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Acórdão
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APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO Nº 591.093-6, DA COMARCA DE JACAREZINHO, VARA CÍVEL E ANEXOS APELANTE : DIRETOR DA FACULDADE ESTADUAL DE DIREITO DO NORTE PIONEIRO APELADA : MARINA RODRIGUES FERREIRA FANTINELLI RELATOR : DES. MARCO ANTONIO DE MORAES LEITE APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO MANDADO DE SEGURANÇA FACULDADE ESTADUAL COM AULAS ÀS SEXTAS-FEIRAS À NOITE ALUNA IMPETRANTE QUE PROFESSA O CREDO DA IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA - ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DE COMPARECIMENTO ÀS ATIVIDADES ACADÊMICAS - PRETENDIDO ABONO DE FALTAS, MEDIANTE PRESTAÇÃO ALTERNATIVA SEGURANÇA CONCEDIDA EM PRIMEIRO GRAU, PORÉM COM LIMINAR SUSPENSA ATÉ TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA APELO DA FACULDADE IMPETRADA LEI ESTADUAL Nº 11.662/97, EM CONFLITO COM A LEI FEDERAL Nº 9.394/96, QUE DISCIPLINA AS DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA DE PRESTAÇÃO ALTERNATIVA, EM CASOS DE FALTA POR CONVICÇÃO RELIGIOSA NÃO CONFIGURAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA - PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA QUE DEVE SER APLICADO DE FORMA RAZOÁVEL, SOB O PENA DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA LEGALIDADE, ISONOMIA E IMPESSOALIDADE, BEM COMO VIOLAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA, E DAS NORMAS QUE REGEM A INSTITUIÇÃO - RISCO DE COMPROMETER O FUNCIONAMENTO DA FACULDADE ALUNA QUE INGRESSA NA INSTITUIÇÃO DE ENSINO CONHECENDO SUAS NORMAS, INCLUSIVE AQUELAS QUE NÃO ATENDEM A SUAS CRENÇAS RELIGIOSAS IMPOSIÇÃO DE ADAPTAÇÃO QUE NÃO PODE SER APLICADA À FACULDADE ALUNA QUE DEVE SEGUIR AS NORMAS IMPOSTAS A TODOS OS ALUNOS AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO SENTENÇA MODIFICADA SEGURANÇA DENEGADA. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E PROVIDO. REEXAME NECESSÁRIO PREJUDICADO. VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível e Reexame Necessário nº 591.093-6, da Comarca de Jacarezinho, Vara Cível e Anexos, em que é apelante DIRETOR DA FACULDADE ESTADUAL DE DIREITO DO NORTE PIONEIRO e apelada MARINA RODRIGUES FERREIRA FANTINELLI. Trata-se de recurso de apelação e reexame necessário contra a r. sentença que, nos autos de Mandado de Segurança nº 214/2008, da Vara Cível e Anexos da Comarca de Jacarezinho, em que é impetrante Marina Rodrigues Ferreira Fantinelli, e impetrado o Diretor da Faculdade de Direito do Norte Pioneiro, julgou procedente a pretensão da impetrante, concedendo o mandado de segurança impetrado, confirmando a liminar deferida às fls. 64/65, que autorizou a impetrante "abstenção em comparecer nas aulas ministradas, provas e qualquer outras atividades às sextas-feiras, no período noturno de funcionamento da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, que compreende das 19:00 às 23:00 horas", ainda com "efeito retroativo à data do início do ano, de forma que a impetrante tenha abonadas suas faltas já registradas às sextas-feiras, até a presente data, de forma que não prejudique seu desempenho no decorrer do ano letivo", devendo a impetrante cumprir tarefas alternativamente designadas a critério da Faculdade, de forma que possa haver compensação das horas/aulas abonadas em seu favor, ressalvado que a decisão somente produzirá efeitos após o trânsito em julgado da sentença, em decorrência da decisão de fls. 121/126, do Presidente, à época, deste Egrégio Tribunal de Justiça. Inconformada com a sentença, a Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro apresentou apelo (fls.158/196), afirmando que, no presente caso, colidentes direitos fundamentais previstos constitucionalmente, deve prevalecer o direito à educação; que se a liberdade religiosa ou a objeção de consciência pudessem ser invocadas em quaisquer hipóteses para excepcionar obrigações impostas a todos de forma genérica, não haveria segurança nas relações; que a criação de regime especial para a apelada abre precedente capaz de esvaziar o curso, no que refere aos horários das atividades curriculares. Assevera a inexistência regimental de prestação alternativa capaz de abonar as faltas. Sustenta a inaplicabilidade da Lei Estadual nº 11.662/97, pois esta viola o pacto federativo e é eivada de severa inconstitucionalidade, visto que é competência privativa da união legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Afirma que a liberdade de crença e religião assegurada pela Constituição impõe obrigação negativa universal de respeito aos locais de culto e suas liturgias, mas não permite impor obrigação positiva de adequação e preceitos religiosos alheios. Aduz que a Lei 9.394/96 determina claramente os limites da freqüência, inexistindo regra infraconstitucional que especifique o abono de faltas por conta do não comparecimento às aulas em razão de convicções religiosas. Alega que a decisão apelada viola o princípio da laicidade do Estado, devendo este salvaguardar a autonomia do poder civil de toda forma de controle exercido pelo poder religioso, sendo garantida tanto a separação política e jurídica entre Estado e igreja, como são garantidos os direitos individuais de liberdade em relação a ambos. Aponta a ofensa da decisão apelada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Ao final, pugna pela procedência do pedido, com conseqüente revogação da segurança concedida. Contrarrazões (fls. 201/215), arrimadas no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, e na Lei Estadual nº 11.662/97, pela manutenção da sentença. Parecer da d. Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 233/238), pelo conhecimento e não provimento do recurso de apelação. É o relatório. Oportuno o reexame necessário, face o art. 12, parágrafo único, da Lei nº 1.533/51. Quanto ao recurso voluntário, presentes os requisitos de admissibilidade, merece conhecimento. Cinge-se o presente recurso pela irresignação apresentada pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro contra a decisão proferida em sede de Mandado de Segurança, que concedeu a segurança à impetrante, autorizando sua abstenção em comparecer, às sextas-feiras, das 19 às 23h,
às atividades curriculares da Faculdade, bem como o abono retroativo das faltas, em decorrência de crença religiosa. Consoante se vê dos autos, a impetrante é integrante da "Igreja Adventista do Sétimo Dia", cujos dogmas impedem "atividade secular, desde o pôr do sol de sexta- feira, até o pôr do sol do sábado". Tendo ingressado na Faculdade de Direito do Norte Pioneiro, Marina Rodrigues Ferreira Fantinelli, logo no início do primeiro ano do curso, apresentou pedido administrativo junto à direção da citada instituição, a fim de que lhe fosse concedido abono de faltas, motivada por princípio de consciência religiosa, com base na Lei nº 11.662/97. Tendo seu requerimento indeferido, impetrou o presente mandado de segurança. Ocorre que a Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso XXIV, determina que compete privativamente à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional, o que faz pela Lei nº 9.394/96. A competência concorrente dos Estados em legislar sobre a educação e ensino, prevista no artigo 24, inciso IX, da Carta Magna, não pode, portanto, ir contra as normas gerais fixadas pelas diretrizes traçadas pela União. Observando-se a Lei Federal nº 9.394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, não se encontra qualquer dispositivo legal que autorize o abono de faltas em decorrência de convicção religiosa. A Lei Estadual nº 11.662/97, na qual se funda o pedido da impetrante, mostra- se, portanto, contrária ao normativo federal, ao criar situação diversa daquelas relacionadas na diretriz da educação nacional, não sendo aplicável ao presente caso. Ademais, não há qualquer norma, seja legal ou institucional, que preveja a possibilidade de prestação alternativa ao comparecimento às aulas, a fim de abonar faltas em decorrência de crença religiosa. Assim, inexiste o direito líquido e certo que autorizaria a concessão do `mandamus' pleiteado. É certo que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença", consoante artigo 5º, inciso VII, da Constituição Federal, bem como "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei", nos termos do inciso VIII, do mesmo artigo. No entanto, o não acolhimento do pedido da impetrante não se configura violação constitucional do seu direito de consciência e de crença. Tais regras constitucionais garantem ao indivíduo seu direito de crença religiosa, desobrigando-o de se submeter a regras que ofendam seu exercício de fé. Entretanto, as regras da fé professada também não podem violar outros princípios constitucionais - como o da isonomia e da impessoalidade, que estabelecem regras comuns destinadas a todos -, sob o argumento de liberdade de crença. Afinal, a liberdade religiosa não é direito absoluto, e deve ser aplicado de maneira proporcional, frente a outros princípios constitucionais de mesma ordem, como a legalidade, isonomia e impessoalidade. Sobre o tema, Daniel Sarmento leciona (in: O Crucifixo nos Tribunais e a Laicidade do Estado. Revista Eletrônica da PRPE. Maio de 2007.) que:
"A laicidade estatal, que é adotada na maioria das democracias ocidentais contemporâneas, é um princípio que opera em duas direções. Por um lado, ela salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado nas suas questões internas, concernentes a aspectos como os valores e doutrinas professados, a forma de cultuá-los, a sua organização institucional, os seus processos de tomada de decisões, a forma e o critério de seleção dos seus sacerdotes e membros, etc. Sob esta perspectiva, a laicidade opõe-se ao regalismo, que se caracteriza quando há algum tipo de subordinação das confissões religiosas ao Estado no que tange a questões de natureza não-secular. Mas, do outro lado, a laicidade também protege o Estado de influências indevidas provenientes da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão religiosa, inclusive a majoritária." Como bem apontou a r. decisão de suspensão de liminar nº 509.175-8 (fls. 121/126), proferida pelo então Presidente deste Tribunal de Justiça, Des. J. Vidal Coelho, "Não se admite que, sob o fundamento da liberdade religiosa, tenha que se tolerar cultos contrários à normatização relacionada com o sistema educacional, bem como aqueles atentatórios à paz e à convivência social. A exteriorização da liberdade religiosa, dessa forma, encontra limites no interesse público". Se a administração da instituição de ensino passa a tomar em consideração as crenças pessoais de cada aluno, afastando as normas gerais que regem a instituição, corre-se o risco de comprometer o próprio gerenciamento e funcionamento da faculdade. Este entendimento já foi exarado pelos Tribunais pátrios: "CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO MANDADO DE SEGURANÇA ADVENTISTA DO SETIMO DIA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS TURNO NOTURNO FREQÜÊNCIA ÀS AULAS EXIGÊNCIA IMPOSTA A TODOS OS UNIVERSITÁRIOS. A Constituição da República, através do seu art. 5º, incisos VI a VIII, assegurou a todos, como direito fundamental, a liberdade de crença religiosa. (...) Não se pode admitir uma readaptação do curso em benefício único do Autor, por questões não só religiosas como também pessoais. O dever de freqüentar as aulas regularmente e obter média suficiente nas provas realizadas para a devida aprovação é imposição destinada a todos os estudantes, independentemente de qualquer convicção religiosa. A se reconhecer o direito pleiteado pelo Apelante, haveria ofensa, sem sombra de dúvidas, aos princípios da isonomia e da impessoalidade, criando-se um benefício ao qual não foi estendido a todos os alunos, o que poderia ocasionar, inclusive, impugnação por outros universitários não agraciados por tal beneplácito administrativo, vindo a comprometer, inclusive, a seriedade do curso ministrado." (TRF-2, AMS nº 2005.50.01.012623-0/ES, 7ª Turma, Rel. Des. Sergio Schwaitzer, DJU 08.10.2007). Nesta esteira, colaciono a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça: "Agravo Regimental em Suspensão de Tutela Antecipada. 2. Pedido de restabelecimento dos efeitos da decisão do Tribunal a quo que possibilitaria a participação de estudantes judeus no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data alternativa ao Shabat 3. Alegação de inobservância ao direito fundamental de liberdade religiosa e ao direito à educação. 4. Medida acautelatória que configura grave lesão à ordem jurídico-administrativa. 5. Em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para a realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso 6. Decisão da Presidência, proferida em sede de contracautela, sob a ótica dos riscos que a tutela antecipada é capaz de acarretar à ordem pública 7. Pendência de julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 391 e nº 3.714, nas quais este Corte poderá analisar o tema com maior profundidade. 8. Agravo Regimental conhecido e não provido." Grifei. (STA 389 AgR, Relator(a): Min. Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03.12.2009, DJe-086, publicação em 14.05.2010, RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135) Ademais, sobre a não possibilidade de imposição de norma religiosa sobre a administração pública, por aluno que ingressa na faculdade, esta Câmara já decidiu: "APELAÇÃO CÍVEL - MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO - ATIVIDADES UNIVERSITÁRIAS AOS SÁBADOS - PEDIDO PARA FREQÜENTÁ-LAS EM HORÁRIO ALTERNATIVO - NEGATIVA - ALEGADA OFENSA À LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA - VÍCIO INEXISTENTE - SEGURANÇA NEGADA - DECISÃO CORRETA - ESTADO LAICO - IMPOSSIBILIDADE DE IMPOSIÇÃO DE NORMA RELIGIOSA SOBRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - ALUNO, AO INGRESSAR NA INSTITUIÇÃO DE ENSINO, DEVE ADAPTAR-SE ÀS REGRAS REFERENTES ÀS AULAS E AVALIAÇÕES - NÃO HÁ LESÃO DO DIREITO À LIVRE CRENÇA E AO ENSINO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO." (TJ/PR, Ac. nº 24.138, da 6ª C.Cv., Rel. Des. Prestes Mattar, DJ de 22.06.2009). Da fundamentação do aresto em referência, se extrai o seguinte excerto, que peço vênia para acrescer como razões de decidir:
"O estudante, ao ingressar na universidade, deve ter conhecimento das regras determinadoras da sistemática de aulas, provas, avaliações, sendo que se alguma for contrária às suas convicções, não deve o estudante efetuar a sua matrícula. Agora, uma vez ingresso em determinada instituição de ensino, não pode o aluno, ou uma parte dos alunos, pretenderem que a instituição tenha que se adaptar às suas próprias condições relativas à crença religiosa, sob pena de ofender o Estado laico brasileiro. A universidade não impede que o aluno acredite e professe a fé que entende correta, somente não pode ser obrigada a adaptar toda a sistemática previamente estabelecida para atender esse interesse. Ademais, como vige para a administração pública, e no caso está-se tratando de universidade pública, o princípio da legalidade, inexiste em nosso ordenamento lei que determine a pretendida atuação por este mandado de segurança." Outrossim, a impetrante já ingressou na faculdade impetrada tendo consciência de que teria que desenvolver atividades acadêmicas às sextas-feiras à noite. Assim, deve submeter-se às regras impostas pela instituição de ensino que escolheu cursar, impondo-se às mesmas normas que estão submetidos todos seus alunos. Destarte, consoante se vê, inexiste o direito líquido e certo da impetrante, devendo-se dar provimento ao recurso de apelação, e reformar a sentença, a fim de denegar a segurança pleiteada, revogando-se a liminar concedida às fls. 64/65, restando prejudicado o reexame necessário. ACORDAM os integrantes da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em conhecer e dar provimento ao apelo, restando prejudicado o reexame necessário. O julgamento foi presidido pelo Senhor Desembargador Prestes Mattar, com voto, e dele participou a Senhora Desembargadora Ângela Khury Munhoz da Rocha. Curitiba, 13 de março de 2012. DES. MARCO ANTONIO DE MORAES LEITE Relator
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