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INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01, DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE LONDRINA, 2ª VARA CRIMINAL. SUSCITANTE: 1ª CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA INTERESSADO: SÉRGIO PEREIRA SILVESTRE RELATOR: DES. TELMO CHEREM INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE ART. 305 DA LEI Nº 9.503/97 CRIME DE ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE PELO CONDUTOR DO VEÍCULO ALEGADA OFENSA À PRERROGATIVA CONTRA A AUTOINCRIMINAÇÃO (ART. 5º-LXIII, CF) NÃO CONFIGURAÇÃO. A tipificação da conduta de abandono do local de acidente pelo art. 305 do Código de Trânsito não afronta a prerrogativa contra a autoincriminação prevista no art. 5º, inciso LXIII, da Carta Federal, visto exigir do cidadão comportamento neutro, não obstativo do exercício do direito ao silêncio assegurado pela ordem constitucional, e manifestar, sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade, política criminal que visa respaldar legitimamente o caráter ultraindividual da segurança viária e do direito de locomoção. INCIDENTE IMPROCEDENTE. VISTOS, relatados e discutidos estes autos de INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01, do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Londrina, 2ª Vara Criminal, em que
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 é suscitante: 1ª CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA e interessado: SÉRGIO PEREIRA SILVESTRE.
1. Trata-se de incidente de declaração de inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro suscitado nos autos de Apelação Crime nº 1.182.256-7 pela c. Primeira Câmara Criminal deste Tribunal, em acórdão assim sumariado:
"1. APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, INC. III, DO CTB). ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO DE CONDENAÇÃO DO ACUSADO. DESACOLHIMENTO. AUSÊNCIA DE PROVAS SEGURAS DE QUE O RÉU AGIU CULPOSAMENTE. INCIDÊNCIA DO AXIOMA `IN DUBIO PRO REO'. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 2. EVASÃO DO LOCAL DO ACIDENTE. CRIME DO ART. 305 DO CTB. CONDENAÇÃO. RECURSO DA DEFESA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO LEGAL. VIOLAÇÃO A GARANTIA PREVISTA NO ART. 5º, INC. LXIII. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 305, DA LEI 9.503/97. INDÍCIOS DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADO EM OBEDIÊNCIA À CLÁUSULA DE RESERVA DO PLENÁRIO INSCULPIDA NO ARTIGO 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E SÚMULA VINCULANTE Nº 10 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO ESPECIAL DA CORTE. ART. 270 DO RITJ. - Diante dos indícios de inconstitucionalidade e da cláusula de reserva de plenário, deve-se suscitar incidente de inconstitucionalidade do art. 305, da Lei nº 9.503/97, perante o Órgão Especial deste Tribunal."
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 Instada, a Senhora Subprocuradora-Geral de Justiça SAMIA SAAD GALLOTTI BONAVIDES, acolhendo manifestação do Promotor de Justiça Fábio André Guaragni (f. 220/243), opinou pela improcedência da arguição (f. 243/244).
2. Em sede de controle de constitucionalidade de leis penais, tem a CORTE SUPREMA reiterado o entendimento, fundado na dogmática alemã, de que o princípio da proporcionalidade segundo o qual o dever estatal de promover a eficiente tutela do bem jurídico encontra limite máximo na proibição de excesso passível de atingir imoderadamente direito fundamental constitui parâmetro geral à aferição da compatibilidade da norma:
"[N]o controle abstrato de normas não se procede apenas a um simples contraste entre a disposição do direito ordinário e os princípios constitucionais. Ao revés, também aqui fica evidente que se aprecia a relação entre a lei e o problema que se lhe apresenta em face do parâmetro constitucional. Em outros termos, a aferição dos chamados fatos legislativos constitui parte essencial do chamado controle de constitucionalidade, de modo que a verificação desses fatos relaciona-se íntima e indissociavelmente com a própria competência do Tribunal. (...) No âmbito do controle de constitucionalidade em matéria penal, deve o Tribunal, na maior medida possível, inteirar-se dos diagnósticos e prognósticos realizados pelo legislador para a confecção de determinada política criminal, pois é este conhecimento dos dados da realidade os quais serviram de pressuposto da atividade legislativa que lhe permitirá averiguar se o órgão legislador utilizou-se de sua margem de ação de maneira sustentável e justificada. No terceiro nível, o controle material intensivo (intensivierten inhaltlichen Kontrolle) aplica-se às intervenções legislativas que, por afetarem intensamente bens jurídicos de extraordinária importância, como a vida e a liberdade individual, devem ser submetidas a um controle mais rígido por parte do Tribunal, com base no princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Assim, quando esteja evidente a grave afetação de bens jurídicos fundamentais
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 de suma relevância, poderá o Tribunal desconsiderar as avaliações e valorações fáticas realizadas pelo legislador para então fiscalizar se a intervenção no direito fundamental em causa está devidamente justificada por razões de extraordinária importância."1.
"[O] princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Sob tal ângulo, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais"2.
Sob tal perspectiva, dois axiomas fundamentais apresentam-se antecedentes ao exame de constitucionalidade do dispositivo adversado de um lado, a segurança viária, como direito social (coletivo) expressamente previsto no art. 6º da Constituição da República e dever essencial do Estado; de outro, o princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a autoincriminação, como direta emanação da presunção de não culpabilidade contemplada no art. 5º- LVII da Carta Federal.
Cabe enfatizar, quanto ao primeiro, que os acidentes de trânsito categorizados como "grave problema de saúde pública" pela Organização Mundial de Saúde são uma das principais causas de morte e lesões em todo o mundo, com cerca de 1,3 milhão de vítimas fatais (ao ano) e outros milhares de feridos ou incapacitados, materializando-se, nos diversos países, em custos de saúde que alcançam de 1 a 2% do PIB3 (no Brasil, esse custo foi estimado em cerca de R$ 24,6 INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 bilhões anuais4 somente quanto aos ocorridos em rodovias, conforme dados coletados pelo IPEA nos anos de 2004 e 2005); não à toa, esse desastroso panorama mundial levou a Organização das Nações Unidas a proclamar o período de 2011 a 2020 como a "Década de Ação pela Segurança no Trânsito" (Resolução nº 64-255/2010-ONU), encetando, no Brasil, a elaboração do "Plano Nacional de Redução de Acidentes e Segurança Viária para a década 2011-2020"5 pelo Ministério das Cidades.
Dentre as diversas e relevantes questões discutidas para a composição colaborativa desse "Plano Nacional", oportuno transcrever excerto da Proposta enviada em conjunto pela Associação Nacional de Transportes Públicos, o Conselho Estadual para Diminuição dos Acidentes de Trânsito e Transportes (CEDATT-SP) e o Instituto de Engenharia de São Paulo:
"[C]onsiderando o momento político favorável em que outros 178 países se propõem a tomar uma atitude para a reversão da violência no trânsito no mundo, é necessário, no Brasil, enfrentar com coragem a cultura da impunidade, da qual participam cidadãos e estruturas impunes, como os infratores contumazes, entidades que deveriam ensinar e, ao contrário, incentivam a prática de ilegalidades e fraudes, órgãos que deveriam fiscalizar e não fiscalizam, pais e responsáveis por famílias que incentivam seus filhos na prática de buscar facilidades, em vez de ensiná- los a percorrer caminhos éticos, instituições da Justiça morosas e lenientes com a prática de delitos no trânsito, setores do Legislativo que elaboram ou incentivam projetos de lei visando abrandar determinações do Código de Trânsito Brasileiro, setores da mídia que, no afã de exercerem seu papel de crítica aos maus costumes e às práticas inadequadas de governo, confundem a proteção da lei com a proteção de infratores e irresponsáveis no trânsito e, por fim, os próprios governos, em todas as suas esferas, que deveriam aplicar recursos advindos do
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 sistema de trânsito, como as multas e as taxas públicas, mas que, a prática ensina, são desviados para outros setores da administração, como se R$ 30 bilhões de custos sociais dos acidentes de trânsito não tivessem importância alguma."6.
A segurança viária, nesse contexto, assume relevo que transcende a mera incolumidade pessoal para abranger também a tutela de todo corpo social ambas asseguradas pelo incremento, através da intervenção proativa do Estado, dos níveis de segurança nas vias públicas, aí incluída, em último plano, a tipificação de determinadas condutas pelo Código de Trânsito. É dizer, a mitigação de outros direitos assegurados pela ordem constitucional encontraria ressonância na necessidade globalmente reconhecida de se garantir a segurança no trânsito e, ulteriormente, prestar tutela efetiva aos problemas sociais e econômicos que daí decorrem.
Noutro vértice, a prerrogativa contra a autoincriminação confere a qualquer pessoa sujeita a investigações penais, policiais ou parlamentares ostentando, ou não, a condição formal de indiciado ou acusado o direito de manter- se em silêncio e de não produzir provas contra si próprio ("nemo tenetur se detegere"), sem que tal exercício legítimo restrinja, de qualquer maneira, sua esfera jurídica.
Sobre a amplitude e interpretação sistemática dessa garantia, esclarece PAULO MÁRIO CANABARRO TROIS NETO que "o direito de não se autoincriminar protege `prima facie' todos os comportamentos individuais passivos que se refiram a uma postura de seu titular, como parte processual não subordinada à parte contrária, de não colaborar para a própria condenação. Como mandamento
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 a otimizar, esse direito pode colidir e frequentemente colide com bens coletivos constitucionais, com o princípio da busca da verdade. Essas colisões devem ser solucionadas mediante uma ponderação de bens, executada de acordo com os critérios da racionalidade, intersubjetividade e controlabilidade fornecidos pela teoria dos princípios e pela teoria da argumentação jurídico-constitucional."7.
Essas, pois, as premissas das quais há de partir a interpretação do dispositivo questionado (art. 305, CTB), assim redigido:
"Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Pena: detenção, de seis meses a um ano, ou multa."
Ao tipificar a conduta de se evadir do local do acidente (acidentes, aliás, cujas cifras absolutas alçam o Brasil ao 4º lugar mundial em número de mortes no trânsito8), pretendeu o legislador, como se percebe do referido artigo, dar efetividade social à administração da justiça, inibindo fuga do condutor do veículo à eventual responsabilização penal ou civil.
Do ponto de vista da proporcionalidade, fixou-se o legislador na interpretação de que, em razão do panorama calamitoso do sistema viário, a proibição geral de afastamento do local do acidente sancionada criminalmente contribuiria para a diminuição dos acidentes de trânsito e, em especial, para a potencial redução da impunidade dos sujeitos envolvidos do que a suspensão da previsão da pena (figurando, portanto, mais adequada para a proteção dos bens jurídicos). A proposição da política pública em questão, ademais, encontra legítimo conforto em
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 estudos diversos (indicativos, como visto, dos alarmantes índices de violência no trânsito) e ecoa dentro do anseio popular, a conferir, in casu, legitimidade no uso da discricionariedade do legislador penal.
Diante disso, não se poderia reprovar, do ponto de vista de sua constitucionalidade, a avaliação realizada pelo legislativo federal (considerados os relevantes dados estatísticos acerca da realidade do trânsito no Brasil) a respeito da adequação e da necessidade do delito impugnado.
É que a política nacional de trânsito (Resolução nº 514/2014- CONTRAN9) objetiva, de fato, a "defesa da vida, incluindo a preservação da saúde do meio ambiente", e pretende afastar o sistema viário da associação frequente ao "risco de morte", colocando, para tanto, a segurança do trânsito como "direito de todos" e função essencial da cidadania. É, assim, modelo exigente da participação ativa dos cidadãos, por meio, sobretudo, de comportamentos adequados e conscientes, em respeito ao pleno exercício do direito de locomoção que a todos assiste.
Nesse passo, não se pode ignorar a existência de um plexo normativo (inclusive penal) incidente sobre a atividade de dirigir que, ao fixar condições assecuratórias da proteção da integridade humana no exercício do direito de locomoção, pressupõe, do motorista, adesão implícita inclusive a dispositivos restritivos de seus direitos e garantias individuais , em privilégio dos deveres de cidadania, convivência coletiva e responsabilidade social e em decorrência da política nacional de trânsito.
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 Daí a excepcional tolerabilidade, sob o enfoque constitucional, da mitigação de direitos e garantias individuais em casos como o que ora se examina, tal qual adverte o PRETÓRIO EXCELSO:
"Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas e considerado o substrato ético que as informa permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros."10. Nesse sentido, a obrigatoriedade de permanecer no local do acidente estaria vinculada à normatividade regulatória do sistema viário e, dessa maneira, poderia ser classificada como um comportamento preestabelecido e esperado de todas as pessoas que conduzem veículos há, afinal, no Código de Trânsito, normas gerais de circulação e conduta para os usuários das vias terrestres (arts. 26 e ss.), dentre as quais a obrigação de zelar pela segurança de terceiros. Bem por isso que o envolvimento em acidente, em si, não constitui ofensa penal (muito menos configura "ação suspeita"), revelando-se, a priori, como fatalidade expressiva da falha dos mecanismos de execução da política nacional de trânsito, em quaisquer de
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 seus âmbitos (v.g.: engenharia de tráfego, fiscalização, educação para o trânsito, manutenção das vias públicas, instalação de placas de sinalização).
O artigo questionado, então, exige do condutor do veículo uma só coisa: que, em reconhecimento do caráter ultraindividual do sistema viário e em obediência às normas de trânsito, pare no local do acidente; não lhe obriga a prover dados pessoais (como ocorre, por exemplo, nos EUA11), prestar esclarecimentos, admitir a culpa por eventuais danos, tampouco fornecer amostras sanguíneas ou dactiloscópicas.
A conduta que aqui se reclama do motorista é, portanto, essencialmente um ato neutro não possui o efeito de colocar o condutor do veículo na condição presumida de suspeito criminal, mas apenas de alguém "envolvido em acidente de trânsito"; e, embora a sua permanência no local possa facilitar a sua identificação pelas autoridades competentes, eventual persecução penal dependerá, necessariamente, de outros indícios ou evidências. Em qualquer hipótese, se a pessoa envolvida em acidente de trânsito sentir-se eventualmente constrangida, avaliando que poderá autoincriminar-se, assistir-lhe-á, sempre, o direito amparado pela própria Constituição de silenciar, mesmo permanecendo no local.
Isso significa, por conseguinte, que a prerrogativa da não autoincriminação não pode ser utilizada com o objetivo de interferir no sistema especial de proteção instituído pelo Código de Trânsito, pois, se assim fosse lícito entender, tal garantia deveria se estender a todas as situações onde o Estado exige do INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 indivíduo determinada conduta e haja, por qualquer motivo, a potencialidade de deflagração de um processo crime envolvendo o mesmo sujeito.
Cabe, no ponto, reporte às pertinentes ponderações lançadas no parecer da d. Procuradoria-Geral de Justiça:
"Acaso houvesse um direito a afastar-se do locus delicti como parte da garantia de não autoincriminação, esta garantia vigoraria em todo o direito e processo penal. (...) Que consequências teriam que ser assumidas, ao declarar-se nestas bases a inconstitucionalidade do art. 305? A primeira: não seria exercício regular de direito, por parte de qualquer cidadão, prender alguém em flagrante delito. Pior: não haveria para o policial o dever estrito de proceder a prisões em flagrante. Tanto o cidadão comum, ao exercer o direito, quanto o policial, ao cumprir seu dever, estariam infringindo o direito do réu de não se autoincriminar, ficando no local do crime. (...) A segunda consequência: os arts. 284 e 292, CPP, também seriam inconstitucionais. Garantem a possibilidade de emprego de violência em face do preso em flagrante, ou de terceiros, quando resistem à prisão, por parte da autoridade pública. O uso da violência vale tanto para a legítima defesa da autoridade, como para vencer a própria resistência à prisão. (...) A terceira: a aplicação do crime de resistência restrito à resistência ativa seria igualmente inconstitucional, quando houvesse resistência à prisão. Havendo um direito a afastar-se do local, a ordem do funcionário público, dada ao infrator para permanecer no local do crime, seria ilegal. (...) Quarta consequência: se o princípio da garantia de não autoincriminação garante o direito de afastar-se ou fugir do local do crime, o Poder Judiciário estaria proibido de decretar prisões cautelares com a pretensão de garantia de aplicação da lei penal em relação aos imputados fugitivos. (...) Quinto: em particular, sendo declarado inconstitucional o tipo contido no art. 305, CTB, com base no direito de não se autoincriminar, constituído pela garantia dada ao envolvido de afastar-se do local do
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 crime, qualquer prisão em flagrante em crimes de trânsito ofenderia muito especialmente esta garantia. (...) Ademais, seria forçoso reconhecer que havendo a possibilidade de se autoincriminar o envolvido no ilícito penal de trânsito poderia fugir mesmo quando se impõe a ele o dever de socorrer a vítima, tanto pela via do art. 304, como a majorante do inciso III do parágrafo único do art. 302. (...)".
Nesse raciocínio, se o risco de autoincriminação, do ponto de vista do condutor do veículo, for condição suficiente para restringir a tipificação em exame, então tal prerrogativa ameaça a capacidade estatal de eficazmente responder à necessidade social básica de haver segurança no trânsito, inclusive com o estabelecimento de sanções penais.
Com efeito, admitir a inconstitucionalidade do tipo penal vergastado em base tão-somente de um potencial risco de autoincriminação do motorista envolvido é desacreditar todo o sistema especial de segurança viária. É dizer ao cidadão: fuja para não responder. É, alfim, negar as premissas básicas da política nacional de trânsito e enfraquecer a noção de cidadania e responsabilidade social.
Não é outra, a propósito, a orientação do e. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
"HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO. PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE. VIOLAÇÃO. INEXISTÊNCIA. ORDEM DENEGADA. 1. O art. 305 do Código de Trânsito, que tipifica a conduta do condutor de veículo que foge do local do acidente, para se furtar à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída, não viola a garantia da não auto-incriminação, que assegura que ninguém pode ser obrigado por meio de fraude ou coação, física e moral, a produzir prova contra si mesmo. 2. Ordem denegada." (HC nº 137.340/SC, 5ª Turma, Relatora: Min.ª LAURITA VAZ, DJe 03.10.2011).
INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.182.256-7/01 Em suma, não importando o tipo penal contido no art. 305 da Lei nº 9.503/97 em desrespeito às garantias jurídicas que assistem ao cidadão, em particular ao exercício da prerrogativa contra a autoincriminação prevista no art. 5º-LXIII da Carta Federal, impõe-se a improcedência do incidente de inconstitucionalidade suscitado.
ANTE O EXPOSTO:
ACORDAM os Desembargadores integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em JULGAR IMPROCEDENTE o incidente de inconstitucionalidade.
Participaram do julgamento os Excelentíssimos Desembargadores REGINA AFONSO PORTES, CAMPOS MARQUES, RUY CUNHA SOBRINHO, PRESTES MATTAR, ROGÉRIO COELHO, MARCOS GALLIANO DAROS, MARQUES CURY, MARIA JOSÉ DE TOLEDO MARCONDES TEIXEIRA, ANTONIO LOYOLA VIEIRA, SONIA REGINA DE CASTRO, ROGÉRIO KANAYAMA, LAURO LAERTES DE OLIVEIRA, LUIZ SÉRGIO NEIVA DE LIMA VIEIRA, DOMINGOS JOSÉ PERFETTO, JOSÉ AUGUSTO GOMES ANICETO, JOSÉ CARLOS DALACQUA, JOSÉ SEBASTIÃO FAGUNDES CUNHA, LUIZ OSÓRIO PANZA, RENATO LOPES DE PAIVA, LUÍS ESPÍNDOLA e GUILHERME FREIRE TEIXEIRA.
Curitiba, 30 de março de 2015.
TELMO CHEREM Relator e Presidente
-- 1 HC nº 104.410/RS, 2ª Turma, Relator: Min. GILMAR MENDES, DJe 27.03.2012. 2 HC nº 109.135/PI, 2ª Turma, Relator: Min. CELSO DE MELLO, DJe 23.09.2014. 3 Disponível em: e e . Acesso em: 07.01.2015.
-- 4 Disponível em: . Acesso em 07.01.2015. 5 Disponível em: . Acesso em 07.01.2015.
-- 6 Idem à nota de rodapé `4'.
-- 7 In: Direito à não autoincriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 104 e 199-200. 8 Disponível em: . Acesso em 07.01.2015.
-- 9 Disponível em: . Acesso em: 07.01.2015.
-- 10 MS nº 23.452/RJ, Tribunal Pleno, Relator: Min. CELSO DE MELLO, DJU 12.05.2000.
-- 11 A Suprema Corte norte-americana, no precedente "California v. Byers 402 U.S. 424 (1971)", consignou, nesse sentido, que a prerrogativa contra a autoincriminação não abrange a obrigatoriedade de o envolvido em acidente de automóvel fornecer à autoridade policial seus dados pessoais e mostrar-lhe seus documentos, reputando que a permanência do motorista no local e a sua identificação não importariam risco significativo àquela garantia (Disponível em: . Acesso em: 07.01.2015.).
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