesta instância, a douta Procuradoria Geral de Justiça emitiu parecer de fls. 100/105, onde opinou pelo conhecimento e provimento do recurso.
Por força de substituição, os autos foram conclusos à esta Relatoria. É o relatório.
Segundo a classificação tradicional dos requisitos de admissibilidade dos recursos penais, este preenche os pressupostos objetivos (cabimento, adequação, tempestividade, regularidade procedimental e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer) e subjetivos (interessem em recorrer, - falando alguns em sucumbência -, e, legitimação dos recursos).
Da detida análise dos autos, em confronto com a r. decisão, razões, contrarrazões recursais e parecer da d. Procuradoria de Justiça, tenho que o apelo está a merecer provimento.
Primeiramente, atente-se que este Egrégio Tribunal de Justiça já se posicionou sobre situação semelhante, inclusive em questão advinda do mesmo Juízo e envolvendo tentativa de furto:
CRIMINAL. RECURSO CRIME EX OFFICIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE FURTO SIMPLES. ART. 155, CAPUT, E ART. 14, INC. II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL. RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE E CONCESSÃO DO WRIT PARA O TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. RECONHECIMENTO DA ATIPICIDADE DA CONDUTA, PELA INCIDÊNCIA DO "PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA". DECISÃO MOTIVADA TÃO- SOMENTE NA NÃO OFENSIVIDADE AO PATRIMÔNIO DA VÍTIMA FACE AO VALOR DA RES FURTIVA, MAS QUE IGNORA A PERICULOSIDADE SOCIAL DA AÇÃO. INDÍCIOS DE REITERAÇÃO DA CONDUTA EM FACE DA MESMA VÍTIMA E ATESTADA REINCIDÊNCIA DO AGENTE. INSIGNIFICÂNCIA AFASTADA. RETOMADA DO CURSO DO INQUÉRITO POLICIAL. RECURSO PROVIDO, EM REEXAME NECESSÁRIO.
(TJPR Rec. Crim. Ex Officio nº 757.162-2, da 3ª CCrim. Relª. Desª. Sônia Regina de Castro. J. em 14.07.2011)
Portanto, tendo como norte o excerto jurisprudencial, passo à análise da insurgência recursal.
De fato, não há discussão acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância, amplamente acolhido tanto pela doutrina quanto jurisprudência, sobretudo diante da falência do sistema penal brasileiro, abarrotado de investigações e processos. Sob um prisma de mínima intervenção estatal, parece clara a necessidade de afastar, desde o procedimento administrativo, as condutas que não tenham oferecido à sociedade substancial (ou qualquer) dano ou que sejam infimamente reprováveis.
Em contrapartida, o princípio da lesividade erige-se nos momentos em que a atividade delitiva praticada em detrimento de outrem gere não só repulsa social, mas também achaque a esfera patrimonial, seja ela pública ou privada.
Este conflito de princípios, aliado a atual conjuntura do sistema penal nacional (falida, principalmente no sistema prisional), gera uma necessidade de, por muitas vezes, procurar o julgador desafogar o sistema, sendo uma das válvulas de escape a ausência de justa causa (que obsta a ação penal) fundada na atipicidade do delito, diante de uma ínfima, insignificante, afronta a direito/patrimônio/incolumidade de outrem.
É este o caso dos autos. A recorrida, Josimeire Barnabé dos Santos, foi presa em flagrante delito porque, em tese, furtou um frasco de condicionador para cabelos (cf. fl. 10 IP). Ainda, o iter criminis por si percorrido sequer foi perfeito, pois frustrado o assenhoramento definitivo.
Tendo em mãos o flagrante, houve por bem a Il. Magistrada relaxá-lo e, ato contínuo, conceder habeas corpus de ofício para trancar o inquérito policial, sob o pressuposto de que a conduta da recorrida não detinha potencialidade lesiva suficiente (e relevante) a ensejar a provocação da máquina estatal.
No entanto, apesar desta Relatoria concordar com a atitude da nobre Julgadora, entende que o princípio da insignificância tem aplicação adstrita à situação concreta, munido de substratos fáticos devidamente perquiridos, minimamente, em procedimento administrativo.
Não se pode condicionar a bagatela tão somente ao valor pecuniário da lesão. Seguindo o entendimento do Excelso Supremo Tribunal Federal, tem-se que a aplicabilidade ou não do princípio da insignificância deve ser analisada sob uma perspectiva global, que leve em consideração, além da ínfima lesão ao bem jurídico, o grau de reprovabilidade da ação e a periculosidade que representa para toda a sociedade.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm reconhecido a tese de que tal princípio é um instrumento de interpretação restritiva, por intermédio do qual se alcança "a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que embora formalmente típicas não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal" (Carlos
Vico MANÃS, O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, Saraiva, 1994, p. 58).
Ademais, para a aplicação de tal princípio deve ser analisado não somente o valor da res furtiva, mas, também, as circunstâncias do delito e o desvalor da conduta do agente.
Acerca do princípio da insignificância, já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:
"O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público" (Habeas Corpus nº 84.412/SP, Segunda Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/11/2004).
Demais disso, apesar de a Il. Magistrada citar excerto jurisprudencial que afasta da análise o caráter pessoal do agente para fins de aplicação da bagatela, o Excelso Pretório
posicionou-se (em maio de 2011) no sentido de valorar negativamente a reincidência penal (somente decisões transitadas em julgado):
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. MATÉRIA CRIMINAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DA MATÉRIA CONSTITUCIONAL. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 279. HIPÓTESE DE CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS DE OFÍCIO. INVIABILIDADE. FURTO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. REINCIDÊNCIA COMPROVADA. Ausência de prequestionamento. Questão não ventilada no acórdão recorrido e que não foi suscitada em embargos de declaração. Óbice previsto pelos enunciados das Súmulas 282 e 356/STF. As razões recursais trazem questões constitucionais cuja análise implica reexame dos fatos e provas que fundamentaram as conclusões da decisão recorrida, o que é vedado pela Súmula 279 desta Corte. Reconhecida a reincidência, a reprovabilidade do comportamento do agente é significativamente agravada, sendo suficiente para inviabilizar a incidência do princípio da insignificância. Precedentes. Ausência dos requisitos para a concessão da ordem de habeas corpus de ofício. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 600500 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 24/05/2011, DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-06-2011 EMENT VOL-02538-02 PP- 00258)
Tendo em vista que o inquérito policial, até seu trancamento, denotava indícios suficientes de autoria e provas de materialidade, não há que se falar em aplicação da
bagatela tão precocemente, sem que o mínimo de provas colhidas enseje, porventura, seu reconhecimento posterior.
Adverte-se que o presente voto não irá abordar a questão da aplicabilidade ou não da bagatela à recorrida, já que tal análise implicaria em supressão de instância. Mas tão somente infere-se que o momento (sequer processual) procedimental de homologação do flagrante é, no caso dos autos, prematuro para o afastamento da justa causa (mormente porque esta ainda será auferida para que se oferte uma eventual denúncia) em razão de uma atipicidade.
Ademais, conforme pregam o Superior Tribunal de Justiça e esta Egrégia Corte, o trancamento do inquérito policial é medida excepcional:
PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. CONTRABANDO. DESCAMINHO. TRIBUTO INCIDENTE SUPERIOR AO PATAMAR FIXADO PARA O CANCELAMENTO DO CRÉDITO FISCAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. INAPLICABILIDADE. O trancamento do inquérito policial pela via do habeas corpus representa medida excepcional, admissível tão-somente quando evidenciada, de pronto, a atipicidade dos fatos investigados ou a impossibilidade de a autoria ser imputada ao indiciado. O princípio da insignificância não se aplica aos casos em que o crime de contrabando ou descaminho envolve mercadoria cujo tributo incidente supere o valor legalmente fixado para o cancelamento do crédito fiscal. Ordem denegada. (HC 66.308/SP, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG),
SEXTA TURMA, julgado em 21/02/2008, DJe 10/03/2008)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO QUE INDEFERIU A ORDEM DE HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO. CARÁTER EXCEPCIONALNÃO DEMONSTRADO. RECURSO NÃO PROVIDO. - "Conforme sedimentada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o trancamento de ação penal e, sobretudo, de inquérito policial, como no caso, é excepcional, só se justificando quando ausentes indícios mínimos de autoria e materialidade, ou quando extinta a punibilidade." (STF - RHC 96093, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma. Publ. 13.11.2009). - Havendo elementos indicativos de que o recorrente Gilberto Ioshiaqui Hamamoto teve algum envolvimento com os fatos noticiados, é de rigor que seja procedido o inquérito policial a fim de que se apure sua eventual responsabilidade pelas lesões corporais causadas em Suzana Rodrigues do Nascimento, sem que, com isso, reste caracterizado constrangimento ilegal. (...) (TJPR Rec. Sent. Estr. nº 650.162-2, da 1ª CCrim. Rel. Des. Luiz Osório Moraes Panza. j. em 21.10.2010).
Logo, a cassação da decisão monocrática é medida que se impõe.
Adverte-se para o fato de que a recorrida Josemeire Barnabé dos Santos ainda foi surpreendida portando substância entorpecente (cf. fl. 10 IP), a qual foi submetida a auto de constatação (fl. 14), mas não incluída nem na descrição do flagrante nem no relatório da autoridade policial e que pode ser
objeto de análise do Ministério Público, por se tratar de ilícito (seja uso ou tráfico) que não pode ser ignorado pelo Estado.
Por tais motivos, ante todo o exposto, voto no sentido de conhecer e dar provimento ao recurso em sentido estrito, para cassar a decisão de fls. 59/62 v, restando o inquérito policial destrancado. Via de consequência, deverá o Juízo manifestar-se novamente acerca do flagrante, observando, agora, a Lei nº 12.403/2011.
ACORDAM os Desembargadores integrantes da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso.
O julgamento foi presidido pelo Senhor Desembargador Rogério Coelho, com voto, e dele participou o Senhor Juiz Convocado Raul Vaz da Silva Portugal. Curitiba, 22 de setembro de 2011. ROGÉRIO ETZEL Juiz de Direito Substituto em 2.º Grau
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