Íntegra
do Acórdão
Ocultar
Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.Recomenda-se acessar o PDF assinado.
Certificado digitalmente por: MIGUEL KFOURI NETO
APELAÇÃO CRIMINAL N.º 1586452-3, DA COMARCA DE PATO BRANCO VARA CRIMINAL APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ APELADO: RICARDO DE MELO RELATOR: DES. MIGUEL KFOURI NETO APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO (ART. 121, § 2.º, I E III, DO CP). CONSELHO DE SENTENÇA VOTOU PELA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO, POR ENTENDER QUE O RÉU AGIU COM EXCESSO NA LEGÍTIMA DEFESA. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. PLEITO DE NULIDADE DO JULGAMENTO, SOB A ALEGAÇÃO DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. ACOLHIMENTO. VERSÃO DEFENSIVA ISOLADA E DESTOANTE DO CONJUNTO DE PROVAS CONSTANTE DO AUTOS. POR OUTRO, TESE ACUSATÓRIA AMPARADA EM PROVA ORAL E PERICIAL. ÓBITO DA VÍTIMA DECORRENTE DE TRAUMATISMO CRANIANO E TORÁCICO. ALÉM DISSO, VÍTIMA APRESENTAVA MÚLTIPLAS FISSURAS PERIANAL. QUALIFICADORAS MANTIDAS. RECURSO PROVIDO, A FIM DE DETERMINAR QUE O ACUSADO RICARDO DE MELO SEJA SUBMETIDO A NOVO JULGAMENTO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Crime sob n.º 1586452-3, da Comarca de Pato Branco - Vara Criminal, em que é apelante o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ e apelado RICARDO DE MELO. O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ ofereceu denúncia contra RICARDO DE MELO, pela prática, em tese, do
delito previsto no art. 121, § 2.º, incisos I e III, do Código Penal, pelos fatos assim descritos na denúncia: "Consta dos referidos autos de Inquérito Policial que, na madrugada do dia 11 de maio de 2015, por volta das 04h00min, o denunciado RICARDO DE MELO, com o escopo de matar a vítima Ivo Gilberto Cordeiro Dhein, utilizou violência contra a mesma, ferindo-a mortalmente, com o que ela veio a óbito. Nesta ocasião, o denunciado RICARDO DE MELO, das dependências de sua residência, localizada na Rua Castro Alves, n.º 290 (fundos), Bairro Alvorada, nesta cidade e comarca de Pato Branco PR, com vontade livre e consciente, tendo a intenção de matar Ivo Gilberto Cordeiro Dhein, jogou a vítima por diversas vezes contra as paredes da residência, acarretando à vítima traumatismo crânio encefálico e traumatismo torácico, lesões as quais foram a causa da morte da vítima Ivo Gilberto Cordeiro Dhein (laudo de exame de necropsia de fls. 88/90). O denunciado RICADO DE MELO praticou o crime pautando-se em motivo torpe, pois agiu motivado pela negativa da vítima em manter relações sexuais com ele. Ainda, o denunciado RICARDO DE MELO utilizou-se de meio cruel, pois além de ficar por cerca de cinco horas ameaçando e agredindo a vítima, jogando-a contra as paredes, ferindo-a de todas as formas, inclusive causando fraturas em várias costelas, inseriu um objeto no ânus da vítima, ato este que não teve outra finalidade senão causar sofrimento físico à vítima, pautando sua conduta em violência extremada, infligindo à vítima Ivo Gilberto Cordeiro Dhein sofrimento atroz" mov. 1.1. Vencido o itinerário procedimental pertinente, o MM. Juiz pronunciou RICARDO DE MELO como incurso nas sanções do art. 121, § 2.º, incisos I e III, do Código Penal, a fim de ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. A defesa interpôs Recurso Crime em Sentido Estrito, autuado sob o n.º 1463470-1, o qual foi julgado desprovido por este colegiado. Encaminhados os autos para julgamento perante o Tribunal do Júri, o Conselho de Sentença, ao responder os quesitos que lhe foram apresentados, após reconhecer a materialidade e autoria delitivas, votou pelo reconhecimento de que o réu excedeu, culposamente, os limites da legítima defesa.
Diante da decisão dos Senhores Jurados, o Juiz Presidente lavrou sentença, condenando o réu pela prática do crime de homicídio culposo (art. 121, § 3.º, do CP), à pena de um (01) ano e dois (02) de detenção, em regime aberto. (Mov. 162.2). Inconformado com a decisão dos Senhores Jurados, interpõe o Ministério Público do Estado do Paraná o presente Recurso de Apelação. Pede, em suas razões, que o Réu seja submetido a novo julgamento, pois considera que a decisão desclassificatória se deu manifestamente contrária às provas contidas nos autos. Para tanto, afirma que "não há no processo nenhuma prova a amparar a versão da modalidade culposa do delito apresentada pelo apelado. Não se trata aqui de hipótese de existência de duas versões verossímeis. Absolutamente. O que se tem é uma total ausência de elementos probatórios a darem guarita a tese da modalidade culposa do delito". Além disso, asseverou que as qualificadoras do motivo torpe e emprego de meio cruel também restaram devidamente comprovadas. (Mov. 168.1) Em Contrarrazões, a Defesa pugnou pelo desprovimento do recurso Ministerial, mantendo-se a decisão recorrida em respeito à soberania da decisão do Júri. (Mov. 172.1) A douta Procuradoria Geral de Justiça, em r. parecer subscrito pela ilustre Procuradora de Justiça, Dra. Sonia Maria de Oliveira Hartmann, opina pelo provimento do recurso, para o fim de submeter o réu a novo julgamento perante o Tribunal do Júri (fls. 12/21). É a síntese do essencial.
FUNDAMENTAÇÃO E VOTO
Cuida a espécie de recurso de Apelação Criminal, interposto pelo Ministério Público em face da decisão que, com base no veredicto do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri, desclassificou a conduta atribuída ao Réu na pronúncia de homicídio duplamente qualificado para homicídio culposo. A insurgência do Representante Ministerial se resume a contestar a decisão dos jurados que reconheceu que o réu agiu com excesso culposo na legítima defesa. Afirma que a decisão é manifestamente contrária à prova dos autos, razão pela qual pretende que RICARDO DE MELO seja submetido a novo julgamento.
Pois bem. Narra a denúncia, que na madrugada do dia 11 de maio de 2015, no interior da residência do réu, após a vítima Ivo Gilberto Cordeiro Dhein se negar a ter relações sexuais com RICARDO, este, movido por motivo torpe, o agrediu fisicamente com intensa severidade, causando-lhe diversas lesões que resultaram em sua morte. Descreve, ainda, que o crime teria sido cometido com emprego de meio cruel, pois além causar diversas fraturas descritas na prova pericial, o acusado inseriu um objeto no ânus da vítima, ato este que não teve outra finalidade senão causar intenso e atroz sofrimento físico à vítima. Submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri, após responderem afirmativamente aos quesitos relativos à materialidade e autoria delitiva e negarem a absolvição, os Senhores Jurados reconheceram excesso culposo na legítima defesa, de modo que a conduta imputada ao réu restou desclassificada para a modalidade culposa. Tem-se, portanto, que a materialidade e autoria delitiva são incontestáveis, pois RICARDO DE MELO confessou em plenário que agrediu a vítima Ivo, muito embora tenha alegado que assim agiu unicamente para se defender. Assim, a controvérsia se resume à análise da presença de dolo na conduta do agente ou se, efetivamente, houve excesso na sua conduta de repelir eventual agressão injusta e iminente provocada pela vítima. Ouvido em juízo e perante o Conselho de Sentença, RICARDO DE MELO descreveu que conhecia a vítima Ivo apenas de vista e que no dia dos fatos, por volta de 13:30 horas, Ivo foi até a sua residência com uma garrafa de cachaça. Que inicialmente se negou a beber com Ivo, mas que acabou cedendo. Que beberam juntos até a madrugada e que durante esse período foi preciso comprar mais cachaça, totalizando mais ou menos umas seis ou sete garrafas. Que quando acabou o dinheiro para a compra de mais bebida, Ivo se exaltou e o ameaçou com uma faca que estava sobre a pia, afirmando que se ele não comprasse mais bebida iria mata-lo. Que tinha medo de Ivo, pois sabia que ele já tinha matado uma pessoa, razão pela qual se defendeu "dando uns coices" na costela dele. Que continuaram a brigar, utilizando, inclusive, garrafas de bebida que estavam no chão. Que acertou uma "garrafada" na cabeça de Ivo. Na sequência, pediu que Ivo fosse embora, mas ele ficou "desmaiado", "dormindo" no sofá. Que no dia seguinte, pela manhã, percebeu que a vítima continuava no sofá, que tentou acordá-la, mas sem sucesso. Que se dirigiu a casa de sua mãe para pedir socorro, pois não tinha telefone em casa. Que o SAMU foi acionado e
constatou a morte da vítima. Afirmou que não tinha a intenção de matar, pois se assim fosse, não teria prestado socorro, pois poderia ter fugido. Quanto à alegação de que teria cometido o homicídio por conta de que a vítima se negou a praticar relações sexuais, disse não ser verdadeira, pois tem mulher e nunca praticou esse tipo de relação. Ainda, negou que tenha introduzido algum objeto no ânus da vítima. Por outro lado, a testemunha Maria Terezinha Bortolini, vizinha do réu, também ouvida em juízo e em plenário, descreveu outra dinâmica para os fatos. Disse que por volta de 22:30 horas começou a ouvir barulhos vindos da casa do réu, que perduraram até tarde da madrugada. Que era possível ouvir uma pessoa (voz reconhecida pela declarante na delegacia de polícia como sendo a do réu) dizer "venha na minha cama, não quero te fazer nada, só quero aquilo lá", "deite aqui no sofá que não quero te fazer mal nenhum só quero né". Que a outra pessoa praticamente não falava, apenas respondia "me solte", "você vai me machucar". Ato contínuo, ouviu pancadas na parede, que acredita que o réu arremessou a vítima contra a parede. Note-se que a testemunha manteve a mesma versão relatada na Delegacia de Polícia, "(...) na noite de 11.05.2015, por volta das 22h30min, a depoente começou a ouvir uma voz masculina (não sabe dizer de quem) na casa de Ricardo que dizia: `deita na cama comigo porque senão vou te matar'; que minutos depois ouviu a mesma voz dizendo: `deita no chão porque eu te mato'; que `saiu' mais conversas, sempre da mesma voz, mas nem todas a depoente conseguiu identificar; que durante todas as conversas a depoente ouvia barulho de alguma coisa sendo jogada contra a parede; que não ouviu nenhum grito de socorro ou qualquer outra voz; que as conversas e o barulho de algo batendo na parede persistiu até aproximadamente as 04h00min do dia 12.05.2015; que depois disto passou a ouvir barulho de rádio ou televisão; (...)". (autos de inquérito em apenso, mov. 14.23). Corroborando com a declaração da testemunha citada acima, tem-se o laudo do exame de necropsia, que comprova que o acusado agrediu a vítima de forma brutal e reiterada, causando-lhe diversas lesões que foram a causa eficiente da sua morte. Concluiu a prova técnica que a morte da vítima, considerando um limite de segurança estimado de 30%, ocorreu entre 4:23 e 8:36 horas (informação que vai ao encontro do afirmado pela testemunha Maria Terezinha) e que o óbito decorreu de traumatismo craniano e torácico. Dentre as lesões, descreveu externamente a presença de: "1 Abrasão alongada, medindo 6,5x05mm, coberta por crosta hemática,
localizada em região parietal direita. 2 Escoriações irregulares cobertas por crosta hemática, esparsas sobre a região frontal e hemiface esquerda. 3 Escoriações irregulares esparsas em região clavicular esquerda. 4 Escoriações irregulares esparsas em região do antebraço esquerdo. 5 Abrasão extensa coberta por crosta hemática, localizada sobre as regiões hipogástrica, fossa ilíaca e quadril direito. 6 Escoriações esparsas sobre o dorso da mão direita. 7 Escoriações esparsas sobre ambos os joelhos. 8 Escoriações esparsas sobre o quadril esquerdo. 9 Escoriações esparsas sobre o dorso. 10 Equimose violácea extensa sobre o punho esquerdo. 11 Equimose perianal com fissuras múltiplas, compatíveis com penetração anal por corpo estranho" Já internamente: "1. Fratura escalonada de arcos costais à direita, 2. Fratura escalonada de arcos costais à esquerda; 3. Antracose pulmonar moderada e importante; 4. Sinais de pleurite crônica; 5. Pequena ruptura de capsula esplênica; 6. Hematoma retroperitonial à esquerda; 7. Hematoma em região de artéria aorta abdominal". Por sua vez, a dinâmica dos fatos dado pelo Apelante é isolada, pois não restou amparada em nenhum elemento de prova acostado aos autos, de modo que, se mostra imperioso o reconhecimento de que a decisão dos jurados se deu de maneira manifestamente contrária à prova dos autos. Não bastasse a ausência de elementos aptos a dar guarida a tese defensiva, há que se destacar que, conforme alegado pelo representante Ministerial "que a conduta do réu de causar sofrimento à vítima não condiz com a tese defensiva de que o mesmo agiu em legítima defesa putativa, isto porque para que seja possível a configuração desta é necessário que o agente faça uso moderado dos meios necessários para impelir a eventual agressão injusta. Ou seja, a crueldade que causou à vítima, fazendo com que ele ficasse com várias costelas quebradas, e inclusive inserindo um objeto em seu ânus não foram para sua legítima defesa, mas sim de forma dolosa, com o claro intento de tirar a vida da vítima, eis que esta tinha se negado a manter relações sexuais com o acusado". Portanto, a partir do estudo dos documentos constantes nos autos, especialmente do laudo de exame de necropsia e relatos da testemunha Maria Terezinha, considero que restou demonstrada a total incompatibilidade das lesões constatadas na vítima, que apresentada inclusive "equimose perianal com fissuras múltiplas", com a versão apresentada pelo acusado, de que agiu em legitima defesa.
Aliás, não foi outra a consideração anotada pela douta Procuradoria Geral de Justiça. Destacou o nobre Procurador que após a ingestão de elevada quantidade de bebida alcoólica, "o réu tentou manter relações sexuais com Ivo, que negou-se. Inconformado com a situação, Ricardo, com porte físico que favoreceu o réu pui 180 centímetros de altura e tinha 30 anos de idade na data dos fatos, enquanto a vítima tinha 160 centímetros de altura, 57 anos de idade e era franzino agrediu abruptamente Ivo, arremessando-o contra as paredes e causando-lhe as lesões descritas no laudo de exame de necropsia". Assim, pelo que restou analisado acima, entendo que assiste razão ao Ministério Público, pois a decisão dos Senhores Jurados, que reconheceu que o réu agiu com excesso na legítima defesa, encontra-se divorciada das provas constantes dos autos. Ademais, sobre a presença das qualificadoras, valho-me do que restou decidido no Recurso em Sentido Estrito nº 1463470-1, interposto pela defesa e decidido por este Colegiado, nos seguintes termos: "De acordo com o que constou da peça acusatória, o delito teria sido praticado por motivo torpe, ou seja, "(...) agiu motivado pela negativa da vítima em manter relações sexuais com ele" (mov. 1.1). No caso em exame, não se pode olvidar que, de fato, as provas produzidas durante a instrução processual corroboram com as circunstâncias fáticas lançadas na denúncia. Note-se que, em relação ao motivo torpe, os elementos probatórios até então colhidos revelam indícios de que o acusado e a vítima estariam juntos, no interior da casa de RICARDO, e algum tempo depois, quando já estavam embriagados, o acusado insistiu para que a vítima Ivo se deitasse com ele, externando, inclusive, a sua intenção de manter relações sexuais. Sob esse aspecto, pertinentes os relatos apresentados pela testemunha Maria Terezinha de Bortolini, que afirma ter ouvido o acusado dizer "venha na minha cama, não vou te fazer nada, só quero aquilo lá. (...) deite aqui no sofá que eu não vou te fazer mal nenhum, só quero, né..." (mov. 57.1). Também no que se refere à qualificadora prevista no art. 121, § 2.º, inc. III, do CP (emprego de meio cruel), as provas até então produzidas demonstram que a vítima foi submetida às agressões de RICARDO durante várias horas, tendo sido relatado, inclusive, que após a negativa de Ivo em manter relações sexuais com o acusado era possível ouvir
pancadas na parede. Do mesmo modo, não se pode olvidar que a prova pericial constatou a presença de "Equimose perianal com fissuras múltiplas, compatíveis com penetração anal por corpo estranho" (mov. 14.23 autos em apenso), concluindo, por fim, que a morte teria sido ocasionada por "meio insidioso ou cruel" (quarto quesito mov. 14.23). À face do exposto, define-se o voto pelo provimento do Recurso de Apelação interposto pelo parquet, para o fim de reconhecer que a Decisão dos Senhores Jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, determinando, com isso, que RICARDO DE MELO seja submetido a novo julgamento perante o Tribunal do Júri.
DISPOSITIVO
ACORDAM os julgadores integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, a fim de determinar que o acusado RICARDO DE MELO seja submetido a novo julgamento. Participaram do julgamento, votando com o Relator, os eminentes Desembargadores Antônio Loyola Vieira (Presidente) e Macedo Pacheco.
Curitiba, 02 de fevereiro de 2017.
MIGUEL KFOURI NETO Relator
|