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Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
DENÚNCIA CRIME N.º 114.284-7, DE CENTENÁRIO DO SUL. DENUNCIANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. DENUNCIADO : ANTONIO MÁRIO GUIRRO. RELATOR : DES. OTO LUIZ SPONHOLZ.
DENÚNCIA CRIME PREFEITO MUNICIPAL CRIME COMUM DEFESA OFERECIDA COM DOCUMENTAÇÃO QUE ELIDE A ACUSAÇÃO AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE SER O ACUSADO O AUTOR DO DELITO INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DA PERSECUTIO CRIMINIS REJEIÇÃO DA DENÚNCIA ARQUIVAMENTO CONSEQÜENTE EXEGESE DO ARTIGO 6° DA LEI N° 8038 DE 28/05/90.
1 Prefeito Municipal Médico - Crime comum (homicídio culposo: desatenção e retardamento em parto morte do nascituro) Denúncia (art. 121, § § 3º e 4º) -Resposta prévia do acusado Prova da defesa contundente Não recebimento da exordial acusatória.
1.1 - Nos procedimentos penais de competência originária dos tribunais, para que a denúncia seja recebida não é suficiente que descreva ela um crime em tese. Demonstrado com o acervo probatório trazido pelo acusado em sua defesa antecipada, que o fato imputado ao Prefeito (enquanto médico) não teve como causa concreta qualquer comportamento negligente, imprudente ou imperito do agente político e nem se cuidava na espécie de buscar encontrar na sua conduta um dever jurídico de agir ou um dever objetivo de cuidado, a denúncia não pode ser recebida por absoluta falta de justa causa para o exercício da persecutio criminis.
2 Agente político - Crimes de responsabilidade contra a administração pública.
2.1 - Continua a causar perplexidade a interpretação comumente aceita de que possa ser invocado o dispositivo constitucional (art. 29, X da Carta Magna) para conferir aos tribunais legitimidade para conhecer, processar e julgar fatos imputados a prefeitos municipais, decorrentes de atividades que não mantenham qualquer relação com o exercício da sua função política. 2.2 - A tal entendimento nos temos curvado, em obediência a precedentes jurisprudenciais dos tribunais superiores e em homenagem ao princípio da celeridade processual para uma rápida solução dos problemas dos jurisdicionados.
3 Inexistência de indícios suficientes de autoria em relação ao acusado médico Profissional residente em cidade diversa daquela em que se situa o hospital de internamento da gestante Existência de médicos plantonistas Atribuições previstas pelos Conselhos Regionais de Medicina Exegese do Código de Ética Médica - Omissão inocorrente Atipia Penal Rejeição da denúncia.
3.1 - Antes de deliberar acerca do recebimento da denúncia oferecida junto aos tribunais, debitando ao agente político conduta típica, compete ao colegiado analisar se ao menos há nos autos indícios de autoria por parte do acusado, vale dizer, se restou firmado nexo de causalidade entre a suposta conduta fática e o resultado lesivo para legitimar a instauração da relação processual.
3.2. - É importante ressaltar que o médico atendente da parturiente no seu pré-natal, não está obrigado a realizar o seu parto, ainda mais quando fora do horário de atendimento,é ela internada à noite em hospital situado em cidade diversa daquela em que reside o médico. Como bem ressalta a literatura médica, talvez seja o parto o exemplo mais evidente do que se convencionou chamar de ato de urgência, não podendo os profissionais plantonistas de um hospital deixar de atender parturiente em urgência, sob a alegação de que outro foi o profissional que realizou o pré-natal.
3.3. O serviço de obstetrícia exige a presença física do médico plantonista no hospital ou na clínica e nunca em mero sobreaviso, a fim de garantir um atendimento de qualidade, não expondo a gestante ou o nascituro a riscos desnecessários. Já proclamou o Conselho Regional de Medicina do Paraná que durante a noite, isto é, das 19:00 às 07:00 horas o médico plantonista fará os partos independente de quem tenha realizado o pré-natal, evitando-se, com isto, o retardo na realização do parto, capaz de ocasionar a morte fetal.
3.4. Não estando presentes na conduta do denunciado, as condições de fato referidas, inviável a instauração da ação penal por mera suposição de culpa. O processo criminal, representa por si só um dos maiores dramas para o cidadão, exigindo sacrifício ingente dos direitos da personalidade, espoliando o indivíduo da intimidade e, freqüentemente, da dignidade mesma (RT 578/379), o que deve ser afastado de pronto, quando eventual conduta omissiva não constitui ilícito penal. Denúncia Rejeitada.
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Denúncia Crime n.º 114.284-7, de Centenário do Sul, em que é denunciado ANTONIO MÁRIO GUIRRO e denunciante o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ.
I - EXPOSIÇÃO FÁTICA:
O presente procedimento foi instaurado contra Antonio Mário Guirro, Prefeito de Centenário do Sul, visando a apuração da prática do delito capitulado no artigo 121, parágrafos 3.º e 4.º, do Código Penal, pelo cometimento do seguinte fato delituoso assim narrado na exordial acusatória:
Em data de 09 de maio do ano de 2000, por volta de 5h00, a Sra. Denise Rodrigues Fernandes, em final de gestação, passou a sentir dores no ventre, em razão de que seu marido a levou até o Hospital Municipal de Porecatu, lá chegando por volta das 5h35, sendo atendida por enfermeiras que lá se encontravam, evidenciando-se que a parturiente encontrava-se no final de sua gestação, com história clínica de perda de líquido de cor amarela. Do Auto de Exame de Corpo de Delito, consubstanciado no Parecer Médico Legal de fls. 86 a 90 do inquisitorial, que retrata criteriosamente a prova colhida, desde a testemunhal até a análise detalhada do prontuário médico do nosocômio onde a parturiente estava internada (Hospital Municipal Dr. Egas Penteado Izique), colhe-se que dita paciente, Sra. Denise Rodrigues Fernandes, no referido dia 09.05.00, em face daquele quadro clínico apresentado, foi examinada pelo Dr. Pedro, que constatou que a paciente não apresentava dilatação, com o batimento cardio-fetal (BCF) de 140 bmp, sendo então comunicado o Dr. Guirro, médico do pré-natal, que autorizou que a paciente ficasse em observação. A evolução do trabalho de parto no dia referido foi assim: às 07h40: batimento cardio-fetal = 140 bpm; às 08h15: batimento cardio-fetal = 140 bpm. Examinada pelo Dr. Galdioli, que constatou dilatação do colo uterino de +/- 2,0 cm de dilatação uterina, dinâmica de 1 (uma) contratação em 10 minutos; bolsa rota com líquido sanguinolento, batimento cardio-fetal = 140 bpm; às 10h30: continua no mesmo quadro anterior apresentado, batimento cardio-fetal = 136 bpm; às 11h00: paciente tranqüila, desanimada, não aceitou a dieta oferecida; às 14h00: paciente nervosa, apresentando batimento cardio-fetal = 138 bmp; às 15h00: realizado exame ginecológico pela auxiliar Marli, apresentando +/- 2,0 cm de dilatação e neném alto, com batimento cardio-fetal = 140 bpm; às 15h40: comunicado via telefone Dr. Guirro que orientou deixar a paciente em observação; às 15h45: consta no relatório de enfermagem: Após comunicar o Dr. Guirro, foi passado para o Dr. Aroldo o quadro da mesma. Ele veio, auscultou o BCF, observou contração, altura uterina e conversou com a paciente. Dr. Guirro ligou e os dois conversaram; às 16:00: batimento cardio-fetal = 140 bpm; às 17h45: Dr. Guirro mandou continuar em observação, qualquer coisa ele vem, ou amanhã cedo ele faz a cirurgia; às 18h00: paciente tranqüila, batimento cardio-fetal = 140 bpm; às 19h50: paciente tranqüila, com perda de líquido, contratações uterinas, batimento cardio-fetal = 136 bpm, sem dores; às 22h00: paciente com dores, que irradia para baixo ventre (BV), batimento cardio-fetal = 152 bpm. A evolução do trabalho de parto no dia 10.05.00 foi a seguinte: às 00h00: apresenta contração uterina com +/- 2,5 cm de dilatação, com BCF = 144 bpm, com líquido amniótico de cor esverdeada; às 01h30: paciente com fortes dores em baixo ventre, contrações uterinas; foi comunicado Dr. Guirro que, autorizou por telefone, aplicar Valium IM (intra-muscular) e glicose 25% 01 (uma) ampola e Buscopam composto via (EV endo-venosa); às 01h40: BCF = 168 bpm; às 02h40: feito toque ginecológico, dilatação +/- 4,0 cm; às 3h30: BCF = 160 bpm; às 05h00: paciente com fortes dores em baixo ventre (BV), contrações uterinas, perda de líquidos, com 6,0 cm de dilatação; às 06h15: encaminhada para Sala de Parto para exame. Mediante o mesmo, a paciente apresenta dilatação total, bolsa rota, e referindo intensa dor em baixo ventre. Consta no campo observação: comunicado Dr. Guirro, o mesmo, prescreveu via telefone: soro glicosado 250 ml + 4 orastina, que já estava a caminho; às 07h00: deu à luz uma criança do sexo masculino, peso = 2.850 gramas, natimorto; às 07:55 horas paciente retorna ao leito; às 08h30: refere cefaléia; às 12h00: paciente apresenta-se mais calma; às 15h00: paciente é orientada ao banho com auxílio, apresenta lóquios normais; às 17h00: paciente comunicativa, sem queixas; às 20h00: paciente tranqüila, sem queixas. A evolução clínica pós-parto da paciente, no dia 11.05.00, foi a seguinte: às 00h00: paciente dormindo no momento; às 05h00: paciente tranqüila, lóquios normais, e sem queixas no momento; às 07h30: paciente desanimada, sem queixas no momento; às 09h00: paciente recebe alta médica. Em relação ao Relatório Médico, consta do referido Parecer: 1. Evolução médica no dia 09.05.00: a) Prescrição: 1) Tricotomia; 2) Ficar em observação; b) Evolução médica: paciente gesta = II/I em trabalho de parto. Colo dilatado um dedo, grosso, contrações fracas, cefálico. Cesária anterior. Assinada pelo Dr. Guirro. 2. Evolução Médica do dia 10.05.00: a) Prescrição: 1) Controlar batimento cardo-fetal; 2) Glicose + Buscopan endovenoso; 3) Diazepam 10 mg intramuscular; 4) Soro glicosado 250 ml e Orastina 4 amp = endovenoso; 5) Methergin 01 amp intramuscular 12/12 horas; 7) Dieta livre; 6) Evolução médica: assinada pelo Dr. Guirro 6:00 horas: colo com dilatação quase total. Parto normal. Feto único, masculino, natimorto. 3. Evolução médica do dia 11.05.00: Alta assinada pelo Dr. Galdioli. Dessume-se, à vista dos elementos carreados para o inquisitorial, que o denunciado ANTONIO MARIO GUIRRO era o médico responsável pelo pré-natal da Sra. DENISE RODRIGUES FERNANDES, bem assim responsável pelo acompanhamento ante e pós-parto da mesma e que esta foi internada no hospital com quadro de bolsa rota, condição que, por si só, caracteriza urgência obstétrica. Mesmo assim, por volta das 08h15: do dia 09.05.00, ainda que avisado telefonicamente destas condições da paciente (que tinha mais ou menos 2,0 cm de dilatação uterina, dinâmica de 01 (uma) contração em 10 minutos, bolsa rota com líquido sanguinolento, batimento cardio-fetal = 140 bpm, o denunciado, omitindo a diligência especial a que estava obrigado em face das circunstâncias (=negligência), ao invés de comparecer, incontinenti, ao referido hospital, para prestar naquela situação grave e concreta, imediato, cauteloso e direto atendimento à gestante, simplesmente desimcumbiu-se do caso por telefone, à distância, sendo que o acompanhamento do trabalho de parto, a partir daí, foi realizado por auxiliares de enfermagem. Nesse mesmo dia 09.05.00, às 15h40, em face da condição da gestante, foi o denunciado Antonio Guirro novamente comunicado, via telefone, limitando-se este a orientar apenas para que aquela fosse deixada em observação. Às 17h45, o denunciado reiterou a orientação para que a paciente continuasse em observação, qualquer coisa ele vem ou amanhã cedo ele faz a cirurgia. A partir das 22h00 houve um aumento do batimento cardíaco-fetal (BCF=152), indicativo de sofrimento fetal agudo, o qual tornou-se mais evidente a seguir, à 00:00 hora, com a presença de mecômio e maior aumento dos batimentos cardio-fetais (BCF = 168), à 01h40 hora. No dia 10.05.00, à 00h00, a paciente apresentou contração uterina com mais ou menos 2,5 cm de dilatação, com BCF = 144 bpm, com líquido amniótico de cor esverdeada, sendo que à 01h30, apresentou fortes dores em baixo ventre, contrações uterinas, tendo sido novamente comunicado o ora denunciado que, igualmente por telefone, à distância, mandou aplicar-lhe alguns medicamentos. Às 05h00, a paciente apresentava fortes dores no baixo ventre (BV), contrações uterinas, perda de líquidos, com 6,0 cm de dilatação, sendo que às 06h15 foi encaminhada para a sala de parto para exame, apresentando então dilatação total, bolsa rota, e referindo intensa dor em baixo ventre. Foi o denunciado novamente comunicado, tendo agora prescrito, telefonicamente, soro glicosado 250 ml + 4 orastina, dizendo, apenas a esta altura dos acontecimentos, que já estava a caminho. Às 07h00, já agora no hospital, o denunciado procedeu ao parto da gestante Denise Rodrigues Fernandes, tendo nascido uma criança do sexo masculino, pesando 2.850 gramas, natimorto (fls. 24, PEPPP). O decesso do nascente, como concluíram os insignes peritos, decorreu de sofrimento fetal agudo, devido ao retardo na realização do parto (erro médico, por negligência). Como consta do corpo de delito, o sofrimento fetal agudo é uma situação de emergência obstétrica que exige intervenção médica imediata, devido ao risco de morte fetal (fl. 89). Verifica-se, então, que o médico-denunciado, que também é Prefeito de Centenário do Sul, desde quando foi comunicado da gravidade do quadro pela primeira vez (às 09:00 horas do dia 09.05.00) até quando resolveu dirigir-se ao hospital (entre 06:15 a 07:00 horas, do dia 10.05.00), como médico responsável pela paciente, violou a diligência especial a que estava adstrito, obrando de forma negligente (=desatenção, desleixo, indiferença), causando desta forma a morte de uma pessoa (nascituro), resultado este que, embora involuntário, era objetivamente previsível para o denunciado, que é médico experiente na área da ginecologia, mas que supôs, levianamente, que não ocorreria (=culpa consciente). Tal evento teve como causa justamente o retardo na realização do parto. Um outro profissional, dotado de discernimento e prudência ordinários, nestas mesmas circunstâncias, ter-se-ia conduzido de forma diversa, evitando o evento danoso notificado no inquérito (=dever objetivo de cuidado). Em relação à previsibilidade subjetiva, é válido antecipar que em relação ao denunciado, nas circunstâncias concretas em que atuou e tendo-se em vista suas condições pessoais, poderia ele ter-se comportado diversamente. Por isso que não se revela excrecente supor que este preferiu o conforto e o aconchego do seu lar, numa outra cidade, a atender imediatamente uma humilde paciente, que ao invés de um filho acabou por gerar uma vítima. O fato delituoso, por outro lado, resultou de inobservância de regra técnica de profissão, já que o denunciado é profissional (da medicina), caso em que se acresce a medida do dever de diligência e cuidado e a reprovabilidade da falta de atenção, diligência ou cautelas exigíveis. Com efeito, afora a negligência, é evidente a inconsideração com que agiu, desprezando as regras da sua profissão, e por esse desinteresse provocando o evento danoso. O fato culposo, portanto, resultou qualificado. Protesta-se, seja o caso, a que no decorrer da instrução ou após a realização de diligência que à parte será postulada, seja a presente denunciada aditada em relação a outros médicos que trabalharam no hospital nos dias em que ocorreu o fato ora denunciado.(cf. fls. 3/10)
Notificado, Antonio Mário Guirro ofereceu resposta preliminar às fls. 213/226, sustentando que na sua conduta não houve erro médico por negligência, porque durante a internação a paciente estava tranqüila e o batimento cárdio fetal sempre constante e regular, sendo que somente entrou em verdadeiro trabalho de parto por volta da 00h do dia 10/05/00, quando as contrações se tornaram freqüentes e com dilatação de 2 a 3 centímetros, sempre com batimento cárdio fetal audível e regular e a partir daí o parto evoluiu rapidamente, ocorrendo o nascimento por volta das 07h do dia 10/05/00. Alegou que não pode ser responsabilizado criminalmente por complicação que não chegou ao seu conhecimento, pois a evolução para parto normal ocorria de maneira usual, tanto que houve dilatação total e bolsa rota, com o nascimento do feto, não tendo contribuído de qualquer forma para a causa da morte. Asseverou que se houve retardo na realização do parto, não foi por ele provocado, uma vez que não recebeu nenhum comunicado sobre o eventual agravamento do quadro clínico da parturiente, o que ocorreu no período compreendido entre a 01h40 e 06h do dia 10/05/00, conforme anotações no prontuário da paciente. Concluiu que se no período crítico decisivo para se interromper a gravidez por cesariana o denunciado não recebeu nenhuma comunicação do estado da parturiente, obviamente não se pode imputar a ele quaisquer culpas, mesmo porque não era plantão do denunciado. Afirmou ainda que o hospital onde ocorreram os fatos não conta com enfermagem especializada ou bem treinada no setor de obstetrícia para ajudar o trabalho médico no acompanhamento à gestante. Aduziu ainda que tem bons antecedentes,com mais de 35 anos de profissão e aproximadamente 3000 partos realizados e que está no terceiro mandato como prefeito municipal de Centenário do Sul. Juntou documentos às fls. 225/227. Sobre os documentos juntados, manifestou-se a douta Procuradoria Geral de Justiça, às fls. 240/259, salientando que a alegação de que o denunciado havia recebido apenas dois telefonemas, o que demonstrava a falta de gravidade do caso, não condiz com a realidade, tendo em vista que foi várias vezes avisado da situação emergencial da paciente. Ratificou, ao final, seu posicionamento inicial, no sentido do recebimento da denúncia. O denunciado, em manifestação sobre os documentos juntados às fls. 149/180, afirmou que os documentos apresentados corroboram com sua defesa, ou seja, que no período compreendido entre 01h30 e 06h00 do dia 10/05/00 não recebeu nenhum comunicado sobre o eventual agravamento do quadro clínico da parturiente. É a breve exposição.
II - VOTO E SUA FUNDAMENTAÇÃO:
1. Da rejeição da denúncia crime:
As excelentes colocações feitas pelo Ministério Público (fls. 240 usque 259), trazendo aos autos estudo exaustivo acerca do conceito de ação e dos requisitos de sua admissibilidade e as condições objetivas para a sua instauração só engrandece o já excelente prestígio cultural da instituição em nosso Estado. No entanto, não há como se sustentar, em face do disposto no artigo 6° da lei n° 8.038/90, que não é possível a apreciação antecipada (sic) dos termos da acusação, com a rejeição , sob pena de se proibir à acusação o direito de provar o fato narrado. Claro é que na espécie é possível a rejeição da denúncia, por falta de justa causa, se com a defesa antecipada consegue o acusado demonstrar, ictu occuli, a inexistência de indícios de ser ele o autor do fato típico. E a possibilidade do oferecimento de provas já na fase inicial da defesa, com as razões de resistência à instauração da ação penal pleiteada pelo Ministério Público, possibilita a que o órgão julgador proclame a improcedência da pretensão punitiva, com a demonstração de que o denunciado não cometeu o crime imputado. Demonstrada a inexistência da autoria atribuída ao denunciado e a falta de justa causa para a instauração da ação penal, ilegal é a pretensão acusatória equivocadamente deduzida pela acusação. E o equívoco pode acontecer com maior intensidade, quando a preambular acusatória é oferecida quando inexistem, ao menos, indícios nos autos a indicar a autoria do crime por parte do acusado. Não só existe a possibilidade de exame da prova pelo Tribunal quando for deliberar acerca do recebimento da denúncia ou sua rejeição, mas um imperativo dever que assim o faça, para que delibere, se for o caso, pela
improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas. (artigo 6º, in fine Lei nº 8.038/90)
Desde que a defesa consiga trazer elementos idôneos de convicção, capazes de elidir os termos da denúncia, impedido estará o Tribunal de instaurar a relação processual, - com o recebimento de denúncia que imputa a autoria ao acusado, sem nem ao menos existir indícios nos autos. Procedimento contrário poderia caracterizar a prática de abuso do poder, por parte do Tribunal, determinando a instauração de procedimento penal sem justa causa. Feitas essas considerações, veja-se que é inviável, na espécie, a pretensão punitiva exteriorizada na denúncia. A própria e douta Procuradoria Geral de Justiça (fls. 10) sustenta, que no decorrer da instrução ou após a realização de diligências que à parte será postulada, seja a presente denúncia aditada em relação a outros médicos que trabalharam no hospital nos dias em que ocorreu o fato ora denunciado.
Ora para que seja possível decisão positiva acerca da viabilidade da denúncia, mister se faz verificar se a ação é viável, e essa só será viável se a pretensão punitiva que nela se contém, constitui justa causa para sua instauração. Depreende-se, também, a existência de uma das hipóteses impeditivas do disposto nos incisos do artigo 43 do Código de Processo Penal, para o recebimento da denúncia, a saber:
I O fato narrado evidentemente não constituir crime; II já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa; III for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.(grifos nossos)
2. Da inexistência de indícios de ser o acusado o autor do delito:
Trata-se os autos de homicídio culposo qualificado em razão do médico que acompanhou a gestante no pré-natal ter retardado a realização do parto. Importante salientar que o acusado em questão é prefeito de Centenário do Sul e está em seu terceiro mandato, que não tem antecedentes criminais e que realizou mais de 3000 partos em aproximadamente 35 anos de profissão. Ora, o hospital que o acusado atende é de Porecatu, ou seja, em outra cidade. Assim, em casos de urgência médica, não seria ele o autor do delito que lhe fora imputado, vez que não fora arrolado como plantonista médico do hospital quando do ocorrido. O retardo na realização do parto não fora provocado pelo denunciado, que tampouco concorreu de qualquer forma para o resultado, vez que entre 01h30 e 06h00 não recebeu nenhum comunicado sobre o eventual agravamento do quadro clínico da parturiente, conforme comprova a fatura telefônica de fls. 226. Importante ressaltar que o médico que atendeu a parturiente no seu pré-natal, não está vinculado a realizar o seu parto, ainda mais quando fora do seu horário de atendimento no hospital. Em casos análogos, já se pronunciou o Conselho Regional de Medicina:
1. É desejável, porém não obrigatório, que o parto seja realizado pelo mesmo profissional que acompanhou a gestante no pré-natal; 2. O parto talvez seja o exemplo mais evidente do que se convencionou chamar de urgência; 3. Não pode o médico plantonista de um hospital, recusar-se a atender uma paciente em urgência, com a alegação de que não realizou o pré-natal; 4. A Constituição Federal em seu artigo 196, garante ao cidadão o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde; 5. Uma vez credenciados pelo SUS, devem os hospitais de Loanda, obedecer às normativas do gestor local do SUS e assumir a sua condição como parte de uma rede local de saúde, composta pela rede municipal (que presta o atendimento básico) e rede hospitalar (que dá apoio a primeira); ... (Parecer nº 0742, de 29 de novembro de 1995)
O Código de Ética Médica preceitua: artigo 7º - O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente. (Parecer nº 0781/96)
Assim sendo, ao realizar plantão em serviço de emergência e independente da remuneração, está o médico sujeito ao atendimento obrigatório de situações que se caracterizem como risco de vida ou que possam ser caracterizadas como negligência ou imprudência, e que possam resultar em danos para o paciente. Tal obrigatoriedade aplica-se em qualquer outro momento no exercício da profissão, em que tais situações se configurem. (Parecer nº 6883/00)
Fica determinado que a partir de 01/06/98, o seguinte: 1) O Médico que fizer o pré-natal da paciente, fica responsável por fazer o respectivo parto ou cesariana durante o período diurno, das 7:00 horas às 19:00 horas. Portanto o Médico de plantão não fará partos durante o dia e sim o médico que fez o pré-natal. 2) Durante a noite, isto é, das 19:00 horas às 7:00 horas o Médico fará os partos independente quem fez o pré natal. (Parecer nº 1305/01)
O serviço de obstetrícia exige a presença do médico no local e nunca de sobreaviso a fim de garantir um atendimento de qualidade não expondo a gestante e o feto a riscos desnecessários. Deste modo, acredito que as normas da Instituição devem prever a necessidade da existência de médicos plantonistas no local e que o atendimento da gestante deve ser efetuado pelo médico plantonista ou assistente médico no local desde a consulta, evolução do internamento, parto e pós parto imediato. Caso a Clínica não tenha em suas normas a obrigatoriedade do plantonista no local deve fazê-lo com urgência alterando o estatuto ou regimento interno para se adequar aos preceitos orientadores da ética médica. (Parecer nº 1304/2001)
Ao médico de plantão cabe a responsabilidade do atendimento de todos os casos de emergência chegado ao Hospital, bem como a atendimento de todas as parturientes que adentrarem o Hospital, sem pré-natal ou mesmo quando o médico da paciente estiver impossibilitado do atendimento. (Parecer nº 1209/99)
Por sua vez, o Conselho Federal de Medicina sobre o tema aduz:
Concluindo, não nos parece haver uma obrigação legal quando à presença do médico pré natalista no momento do parto, pois pode até não ser encontrado, mas é uma obrigação ética que deve ser levada em conta. (Processo consulta nº 8.965/99)
Diante do acima exposto e do que consta dos autos, nota-se que não há sequer indícios de ser o acusado o autor do crime que lhe foi imputado. Sobre a questão da responsabilidade do médico, são os julgados:
RESPONSABILIDDE CIVIL DO MÉDICO PROVA QUE NÃO IDENTIFICA, MODO SUFICIENTE, A PRÁTICA DETERMINANTE DO DANO E NEM A SUA AUTORIA. Ausente a comprovação do nexo de causalidade entre o fato e o resultado. Contrato de meio. Improcedência da ação. (TJ/RS, ac. nº 598371698, 5ª Câmara Cível, rel. Des. Clarindo Favretto, j. 02/09/99)
HOMICÍDIO CULPOSO DELITO IMPUTADO A MÉDICO OMISSÃO PROFISSIONAL DENÚNCIA FUNDADA, PORÉM, EM MERA SUPOSIÇÃO DE CULPA INADMISSIBILIDADE FATO, ALIÁS, ATÍPICO REJEIÇÃO MANTIDA INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 121, § 3º DO CP E 43, I, DO CPP. Mera suposição de culpa, por mais razoável que seja, não justifica o desencadeamento de processo criminal, que representa, por si só, um dos maiores dramas da pessoa humana. Exige sacrifício ingente dos direitos da personalidade, espoliando o indivíduo da intimidade e, freqüentemente, da dignidade mesma. (grifos nossos, TACRIM/SP, recurso crime nº 328.885, 3ª Câmara Criminal, rel. Juiz Ralpho Waldo, RT 578/379)
Importante trazer à colação trecho do voto do relator dr. Juiz Ralpho Waldo:
Não prova, destarte, a ocorrência de elementos que são fundamentais à configuração do fato típico, a própria conduta omissiva e, conseqüentemente, a relação de causalidade que deve existir entre a conduta e o resultado danoso. Resta claro, nessas condições, que, não se podendo falar em fato típico, a conduta que teve o denunciado, ao diagnosticar o mal de que estava acometido o paciente e ao prescrever o tratamento, passa a ser atípica, quer dizer, segundo a precisa lição de DAMÁSIO E. DE JESUS, um indiferente penal (Direito Penal, vol. 1º/210, Saraiva, 1982), diante do que se impunha a rejeição liminar da denúncia. O mesmo se diga quanto ao fundamento hostilizado pelo MM. Juiz de Direito, que se apoiou na ausência de tipicidade, que outra coisa não é senão um outro elemento do fato típico. O magistério de José Frederico Marques, citado no despacho ora impugnado (Tratado de Direito Penal, vol.; 4º/230, Saraiva, 1961), é perfeito: nos delitos culposos, o laço de conexão subjetiva que se realiza através da culpa está imanente no tipo, do que se conclui que uma ação antijurídica de que resulte dano à vida ou à integridade corporal só se enquadra num dos tipos respectivamente do artigo 121, § 3º e 129, § 6º, quando a conduta do agente, além de antecedente material do evento (relação de causalidade), provocou o resultado danoso por culpa do agente. ... A denúncia, ademais, fundou-se em mera suposição de culpa, o que não se justifica, pelos males que acarreta ao acusado o desencadeamento do processo criminal. A tais conclusões se chega através de um exame perfunctório dos elementos de informação trazidos ao inquérito policial. Não se cuidou, nem se cuida, de balancear e cotejar as provas ou de absolver prematuramente o denunciado, mas de verificar, dentro dos limites impostos à atuação do magistrado, nessa fase preliminar do processo, se o fato imputado é típico ou atípico. O recebimento da denúncia deve ser fundamentado, impondo-se ao juiz, nesse passo, o controle da existência de justa causa para a ação penal, a fiscalização daquele mínimo de prova necessário ao prosseguimento do processo criminal, a fumaça do bom direito, sem a qual restarão atingidos irremediavelmente, se recebida a inicial acusatória, a dignidade e a própria liberdade do acusado. Daí, por sinal, a lembrança que faz, no tema José Frederico Marques: Não há, no caso, um juízo de formação da culpa, com apuração rigorosa do corpo de delito. O que existe é um despacho de delibação, provisório e simples, em que o juiz apura se já aquela fumaça de bom direito que autoriza a instauração da persecutio criminis em sua fase processual. (Elementos de Direito Processual Penal, vol. 2/167, Forense, 1961).
No mesmo diapasão, guardados os limites impostos à atividade do juiz da referida tarefa, a jurisprudência deste E. Tribunal:
Mera suposição de culpa, por mais razoável que seja, não justifica o desencadeamento de um processo criminal, que representa, por si só, um dos maiores dramas para a pessoa humana; exige um sacrifício ingente dos direitos da personalidade, espoliando o indivíduo da intimidade e, freqüentemente, da dignidade mesma. (julgados do TACRIM/SP 67/225).
No caso dos autos, verifica-se que não houve nexo de causalidade entre a conduta do acusado e o delito, havendo apenas meras presunções de culpabilidade. Contudo, não há sequer indícios de ser o alcaide o autor do crime ora em análise. Sobre a inexistência de indícios de ser o acusado o autor do crime que lhe foi imputado, são os julgados:
HABEAS CORPUS PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA ALEGAÇÃO DE COAÇÃO ILEGAL POR ABUSO DE PODER COM RECEBIMENTO DE DENÚNCIA INEPTA NULIDADE DO PROCESSO AB INITIO EM RELAÇÃO AO PACIENTE, FACE A INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS SUFICIENTES PARA IMPUTAR-LHE O DELITO DO ARTIGO 272, §1º DO CP ORDEM CONCEDIDA. (TJ/PR, ac. nº 3967, rel. Des. Lenz César, 2ª Câmara Criminal)
PENAL PROCESSUAL HOMICÍDIO QUALIFICADO SUPOSIÇÕES QUANTO A AUTORIA INTELECTUAL AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES INÉPCIA DA DENÚNCIA PROCESSO NULO. 1. Não pode o Ministério Público agarrar-se a suposições, mesmo as tiradas, como neste caso, do disse-me-disse comum em ociosas comunidades interioranas, onde a imaginação é sempre mais fértil à falta do que fazer. É quando vox populi não é vox dei. Suposições não valem para embasar denúncia. 2. Instaurar ação penal a partir de denúncia sem prova é muito perigoso para a democracia, que tem entre seus compromissos primeiros o da realização da justiça com a presunção da inocência, o devido processo legal, o livre contraditório e a ampla defesa. 3. Denúncia inepta, processo nulo. Recurso ordinário provido. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso em habeas corpus nº 11.140, 5ª Turma, rel. Min. Edson Vidigal, j. 28/6/2001)
RECURSO EM HABEAS CORPUS TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL MEDIDA EXTREMA. 1. Ocorrida a prática de um ilícito penal, faz-se necessária a ampla apuração da materialidade e autoria do fato criminoso, não consubstanciando a instauração de inquérito policial, em regra, constrangimento ilegal. 2. O indiciamento de pessoa contra a qual não se tem na luz da evidência, primus ictus oculi, mínimos indícios de autoria, caracteriza constrangimento ilegal, passível de ser sanado pela via do habeas corpus. 3. Recurso provido para excluir o paciente da condição de indiciado. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso ordinário em habeas corpus nº 9.459,6ª Turma, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 02/02/2001).
RECURSO EM HABEAS CORPUS TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL FALTA DE JUSTA CAUSA AUSÊNCIA DE ELEMENTOS MÍNIMOS PARA O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA RECURSO PROVIDO. É cabível o trancamento da ação penal quando se afigura flagrante a inexistência de indícios mínimos de autoria suficientes a justificar o início da persecução criminal. Recurso provido. (Superior Tribunal de Justiça, Recurso ordinário em habeas corpus nº 11.767, 5ª Turma, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 18/10/2001)
Quanto à análise da falta de justa causa para embasar a denúncia, importante destacar parte do judicioso voto do eminente relator Min. José Arnaldo da Fonseca:
É cediço que para o oferecimento de denúncia não é necessário provar cabalmente a autoria do delito bastando à exordial acusatória estar lastreada por indícios mínimos suficientes. Ocorre que, no presente caso, de forma flagrante, não há tais indícios a corroborar a exordial acusatória. ... Não se trata, ressalta-se, de exame aprofundado de provas, é flagrante nos autos a ausência de elementos suficientes para a denúncia, tornando a mesma abusiva eis que oferecida sem suporte mínimo. Neste caso a jurisprudência desta Corte autoriza o trancamento da ação penal. Nesse sentido: ... RECURSO EM HABEAS CORPUS TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL MEDIDA EXTREMA. 1. Ocorrida a prática de um ilícito penal, faz-se necessária a ampla apuração da materialidade e autoria do fato criminoso, não consubstanciando a instauração de inquérito policial, em regra, constrangimento ilegal. 2. O indiciamento de pessoa contra a qual não se tem na luz da evidência, primus ictus oculi, mínimos indícios de autoria, caracteriza constrangimento ilegal, passível de ser sanado pela via do habeas corpus. 3. Recurso provido para excluir a paciente da condição de indiciado. (RHC nº 9.459/RJ, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 25/06/2001).
Diante do acima exposto, é de ser rejeitada a presente denúncia crime por falta de justa causa, tendo em vista que não há dados nos autos que atribuem a autoria do delito ao acusado.
3. Da ausência de suporte probatório a sustentar a exordial acusatória, tendo-a como inepta, ensejando, por conseguinte, a sua rejeição: Do conjunto probatório dos autos, tenta fazer crer a acusação que o fato de o médico denunciado ter atendido a parturiente no seu pré-natal estaria ele vinculado à realização do parto. Com efeito, diante da responsabilidade civil do médico (contrato de meio) e dos pareceres citados no voto, entendo que não há essa obrigatoriedade. Logo, não há como se ver o nexo de causalidade entre o delito e a autoria atribuída ao alcaide, devendo a exordial acusatória ser rejeitada. Sobre o assunto, é o entendimento jurisprudencial:
É inepta a denúncia que, fundada em meras conjecturas dissociadas da prova indiciária até então apurada, imputam ao paciente o crime definido no artigo 304 do Código Penal independentemente de qualquer elemento de convicção quanto ao dolo, direto ou eventual, indispensável à tipificação penal do fato. (Jurispenal do Supremo Tribunal Federal , 27/71).
Não basta que a denúncia narre um crime em tese, mister se faz que esta narrativa tenha algum lastro, se funde em qualquer elemento que torne admissível a verossimilhança da mesma. O contrário estaria o cidadão a responder o processo criminal por simples capricho de um promotor de justiça, que arbitrariamente entende de denunciá-lo. (TJ/SP, recurso criminal nº 77.149, 2ª Câmara Criminal, rel. Des. Acácio Rebouças, RT 362/112).
A denúncia que não se arrima em um mínimo de prova é inepta por ausência de justa causa para o exercício da ação penal. (TJ/SP, HC nº 4.516, rel. Des. Eduardo Pedro da Luz, RT 421/325)
Não se concebe denúncia ou queixa que não se alicerce em elementos informativos capazes de gerar a razoável convicção sobre a existência de um crime e de sua autoria. (TJ/SP, recurso criminal nº 60.262, 3ª Câmara Criminal, rel. Des. E. Custódio da Silveira, RT 284/169).
Não pode a denúncia amparar-se em suposições. O ato acusatório deve basear-se pelo menos em indícios, no concernente à autoria, sob pena de inexistir justa causa para seu recebimento. (TACrimSP, HC nº 139.920-2, 2ª Câmara Criminal, rel. Juiz Lustosa Goulart, RT 606/356).
E quanto ao ônus da prova, embora tenha a douta Procuradoria afirmado a imperiosa necessidade de o denunciado provar sua inocência, é inconteste que incumbido estava o órgão julgador de provar sua pretensão, pois, determina o artigo 156, 1ª parte, do Código de Processo Penal:
A prova da alegação incumbirá a quem a fizer.
DAMÁSIO E. DE JESUS, ao comentar tal disposição normativa, assim se manifestou:
Em processo penal, a prova da alegação incumbirá a quem a fizer. É a regra contida na primeira parte da disposição. Assim, a prova deve ser feita por quem alega o fato, a causa ou a circunstância. Se o Ministério Público oferece denúncia contra o réu por crime de homicídio, incumbe ao órgão da acusação demonstrar a prática do fato e sua autoria. No tocante ao fato concreto cometido pelo sujeito, incumbe à acusação a prova dos elementos do tipo, sejam objetivos, normativos ou subjetivos. Em relação aos delitos materiais, a prova acusatória deve estender-se à demonstração da realização da conduta, da produção do resultado e do nexo de causalidade entre uma e outro. A prova do dolo e da culpa, elementos do tipo, incumbe também à acusação. (in, Código de Processo Penal Anotado, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 135).
Em nossa legislação pátria, prevalece, no aspecto criminal, o princípio do estado de inocência, tendo toda a pessoa acusada do cometimento de um delito o direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa, através de sentença condenatória transitada em julgado. Assim, não deve prosperar a presente denúncia, devendo estes autos, já que não demonstrados indícios de autoria por parte do Dr. Antonio Mário Guirro. Não é demais lembrar que, a lei penal, ao prever ações e omissões contrárias à ordem jurídica, define crimes e fixa-lhes as penas correspondentes, de modo que aqueles que eventualmente venham a transgredir a norma penal, a ela restam sujeitos. Somente quando violada a norma penal o exercício do ius puniendi, reservado ao Estado, se modifica do plano abstrato, para reprimir o infrator da norma, transformando-se num direito real e concreto, denominado pretensão punitiva que, através da ação penal (poder-dever de punir) torna aquela realidade. Todavia, a ação penal, resultante das garantias individuais, sofre limites que, ultrapassados, impõem a rejeição da peça em que formalmente se deduziu a chamada pretensão punitiva, porquanto, v.g., não se admite o recebimento de uma denúncia se esta não descreve o fato típico e traz indícios de autoria por parte do acusado. Realmente,
estando o direito de agir conexo a uma pretensão e, portanto, ligado a uma situação jurídica concreta, subordina-se ele a condições, as quais devem ser apreciadas antes do julgamento sobre a procedência ou improcedência da pretensão: possibilidade jurídica do pedido; legítimo interesse; legitimação para agir. (cf JÚLIO FABBRINI MIRABETE, in Processo Penal, 8ª ed., São Paulo, Atlas, 1998, p. 103).
Com efeito, o conforme já citado, dispõe o artigo 41 do Código de Processo Penal:
A denúncia ou a queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
Nesta hipótese concreta, carece o Ministério Público de interesse de agir, requisito prévio de admissibilidade de acusação, que a doutrina nacional, representada pelos professores JOSÉ FREDERICO MARQUES e TOURINHO FILHO, muito bem conceituaram o instituto, declinando-o como indispensável para que o órgão jurisdicional possa satisfazer a pretensão punitiva. O interesse de agir se assenta no alicerce da idoneidade do pedido,
pois quando se oferece uma denúncia (ou queixa) deve a inicial ser acompanhada de elementos mais ou menos idôneos que convençam o magistrado da seriedade do pedido (in Elementos de Direito Processual, Editora Forense, vol. I, pág. 75).
De modo a não poder ser instaurada uma ação penal sem que esteja embasada na existência de um fato delituoso, identificados os seus autores e demonstrada, concreta e objetivamente, a participação de cada um. É que a opinio delicti deve traduzir-se em elementos induvidosos e seguros, captado no procedimento investigatório, pois não se justifica o andamento da ação penal, quando não habita nos autos suporte fático para os elementos que integram e conceituam o delito ou delitos imputados ao denunciado. Ora, quando a peça acusatória não tem qualquer outro suporte ocorre, permissa venia, abuso de poder da acusação, como bem adverte HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, existindo na espécie,
ausência de viabilidade do direito de ação, por falta de legítimo interesse, o que impõe a rejeição da denúncia. (cf. Jurisprudência Criminal, Forense, pág. 182).
Os julgados de nossos Tribunais, endossando a moderna doutrina do processo penal,
irmanaram-se no sentido de que para o recebimento da denúncia ou queixa, não basta a existência de uma peça formalmente perfeita com os requisitos exigidos pelo artigo 41 da Lei Adjetiva Penal, mas que a mesma venha acompanhada de um mínimo de provas que demonstrem a sua viabilidade. Sem tal elemento probatório idôneo não se pode aquilatar da existência ou não de fumus boni iuris, cujo exame também deve ser feito.(TA/CRIM/SP, recurso. crime. nº 123.325, 1ª Câmara Criminal, rel. Juiz Camargo Aranha, RT 499/369)
Com muita propriedade o saudoso amigo e desembargador Lauro Lima Lopes, deste egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, pronunciou que: Inexistindo qualquer suporte probatório nos autos a demonstrar a culpabilidade do acusado, fica evidente que a denúncia contra ele oferecida tornou-se sem condições de ser recebida, à falta de requisito indispensável ao exercício da ação penal. (grifos nossos, in Ementário Penal, 2ª edição, Ed. Forense, 1987, pág. 279).
O professor AFRÂNIO SILVA JARDIM, com propriedade, leciona ser necessário para o exercício regular da ação penal
um suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Pois, mister se faz, sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isto que baseada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material do fato típico e prova de sua antijuricidade e culpabilidade. (cf. Direito Processual Penal, 2ª edição, Editora Forense, 1987, pág. 279).
Assim, para ser exarado despacho preliminar de recebimento da denúncia ou da queixa, depois de verificar se ocorre legitimidade do seu signatário, se presentes estão as condições de procedibilidade, se o interesse de agir é processualmente satisfatório, se a peça inaugural atende aos requisitos formais de sua admissibilidade, enfim, compete ao juiz analisar se o fato descrito e imputado ao agente é penalmente relevante e se há indícios de autoria por parte dele. E nesse momento, o mais importante do iter, é que o magistrado deve verificar se o cidadão poderia, ou não, estar incluído na denúncia, pela inexistência da justa causa para o processo criminal que se lhe pretende venha responder. A propósito o Tribunal de Justiça de São Paulo consagrou o entendimento de que
a tese de que o Ministério Público é senhor absoluto da ação penal já pertence ao passado, não se concebendo que se possa sustentar seja o juiz súdito da denúncia. Muito ao contrário, é dever do magistrado, antes de proferir despacho, quando uma denúncia lhe é apresentada, examinar se a acusação nela formulada tem algum suporte nos fatos apurados. (TJ/SP, recuso crime, nº 68.336, 1ª Câmara Criminal, rel. Des. Thomaz Carvalhal, RT 307/127).
Pois bem. A norma considerada pelo artigo 4º da Lei nº 8038/90 que também encontra similar no disposto no artigo 558, do Código de Processo Penal, impõe de forma cogente que antes de receber a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado, para responder por escrito, dentro de quinze dias. Ao fluído o prazo desta defesa preliminar, como comanda o artigo 516 do Código de Processo Penal, é que
o Juiz rejeitará a queixa ou a denúncia, em despacho fundamentado, se convencido, pela resposta do acusado ou de seu defensor, da inexistência de crime ou da improcedência da ação.
Como bem se vê, igualmente foi cristalino o legislador ao tratar do processo e julgamento dos crimes cometidos por prefeitos, regulando que só após o oferecimento da resposta preliminar escrita teria lugar o recebimento da denúncia, no sentido técnico do termo. E esta precaução é justificada e se impõe porque tomada no interesse do próprio servidor público, no propósito de preservar, o quanto possível, a imagem e a dignidade do funcionário. A Lei nº 8038, de 28 de maio de 1990, que institui normas procedimentais perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, estabelece no seu artigo 6º que:
apresentada a denúncia ou a queixa ao Tribunal, far-se-á notificação do acusado para oferecer resposta no prazo de 15 (quinze) dias, e, assim, com a resposta, o relator pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o recebimento, rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas.
Portanto, em razão mesmo da função do funcionário, do agente político, em casos como este em concreto, a determinação quanto a defesa preliminar, precedentemente ao despacho de recebimento, pode acarretar a rejeição da denúncia ou a improcedência do pedido formulado pela acusação na medida em que possibilita o exame do seu mérito. Constitui-se em verdadeiro julgamento antecipado da lide penal. Por evidente, não teria sentido a determinação para sua defesa antecipada se esta fosse oferecida somente após o despacho do recebimento da denúncia, posto que, nesta hipótese, já estaria instaurada a ação penal, com todas as suas conseqüências e gravames. Não é demais lembrar que, mesmo antes do advento da Lei nº 8038/90, constituía-se fonte formal de aplicação subsidiária e da mais alta significação, que deve servir como valioso auxílio do intérprete, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que no artigo 226, determinava ao relator que, antes do recebimento da denúncia, mande notificar o acusado para oferecer resposta escrita no prazo de quinze dias, estabelecendo em seguida, no artigo 227, que
apresentada a resposta, o relator porá o processo em mesa para que o Tribunal delibere sobre o recebimento ou rejeição da denúncia ou queixa.
Como se vê, quer nos processos de competência originária dos Tribunais, quer também nos crimes de responsabilidade do funcionário público em primeira instância, a sistemática é essa. Se em todos os casos retro referidos a Lei Procedimental permite um julgamento antecipado de mérito, posto que
Artigo 516. O juiz rejeitará a queixa ou a denúncia, em despacho fundamentado, se convencido, pela resposta do acusado ou do seu defensor, da inexistência do crime ou da improcedência da ação,
evidentemente que o recebimento da denúncia somente poderá ocorrer após o exame da defesa escrita do acusado e desde que fique demonstrada a existência do crime, indícios de autoria e a procedência da pretensão acusatória. Não verificados esses dados nos autos, a rejeição da exordial acusatória é medida que se impõe. Daí ter o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, assentado que:
O elemento subjetivo é um dos componentes do crime, na sua conceituação jurídica. Portanto, também é possível e até necessária a indagação a respeito de sua presença, quando do exame da defesa preliminar, nos crimes de responsabilidade. (TA/CRIM/SP, recurso crime nº 52.756, 2ª Câmara Criminal, rel. designado Juiz Edmond Accer, RT 451/425).
Também o Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do recurso criminal nº 122.357, fixou:
Admite-se, excepcionalmente, a rejeição da denúncia, quando se constate uma acusação injusta e improcedente. (TJ/SP, recurso crime nº 122.357, 3ª Câmara Criminal, rel. Des. Geraldo Gomes, RT 467/341).
Na realidade os textos legais estão sempre a exigir maior cautela, a prudência redobrada, para que não se submeta às barras da Justiça, desnecessariamente, por inexistência de indícios de autoria, uma autoridade que representa a imagem da administração pública. Por isso, a defesa merece respaldo desta Câmara. Não tem o Colegiado outro caminho a seguir, senão rejeitar a denúncia e então arquivar os autos. Sobre a rejeição e o conseqüente arquivamento da denúncia, preconiza JOSÉ FREDERICO MARQUES:
É preciso que haja o fumus boni iuris para que a ação penal contenha condições de viabilidade. Do contrário, inepta se apresentará a denúncia, por faltar legítimo interesse e, conseqüentemente, justa causa. Imperativo é, por isso, o controle sobre essa condição de viabilidade do pedido acusatório, pois, se assim não for, pode ser atingido, indevidamente o status libertatis do acusado. Não há, no caso, um juízo de formação da culpa, com apuração rigorosa do corpo de delito. O que existe é um despacho de deliberação, provisório e simples, em que o juiz apura se há aquela fumaça de bom direito, que autoriza a instauração da persecutio criminis em sua fase processual. O processo penal atinge o status dignitatis do acusado. Em vários casos, este sacrifício é exigido (como acontece sempre que o réu é absolvido) no interesse do bem comum. Todavia, se nem o fumus boni iuris pode descobrir-se, para alicerçar a peça acusatória, seria iníquo que o juiz permanecesse impassível e, como simples autômato, fosse recebendo a denúncia ou a queixa. Em despacho de deliberação requer, sem dúvida, muito equilíbrio e ponderação, pois, do contrário, a função repressora do Estado acabaria estancando-se com grave prejuízo para o interesse comum e a segurança da vida social. (...) O Ministério Público é o senhor da ação penal, no sentido de que a ele cabe examinar se as peças da informatio delicti autorizam, ou não, a propositura da ação penal. Imperando, no entanto, em nosso sistema processual, o princípio da obrigatoriedade mitigada da acusação, sempre que haja a prática de crime, não se pode deixar ao exclusivo alvedrio do promotor público a apreciação prévia sobre a necessidade da propositura da ação penal. Daí exigir o Código de Processo Penal que o arquivamento seja ordenado pela autoridade judiciária, conforme o diz o artigo 18. O juiz, em tal consulta, funciona como fiscal da aplicação do referido princípio, exercendo, desse modo, atividade anômala de caráter não jurisdicional. Mas como lhe não cabe proteger a ação penal, porquanto rege, entre nós, o postulado do ne procedat judex ex officio, e sim exercer função exclusivamente fiscalizadora, manda a lei que, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas pelo promotor público, faça a remessa do inquérito ou peças de informação ao Procurador-Geral, o qual, após receber essas peças da informatio delicti, oferecerá a denúncia ou insistirá no pedido de arquivamento (artigo 28). Se o procurador insistir no arquivamento, estará o juiz obrigado a atender, é o que diz o citado artigo 28. Alguns autores entendem até inconstitucional esse dispositivo, sem que, no entanto, lhes ocorra qualquer motivo ou razão para tal afirmativa. O preceito deriva da estruturação processual acusatória que tem, entre nós, a persecutio criminis. Para que o órgão da jurisdição não promova de ofício a ação penal, é que assim dispôs o artigo 28 do Código de Processo Penal, atendendo, dessa forma, o postulado constitucional impostergável, qual seja, o da plenitude da defesa. (in Elementos de Direito Processual, Editora Bookseller, vol II, Campinas, SP, 1997, págs. 164 e 168).
Em resumo e finalmente, oferecida a denúncia contra Prefeito Municipal e esse, em sua resposta prévia, aduziu que não concorreu de forma alguma com o resultado lesivo ocorrido com o nascimento do feto sem vida, até porque no momento crítico não foi avisado, através da análise dos autos, é lícito afirmar que faltou justa causa para o procedimento criminal que se buscou instaurar. A inexistência de justa causa para alicerçar a acusação oferecida contra agente político obriga a que o Judiciário rejeite a denúncia, posto que ninguém pode ser processado por fatos que não praticou. Antes de deliberar acerca do recebimento da denúncia oferecida junto aos Tribunais, debitando ao agente político conduta típica, compete ao colegiado analisar se o fato descrito e imputado ao agente é penalmente relevante e se há indícios de autoria, vale dizer, se constitui legitimidade para instaurar a relação processual. Caso contrário, a rejeição da denúncia é medida que se impõe.
III - DECISÃO:
Pelas razões expostas é que ACORDAM os Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, aglutinados em sua Primeira Câmara Criminal, por unanimidade de votos, em rejeitar a denúncia de fls. 3/10 e determinar o arquivamento dos presentes autos nos termos do contido no corpo do voto e sua fundamentação. Participaram da sessão e acompanharam o voto do Relator os Excelentíssimos Senhores Desembargadores DARCY NASSER DE MELO e MOACIR GUIMARÃES.
Curitiba, 25 de abril de 2002.
Des. OTO LUIZ SPONHOLZ Presidente e Relator
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