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Acórdão
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APELAÇÃO CRIME N° 614.652-5, DE MARINGÁ, 1ª VARA CRIMINAL. APELANTE - MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ APELADO - ETORE SANTO SACON RELATOR - DES. TELMO CHEREM JÚRI HOMICÍDIO QUALIFICADO ABSOLVIÇÃO TESE DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA ACOLHIDA DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS CASSAÇÃO (ART. 593-III-"d", CPP) SUBMISSÃO DO ACUSADO A NOVO JULGAMENTO. Contraria manifestamente a prova dos autos o veredicto do Conselho de Sentença que, distante de elementos fáticos capazes de configurar situação tão excepcional que não permita outra opção ao agente senão ceifar a vida da vítima, vem a recepcionar a tese de inexigibilidade de conduta diversa para absolvê-lo. RECURSO PROVIDO. VISTOS, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CRIME N° 614.652-5, DE MARINGÁ, 1ª VARA CRIMINAL, em que é APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ e APELADO: ETORE SANTO SACON. 1. Cuida-se de apelação interposta pelo Ministério Público da decisão (f. 507/509) do Tribunal do Júri da Comarca de Maringá, que, acolhendo a tese de inexigibilidade de conduta diversa, absolveu Etore Santo Sacon da imputação de homicídio qualificado, assim descrito na denúncia: "... 2° Fato: Em continuidade, dando sequência ao seu propósito criminoso de ceifar a vida da referida vítima, no dia 08 de setembro de 2006 (08/09/06), por volta de 01h45min., o denunciado Etore Santo Sacon vulgo 'Ovelha' se dirigiu até a residência da vítima, situada na Rua Dona Leonor de Held, n° 108, Jardim Alvorada, nesta cidade e comarca, com o intuito de concluir o seu intento. Em lá chegando, sem o consentimento de quem de direito, invadiu o interior da habitação e adentrou no quarto onde a vítima Thiago Henrique da Silva dormia, efetuando três (3) disparos contra ela, a curta distância, praticamente a 'queima roupa', atingindo-lhe a lateral esquerda da face e a região parieto-occipital à esquerda, causando-lhe a morte instantânea (Laudo de Necropsia de fls. 60 e v°), empreendendo fuga a pé e tomando rumo ignorado. A vítima não teve a mínima possibilidade de se defender ou de reagir ao ataque repentino, seja porque se encontrava deitada sobre a cama, onde recuperava-se da mencionada cirurgia ou porque sequer conseguiu levantar-se, sendo este repentino ataque mortal praticamente uma mera continuação daquela tentativa, dadas as mesmas circunstâncias de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes".
Suscita o Apelante, em preliminar, a nulidade do julgamento, que decorreria (i) do esvaziamento do plenário sem "necessidade concreta e objetiva..., cujo escopo não foi outro senão o de impressionar os Jurados, dando- se a entender a existência de falso risco para a testemunha"; (ii) da indevida reprodução perante o Júri de vídeo contendo o depoimento de três testemunhas ouvidas na instrução, que, como provas repetíveis, poderiam ter sido arroladas na fase do art. 422 do Código de Processo Penal, superando, ainda, o limite legal e afrontando o disposto no art. 473 do mesmo diploma; (iii) da imprópria manifestação do Advogado do Réu, após indeferimento da impugnação aos
quesitos, de modo a interferir durante a explicação das indagações na sala secreta e despertar nos Jurados, "já simpatizantes da tese defensiva", a sensação de que "a Defesa estava mesmo com a razão...". No mérito, sustenta que a decisão absolutória do Conselho de Sentença é manifestamente contrária à prova dos autos, pois "não estava o réu em situação de perigo atual ou iminente para que sua tese fosse acolhida, pesando na formação desse convencimento a rotulação irrogada de que a vítima era traficante perigoso". Argumentando ser admissível a tese somente quando o agente "atue sob coação irresistível ou obediência hierárquica, à luz do artigo 22 do Código Penal", pede, afinal, a anulação do decisum, com a realização de novo julgamento (f. 522/544).
Ofertadas as contrarrazões (f. 546/565), vieram os autos a esta Corte, tendo a douta Procuradoria Geral de Justiça, em parecer subscrito pelo ilustre Procurador GILBERTO GIACÓIA, recomendado a cassação do veredicto (f. 577/596).
2. Quanto às pretensas nulidades ocorridas durante a sessão plenária, prejudicado resulta o seu exame, uma vez que, no mérito, não há como prevalecer a decisão recorrida, devendo, de qualquer modo, ser realizado novo julgamento.
Acolheu o Conselho de Sentença, como visto, excludente supralegal de culpabilidade, razão pela qual o Apelado foi absolvido da imputação do crime de homicídio qualificado.
Impende verificar, então, se dos elementos cognitivos coligidos é possível extrair situação compatível com a tese defensiva, ou seja, se nas circunstâncias detalhadas não era exigível que o Acusado se comportasse em conformidade com o Direito. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, a propósito, observa que "não age culposamente nem deve ser, portanto, penalmente responsabilizado pelo fato aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso". Para o saudoso jurista, contudo, a "não-exigibilidade" deve ser considerada em seus "devidos termos, isto é, não como um juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade normativa ...".1
ANIBAL BRUNO, do mesmo modo, anota ser necessário ao juízo de culpabilidade "que a situação total em que o proceder punível se desenvolve não exclua a exigência do comportamento conforme ao Direito, que se pode humanamente reclamar de todo homem normal em condições normais", ou seja, "pressupõe que o agente devia e podia agir de maneira diversa"2.
O que deve ser avaliado, desse modo, é o grau de (a)normalidade das circunstâncias, isto é, se a gravidade e seriedade concreta da situação poderiam gerar no Réu um estado de excepcional pressão psíquico-emocional suficiente a limitar seu poder de motivação jurídica. Por outra, se existem nos autos elementos fáticos capazes de configurar situação tão excepcional que não permitia outra opção ao Acusado senão ceifar a vida da Vítima.
Disse ele aos Jurados que seu filho vendera uma motocicleta para Thiago, o qual, além de não adimplir as parcelas do financiamento, era envolvido "com tráfico e estaria usando a moto para entregar drogas"; encontraram-se, então, no "Bar do Tartaruga", com o intento de resolver a questão, oportunidade em que a Vítima, recusando qualquer composição, 1 "Princípios Básicos de Direito Penal", 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 328/329. 2 "Direito Penal Parte Geral, Tomo II", 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 97.
ameaçou-o caso fosse delatado à polícia; no dia 03 de setembro de 2006, ele o abordou e, pondo "a mão na jaqueta", relembrou "que iria acertar as contas se fosse denunciado à polícia", instante em que, ao reputar iminente a agressão a que seria submetido, desferiu-lhe uma facada. Em razão desse incidente e temendo represália ainda maior, foi obrigado a deixar a cidade juntamente com sua família; que Thiago e seu grupo passavam em seu local de trabalho e na frente de sua residência dizendo-lhe que "não passaria de hoje". Mencionou que, no dia 06 subsequente, compareceu a um distrito policial para registrar a ocorrência das ameaças e que, no dia seguinte, recebeu a informação de que vários usuários de drogas estariam no seu encalço, "por causa de cinquenta gramas de craque" oferecidas por Thiago como recompensa para quem o matasse. Expôs, então, ter retornado para casa e, depois de pensar na segurança de sua família, pegou seu revólver e, por volta de "uma, duas horas da manhã", foi à residência da Vítima para "conversar e resolver a situação". Revelou, por fim, ter arrombado a porta e, após se deparar com a mãe e a irmã de Thiago, foi ao quarto em que ele estava dormindo indagar o porquê da perseguição; tendo ele esboçado apanhar uma arma que estava na "gaveta da cômoda", reagiu e "efetuou dois ou três disparos", evadindo-se.
As testemunhas de defesa ouvidas na sessão plenária propuseram-se apenas a qualificar a Vítima como "traficante de drogas" e possuidor de "personalidade violenta", visando, na linha argumentativa da Defesa, exculpar o cometimento do homicídio pelo intenso medo e perturbação de ânimo que teriam afligido o Réu.
No entanto, ao invés de realizar pretensa "justiça" de mão própria, o Acusado podia e devia ter aguardado a intervenção da autoridade policial, até porque, um dia antes, já havia registrado ocorrência a propósito das reportadas ameaças (f. 20). Essa era a atitude dele esperada e socialmente exigida; optou, entretanto, por invadir durante a madrugada a residência da Vítima (laudo de exame de local de f. 72/90 e reconstituição de crime de f. 96/111), desfechando contra ela disparos de arma de fogo.
Não sendo, portanto, a única alternativa que restava ao Apelado, o excesso e a pressa irrefletida evidenciados na sua conduta desautorizam a exculpante.
Aliás, esse seu comportamento mostrou-se precipitado e desproporcional ao agravo, representando, como bem observado pelo culto e zeloso Procurador de Justiça, "... o desdobramento da precedente tentativa, tanto que a Vítima se restabelecia da respectiva cirurgia, embora não se contenha conceitualmente no crime progressivo" (f. 587). E ressaltou:
"A situação fática (vítima se convalescendo da cirurgia e dormindo no recesso do lar) justificou a conduta (de arrombar e invadir armado sua residência, passando pela mãe e irmã e, friamente, executar o sujeito passivo na cama, enquanto dormia, disparando seguidas vezes à queima-roupa e o reduzindo à condição retratada nas impressionantes ilustrações fotográficas que instruem o levantamento de local)? Mesmo em seu próprio relato, não há o menor vínculo à versão técnico-defensivo, no rigor dos contornos reclamados. Deveria e poderia perfeitamente ter buscado os meios legais para a solução do conflito instalado. De fato, o próprio imputado admite já ter se dirigido para o local armado, como se noticia que era dado a fazer pelo perfil de personalidade violenta que ostenta" (f. 588). Essa Câmara, em situações semelhantes, já decidiu:
"APELAÇÃO CRIME TRIBUNAL DO JÚRI HOMICÍDIO QUALIFICADO PELO EMPREGO DE RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA DECISÃO DOS JURADOS QUE ABSOLVEU O ACUSADO COM FUNDAMENTO NA TESE DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA
INCONFORMISMO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS OCORRÊNCIA INEXISTÊNCIA DE QUALQUER ELEMENTO PROBATÓRIO DEMONSTRATIVO DE ESTAR O RÉU, NO MOMENTO DO ILÍCITO, EM SITUAÇÃO LIMITE QUE LHE IMPUSESSE, COMO ÚNICA ALTERNATIVA, DEFERIR GOLPES DE FACA CONTRA A VÍTIMA RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR A SUBMISSÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO POPULAR".3
"... Consoante o exame da prova colhida nos autos, o Conselho de Sentença adotou versão em completa desarmonia com as provas coligidas, pois não há qualquer elemento probatório demonstrativo de estar o réu, no momento do ilícito, em situação limite que impunha como única alternativa desferir disparos contra a vítima. - É de ser ressaltado que não se trata, na espécie examinada, de os jurados terem escolhido uma das versões dos autos, pois a própria versão apresentada pelo réu, em conjunto com os depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa que afirmam que o réu estava sendo constantemente ameaçado, não constitui suporte idôneo para acolher a tese de inexigibilidade de conduta conforme o direito. - A decisão proferida pelos Senhores Jurados encontra-se destituída de qualquer apoio nas provas produzidas, sendo, portanto, manifestamente contrária à prova dos autos".4 Não é demais lembrar, ainda com ANIBAL BRUNO, que "uma aplicação indiscriminada do princípio poderia alargar uma brecha no regime, por onde viriam a passar casos onde evidentemente a punibilidade se impõe, com a consequência de enfraquecer a necessária firmeza do Direito Penal. Além disso, os casos que justificam de maneira mais clara a aplicação do princípio já se encontram tipificados no Código, e verdadeiramente, fora dessas hipóteses, não há de ser sem rigorosa cautela que se admitirá o poder de exculpação do princípio da não exigibilidade. Não é que deliberadamente só por exceção se deva aplicar o princípio. Mas excepcional é, na realidade, o aparecimento de 3 Acórdão nº 27.587, Relator: Juiz Substituto em Segundo Grau LUIZ OSORIO MORAES PANZA, DJe 05.03.2010. 4 Acórdão nº 21.810, Relator: Des. JESUS SARRÃO, DJe 26.10.2007.
casos em que, de fato, fora da tipificação da lei, se possa dizer que, razoavelmente, e tendo em vista os fins do Direito Penal, não era exigível do agente um comportamento conforme à norma" (op. cit., p. 103).
Desse modo, não evidenciada nos autos situação de perigo tão intensa e excepcional que pudesse anular a eficácia da contramotivação delinquencial a que todos estão jungidos, inarredável a conclusão de que o acolhimento da tese de inexigibilidade de conduta diversa está ao desamparo da prova amealhada, sujeitando-se, por isso, à excepcional jurisdição de cassação a que se refere o art. 593, III, "d", do Código de Processo Penal. Impõe-se, pois, no tocante ao segundo fato descrito na denúncia (art. 121-§2º-IV, CP), a submissão do Apelado a novo julgamento pelo Tribunal Popular.
ANTE O EXPOSTO:
ACORDAM os integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em DAR PROVIMENTO ao recurso, para cassar a decisão do Júri relativamente ao homicídio qualificado.
Participaram do julgamento os Excelentíssimos Desembargadores JESUS SARRÃO e CAMPOS MARQUES.
Curitiba, 18 de novembro de 2010.
TELMO CHEREM Presidente e Relator
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