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Acórdão
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Certificado digitalmente por: ROGERIO RIBAS AGRAVO DE INSTRUMENTO N.º 1.524.855-8, DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE LONDRINA. (0010083-56.2016.8.16.0014) AGRAVANTE: AUTARQUIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE LONDRINA. AGRAVADA: L.C.G (01 ANO), representada por sua genitora CARLA DE BARROS CAIRES GREVE RELATOR: JUIZ ROGÉRIO RIBAS, SUBST. DE 2.º GRAU (Em substituição ao Desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira). AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. FORNECIMENTO GRATUITO DO SUPLEMENTO ALIMENTAR "NEOCATE ADVANCE" A MENOR CARENTE E PORTADORA DE "ALERGIA À PROTEÍNA DO LEITE". NEGATIVA DO MUNICÍPIO. CONCESSÃO DA LIMINAR EM PRIMEIRO GRAU. DECISÃO ACERTADA. VIDA E SAÚDE. DIREITOS FUNDAMENTAIS COM PREVISÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ARTS. 6º E 196). PREVALÊNCIA DA CARTA MAGNA SOBRE NORMAS ADMINISTRATIVAS E BUROCRÁTICAS INFERIORES. DIREITO DE CRIANÇA QUE TEM PRIORIDADE DE ATENDIMENTO, CONFORME DISPÕE EXPRESSAMENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NO ART. 227, CAPUT, E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NOS ARTS. 4.º E 11. REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA DIÁRIA ARBITRADA. DECISÃO AGRAVADA, NO MAIS, MANTIDA. AGRAVO PARCIALMENTE PROVIDO. VISTOS, relatados e discutidos estes autos. Adoto, por economia processual, aquele relatório já lançado quando da análise do pedido de efeito suspensivo (fl. 145):
"O agravo volta-se contra a decisão de primeiro grau de
mov. 19.1 (fls. 96/97-TJ) proferida nos autos nº 0010083- 56.2016.8.16.0014 de OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C COMINATÓRIA E PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, movida por L.C.G., com 2 anos de idade, representada por sua progenitora CARLA DE BARROS CAIRES GREVE, pela qual o MM. Juiz da causa deferiu pedido de antecipação de tutela, compelindo a ré AUTARQUIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE LONDRINA a fornecer em benefício do paciente 12 latas mensais do leite à base de aminoácidos "NEOCATE ADVANCE" em razão de ser alérgica às proteínas do leite de vaca e seus derivados. Reclama a AMSL neste agravo, alegando não ter havido comprovação da hipossuficiência financeira da parte autora, ressaltando que seus comprovantes de vencimentos (seus pais) são no valor de R$8.801,93, sendo que o custo mensal das latas é de aproximadamente R$1.320,00. Ou seja, diz que a agravada pode pagar os insumos de que necessita, não havendo obrigação da agravante. Nesses termos, pugna pela concessão do efeito suspensivo/ativo, no mérito, pela reforma da decisão agravada".
O efeito suspensivo foi parcialmente deferido, "somente para determinar que o prazo para o cumprimento da liminar deverá ser de 05 dias contados a partir da intimação desta decisão, com aplicação de multa diária de R$400,00, limitada a 30 dias-multa" (fl. 145/149).
A agravada apresentou contraminuta ao agravo de instrumento e juntou documentos (fls. 154/169).
A agravante requereu a concessão total do efeito suspensivo pleiteado e o provimento do presente recurso (fls. 171/172)
O Ministério Público em 2º grau se manifestou pelo parcial provimento do agravo de instrumento (fls. 179/196).
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO E VOTO
Conheço do agravo porque presentes os requisitos de admissibilidade.
No mérito, o recurso merece parcial provimento.
É que em demandas como a presente, em que se pleiteia o fornecimento de medicamentos (ou tratamentos ou suplementos e afins) para pessoa carente, portadora de grave enfermidade, a jurisprudência amplamente majoritária orienta pelo acolhimento da pretensão, no sentido de reconhecer o direito postulado pelo cidadão frente ao Estado, prevalecendo o entendimento de que a saúde é direito fundamental do cidadão e dever do Estado1, este compreendido em seu gênero (UNIÃO, ESTADO OU MUNICÍPIO), não havendo amparo para que normas inferiores à Constituição Federal limitem ou restrinjam tal direito.
Esse posicionamento está em consonância com os artigos 6° e 196 da Constituição Federal, que elevaram a saúde e a vida ao patamar de direitos fundamentais indisponíveis, ligados diretamente à dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, norma cogente de aplicação imediata, exigindo do Estado prestações positivas para que a regra contida nesses artigos não se transformem em mera promessa constitucional inconsequente.
Veja-se, no mesmo sentido, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
"A ordem constitucional vigente, em seu art. 196, consagra o direito à saúde como dever do Estado, que deverá, por meio de políticas sociais e econômicas, propiciar aos necessitados não "qualquer tratamento", mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento. 2. Sobreleva notar, ainda, que hoje é patente a idéia de que a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana. (...)" (STJ, RMS 24.197/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/05/2010, DJe 24/08/2010).
No caso em tela, a paciente substituída tem atualmente 01 ano de idade e é portadora de "alergia às proteínas do leite e seus derivados", conforme comprovado por intermédio dos laudos médicos apresentados.
Na espécie, está bem demonstrada a necessidade de dispensação do suplemento alimentar, tendo a Drª Ana Paula Tefilli, CRM/PR 17705, especialista em pediatria e neonatologia e Drª Suely Pietro de Barros, CRN3 1387, nutricionista (fls. 59 e 63-TJ) atestado que o consumo do leite requerido em 1º grau fez com que a criança agravada deixasse de padecer de vários sintomas, como "CONJUNTIVITE", "INFECÇÕES DE GARGANTA", "OTITES" e "DIARRÉIA PERSISTENTE". Isso ocorreu quando parou de tomar leite de vaca e passou a ser alimentada com "NEOCATE ADVANCE".
É entendimento assente nesta Corte que o profissional médico responsável pelo acompanhamento do paciente é quem tem melhores condições de averiguar as suas reais necessidades. Seja ele do SUS ou não.
E o Poder Judiciário, em casos que tais, quando determina a entrega de medicamentos ou tratamentos ainda não dispensados pela rede pública, não quer dizer que está desprezando totalmente as regras constantes nos Protocolos Clínicos do Ministério da Saúde, agora inseridos na Lei 8080/90 Lei Orgânica da Saúde, arts. 19-M e ss, pela Lei 12.401/11. O Judiciário está em verdade garantindo a efetivação de um direito fundamental.
Busca-se uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico com foco na Constituição Federal e nos direitos fundamentais, priorizando o atendimento ao cidadão, até porque a medicina evolui, não sendo uma ciência exata.
E depois, cabe ressaltar que, além da grave doença, a paciente substituída é criança de tenra idade e, por isso, o Poder Público deve lhe conferir integral proteção, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente, seguindo os ditames constitucionais, também privilegia o direito à saúde com prioridade nos seus artigos 4.º e 11.
De resto, quanto à ora agravante, sendo integrante do Poder público municipal de Londrina, tem responsabilidade solidária pela dispensação do tratamento necessário.
Neste sentido são os recursos repetitivos julgados nas instâncias superiores, valendo citar o seguinte precedente do STF:
"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente." (STF, RE 855178 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 05/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015 )
Por outro lado, no que diz respeito ao risco na demora, percuciente a manifestação da Procuradoria Geral de Justiça de lavra do Dr. ANTONIO CARLOS STAUT NUNES, que também adoto como motivação para este voto (fl. 193):
"Dos documentos já mencionados, possível é inferir que o alimento pleiteado é de extrema importância para a nutrição da criança e manutenção de sua saúde, de modo que a urgência se evidencia, haja vista que a ausência da alimentação adequada já culminou, anteriormente, em quadros infecciosos extremamente prejudiciais à saúde da infante".
Acertada, portanto, a decisão agravada ao determinar em caráter antecipatório (liminar) o fornecimento do suplemento alimentar pleiteado, tendo em vista o risco à saúde e até mesmo à vida da paciente decorrente da não utilização da fórmula prescrita pelo médico que a acompanha.
Acerca da multa diária, fixada em R$2.000,00, não se pode olvidar que essas astreintes constituem meio coercitivo legítimo cabível contra a Fazenda Pública, cuja finalidade é garantir a eficácia das decisões judiciais, principalmente em casos como este, em que se visa a tutela de direitos individuais indisponíveis como a vida e a saúde.
Demais disso, o arbitramento da multa não possui caráter punitivo, e será aplicada somente em caso de descumprimento injustificado, ou seja, é um meio coercitivo para compelir a parte obrigada a cumprir o que se determinou na decisão. Trata-se de garantir a efetividade da jurisdição, e, de qualquer modo, se o valor se tornar elevado demais, poderá ser reduzido a patamar mais razoável a qualquer tempo.
Entretanto, considerando o valor de mercado do NEOCATE ADVANCE, em torno de R$160,00 (mov. 1.18), se mostra adequada a minoração da multa, de ofício, para R$400,00 por dia de descumprimento, limitados a 30 dias-multa, como propugnado pela agravante.
Também se nota não ter sido determinado prazo, pelo que fixei o de 5 dias a contar da decisão de fls. 145/149, não havendo notícias até aqui de descumprimento injustificado.
Finalmente, quanto à alegada capacidade financeira da recorrida, de se ressaltar, ainda, que a falta de condições financeiras para arcar tratamento medicamentoso não é óbice para um cidadão aceder ao SUS, o que violaria o princípio do acesso universal, inserto no art. 7º, I e IV da Lei 8080/90 (Lei Orgânica da Saúde). Não se trata, a princípio, de um suplemento de alto preço, que possa inviabilizar outros atendimentos feitos pela agravante. Ao menos não se demonstrou objetivamente isso.
Ademais, a jurisprudência pátria prestigia o princípio do acesso universal às políticas públicas de saúde, sem distinções de renda ou outras. Neste sentido, p.ex.:
"A interferência judicial na área da saúde não pode desconsiderar as políticas estabelecidas pelo legislador e pela Administração. Todavia, o Poder Público não pode invocar a cláusula da 'reserva do possível', para exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, sem demonstrar, concretamente, a impossibilidade de fazê-lo. A hipossuficiência do paciente não é elencada como requisito necessário para o fornecimento gratuito de medicamentos pelo SUS." (TRF4, APELREEX 5005032- 45.2012.404.7205, Quarta Turma, Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão Caminha, D.E. 14/08/2013).
Além disso, a declaração de hipossuficiência juntada à fl. 176 atesta a impossibilidade de a família da menor arcar com os custos do suplemento alimentar de que ela necessita sem prejuízo do sustento e da mantença de outras despesas importantes do grupo familiar. Não se trata aparentemente de caso em que o solicitante do tratamento opta por pedir ao Estado por mero capricho, de conseguinte.
Por fim, vale relembrar que estamos a tratar de uma criança, sem rendimentos próprios, à qual a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) asseguram prioridade de atendimento.
Veja-se o disposto no art. 4º do ECA:
"Art. 4º: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".
ISTO POSTO, VOTO no sentido de DAR PROVIMENTO PARCIAL AO AGRAVO DE INSTRUMENTO, para determinar que o prazo para o cumprimento da liminar deverá ser de 05 dias da intimação da decisão de fls. 148 (que indeferiu a antecipação de tutela recursal), com aplicação de multa diária de R$400,00, limitada a 30 dias- multa, mantendo os demais termos da decisão guerreada.
É como voto.
DISPOSITIVO
ACORDAM os Desembargadores integrantes da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em DAR PROVIMENTO PARCIAL AO AGRAVO DE INSTRUMENTO, mantendo a decisão recorrida, e apenas determinando que o prazo para o cumprimento da liminar deverá ser de 05 dias da intimação da decisão de fls. 148, com aplicação de multa diária de R$400,00, limitada a 30 dias-multa; nos termos do voto do relator.
Presidiu o julgamento o Desembargador LUIZ MATEUS DE LIMA. Votaram com o relator os Desembargadores CARLOS MANSUR ARIDA e NILSON MIZUTA.
Curitiba, 02 de agosto de 2016.
Juiz ROGÉRIO RIBAS, Subst. de 2º Grau Relator
-- 1 Prevê a CF no art. 196: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
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