Íntegra
do Acórdão
Ocultar
Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 432.767-5, DE TERRA BOA. RECORRENTE - Jeane Cristina Viana RECORRIDO - Ministério Público do Paraná RELATOR - Juiz Conv. Luiz Osório Moraes Panza
PRONÚNCIA - HOMICÍDIO QUALIFICADO E OCULTAÇÃO DE CADÁVER - IRRESIGNAÇÃO DA RÉ - CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA DO CRIME - PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE INFANTICÍDIO - INVIABILIDADE - INFLUÊNCIA DO ESTADO PUERPERAL NA PRÁTICA DO ATO NÃO EVIDENCIADO ESTREME DE DÚVIDA - QUESTIONÁVEL EXISTÊNCIA DE ELEMENTO ESSENCIAL DO TIPO PENAL DA IMPUTAÇÃO PLEITEADA - JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI - RECURSO DESPROVIDO - AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO EM RELAÇÃO À ADMISSÃO DA QUALIFICADORA E A PRONÚNCIA PELO CRIME CONEXO DE OCULTAÇÃO DE CADÁVER - NULIDADE PARCIAL RECONHECIDA DE OFÍCIO - AUSÊNCIA DE DECISÃO ACERCA DA CUSTÓDIA CAUTELAR DA RECORRENTE - CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO - CONCESSÃO DE OFÍCIO - EXCLUSÃO DA CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE CONTIDA NA DECISÃO.
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 432.767-5, DE TERRA BOA, em que é RECORRENTE: JEANE CRISTINA VIANA (Ré presa) e RECORRIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ. I. Trata-se de recurso em sentido estrito interposto por Jeane Cristina Viana da decisão (f. 223/242) que a pronunciou incursa no art. 121, §2º, II e art. 211 (mero erro material, a ser corrigido de ofício, contido na decisão, justifica a pronuncia pelo art. 221, CP) c/c art. 61, II, 'f', todos do Código Penal, pelas seguintes práticas: 1º Fato "No dia 09 de outubro de 2006, por volta das 08hs30min, na rua Valência, nº 322, nesta cidade e Comarca de Terra Boa-Pr, o denunciada JEANE CRISTINA VIANA, dolosamente agindo, após dar a luz a uma menina, deixou-a em cima de uma máquina de lavar roupas, vindo buscá-la somente na manhã do dia 11 de outubro próximo passado; ocasião em que verificou que a pequena vítima havia falecido em face ao sobredito abandono, conforme Laudo de Exame Cadavérico de fls. 08/09. A denunciada agiu impelida por motivo torpe, consistente em se vingar do suposto genitor da ofendida, pelo fato deste a ter deixado e ido morar com outra mulher, a qual está grávida de outro filho seu". 2º Fato "Ato contínuo, a denunciada JEANE CRISTINA VIANA, dolosamente agindo, ocultou o cadáver de sua filha, colocando-o em um saco de lixo negro e disponibilizando-o ao serviço municipal de coleta de lixo, o qual foi efetivado".
Irresignada com a decisão, a ré interpôs o presente recurso em sentido estrito. Ela sustenta, em síntese, ter agido sob a influência do estado puerperal, fato que, somadas as demais circunstâncias do delito, configuram o crime de infanticídio e não o de homicídio qualificado. Pleiteia, então, a desclassificação da imputação de homicídio qualificado para a de infanticídio. (f. 249/255). O Ministério Público apresentou contra-razões, argumentando pelo desprovimento do recurso (f. 257/264). Sustentada a decisão (f. 265), subiram os autos a esta Corte, tendo a douta Procuradoria Geral de Justiça opinado pelo desprovimento do recurso, com a anulação, de ofício, de parte da decisão, a fim de que outra seja proferida, fundamentando-se, desta feita, a admissão do crime conexo e da qualificadora do delito de homicídio. Sustenta, ademais, a imprescindibilidade da concessão de liberdade compromissada à acusada (f. 274/286). É o necessário relatório. II. A materialidade dos delitos foi demonstrada, conforme consubstanciado no laudo de exame cadavérico de f. 126, bem como pelas fotografias de f. 32/33. Conquanto inconteste também a autoria; alega a acusada, em sua defesa, que não praticou o crime de homicídio, mas sim o de infanticídio, já que, como afirma, agiu sob a influência do estado puerperal ao matar sua filha recém-nascida. Para a configuração do infanticídio, imperiosa a presença, com efeito, de perturbações emocionais decorrentes de influência do estado puerperal, tratando-se de elementar essencial, pois, na configuração deste tipo penal. Consoante bem leciona Cezar Roberto Bittencourt, "o estado puerperal pode determinar, embora nem sempre determine, a alteração do psiquismo da mulher dita normal. Em outros termos, esse estado existe sempre, durante ou logo após o parto, mas nem sempre produz as perturbações emocionais que podem levar a mãe a matar o próprio filho". Neste sentido, prossegue o referido autor, "no nosso Código Penal, que adota o critério fisiológico, considera fundamental a perturbação psíquica que o estado puerperal pode provocar na parturiente. É exatamente essa perturbação decorrente do puerpério que transforma a morte do próprio filho em um delictum exceptum" (Tratado de Direito Penal: Parte especial, volume 2, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 140/141). Assim sendo, desabona a existência de influência do estado puerperal e, conseqüentemente, a tese que sustenta a ocorrência de infanticídio, o testemunho do médico Ivan de Souza, o qual afirmou, em Juízo, que "atendeu a ré mais de 01 semana depois do parto. Ela apresentava todos os sinais do estado puerperal, como aumento uterino, lokuia (secreção que sai do útero), aumento de mamas, etc. Estes sinais não correspondem ao do estado puerperal patológico, no qual há alteração do estado emocional, com reflexos psíquicos...; na ocasião do exame não foi identificado nenhum sinal de estado puerperal patológico. O estado puerperal patológico pode ser identificado com uma simples conversa com a paciente, ou seja, a partir da anamnese...; ao fazer o exame na ré cerca de 01 semana após o parto, confirma que não identificou nenhum sinal de alteração emocional" (f. 145/146). Devem-se levar em consideração, ademais, os fatos ocorridos durante o período de gestação da criança, sendo a gravidez ocultada pela ré de seus familiares, bem como as circunstâncias posteriores ao ato delitivo, com a tentativa de ocultação, pela ré, do corpo do falecido infante; passíveis de denotar premeditação dos atos praticados, e não, uma atuação decorrente de ocasional perturbação psíquica. Diante desse contexto, não se pode, portanto, ter por aceitável, como pretende a recorrente, a pronta admissão da tese da ocorrência de infanticídio. Como visto, a prova consignada nos autos indica que a recorrente deu luz a uma menina, com vida (laudo de exame cadavérico de f. 126), filha de seu ex-companheiro César (laudo de f. 206/208) e ocultou-a em sua casa, sendo certo à inteligência comum que o resultado natural deste tipo de conduta era a morte certa da criança, terminando por jogá-la, pois, após a morte desta, no local de coleta de dejetos, tal como lixo fosse. Estes fatos ressoam incontestes, bem com encontram-se amparadas em sólidos elementos probatórios, denotando, a priori, a ocorrência de homicídio. Nesse sentido, a nova classificação poderia advir, nesta fase, tão somente de uma demonstração sólida da influência patológica do estado puerperal, sem que houvesse como algo questionável a configuração deste estado mental. Frise-se, neste aspecto, que não se está a excluir a possibilidade de ocorrência do delito de infanticídio, mas sim de reconhecê-lo como duvidoso, o que impõe a pronúncia por homicídio, cuja demonstração mostrou-se mais veemente e que, ademais, permitirá ao Tribunal do Júri analisar plenamente os elementos probatórios contidos nos autos e, assim, decidir soberanamente. A pronúncia por infanticídio, por outro lado, tornar-se-ia, de certo modo, julgamento prévio acerca da causa, já que irreversível, subtraindo dos jurados a possibilidade de apreciar esta questão. Assim sendo, pairando sérias dúvidas sobre a configuração da influência do estado puerperal na conduta da ré, impõe-se, pois, a submissão da matéria ao amplo debate e exame pelo juiz natural da causa, o Tribunal do Júri, sendo inadequada, portanto, a pronúncia pelo crime de infanticídio. Nessa linha, aliás, já decidiu esta c. Câmara:
"Não havendo indícios suficientes de que a ré, ao matar a filha, logo depois de ter esta nascido, tivesse agido sob influência do estado puerperal, deve ser submetida a júri por homicídio, não por infanticídio" (Recurso em sentido estrito nº 157.169-9, Acórdão 17.030, Relator: Vicente Misurelli, DJ 18.10.2004). Não há como se ignorar, por outro lado, a completa ausência de fundamentação da decisão de pronúncia no que concerne à qualificadora do motivo torpe, bem como em relação ao crime conexo de ocultação de cadáver. Como acertadamente apontou a Procuradoria Geral de Justiça, "apesar de, nas alegações finais, a Defesa ter postulado a absolvição da ré quanto ao crime de ocultação de cadáver, a decisão de pronúncia (incluindo art. 221, por mero erro de digitação, pois escorreito seria o art. 211, do CP), não se manifestou a respeito. Igualmente, não há uma linha sequer motivando a inclusão da qualificadora do homicídio" (f. 283). Reconhece-se, pois, no corpo da decisão, nulidade parcial a ser corrigida de ofício, de modo que se torna imperioso determinar, desde logo, seja proferida, pelo Juízo a quo, decisão fundamentada acerca da inclusão, na pronúncia, da qualificadora do motivo torpe e do crime conexo de ocultação de cadáver. Ainda segundo a Procuradoria Geral de Justiça, deve-se mencionar omissa seria a decisão no que toca à análise da manutenção ou a revogação da prisão preventiva, sendo que, como esta afirma, deveria ser determinada de imediato a liberdade compromissada da ré, pois não é possível manter-se uma pessoa presa sem decisão judicial expressa. De fato, a decisão de pronúncia deve obrigatoriamente manifestar-se fundamentadamente acerca da manutenção ou revogação da prisão, ainda que seja pela remissão aos fundamentos da anterior decisão acerca da custódia cautelar, sob pena de configurar-se constrangimento ilegal. Como cediço em todas as prisões cautelares, leciona Luiz Antonio Câmara, igualmente "a manutenção da prisão ou a sua decretação na decisão de pronúncia, devem ser cumpridamente fundamentadas pela autoridade judicial decretante ou que mantém a custódia, por imposição do art. 93, IX, da Constituição Federal e do art. 315 do Código de Processo Penal". (in: Prisão e liberdade provisória: lineamentos e princípios do processo penal cautelar. Curitiba: Juruá, 1997, p. 125). Assim sendo, vislumbra-se, na pronúncia, que nenhuma palavra foi consignada acerca do status libertatis da recorrente, não havendo sequer decisão, quanto mais fundamentada, sobre a manutenção ou a revogação da custódia; tornando imperiosa, pois, a concessão de habeas corpus de ofício à recorrente. Não bastasse isto, trata-se de ré primária e com bons antecedentes, tendo a decisão que decretou a sua prisão preventiva (f. 24/27) consignado argumentação amparada basicamente na garantia da ordem pública, abalada pelo clamor popular resultante do delito, bem como no sentido de ser necessária por conveniência da instrução criminal; motivos, ao que parece, não subsistentes. Sendo ou não repugnante, o crime, nas suas características, se ocorreu um crime, foi contra a filha. Isso choca e dói à consciência comum, mas trata-se de crime cometido pela mãe, em circunstâncias peculiares, contra a filha recém-nascida. Não se descortina, aqui, portanto, um quadro em que outros crimes serão cometidos em virtude da liberação da ré. Esta, aliás, deu demonstração de sua boa-fé ao comparecer espontaneamente a Delegacia de Polícia a fim de esclarecer os fatos. Ademais, os próprios relatos orais contidos nos autos demonstram que, já em vinte e nove de novembro do ano de 2006, o clamor público já se encontrava sublimado, consoante a afirmação de David Fabrício de Oliveira, no sentido de que "hoje em dia as pessoas desta comunidade já não mais comentam sobre este caso" (f. 115), não havendo que se falar, pois, transpassado quase um ano da prática do delito, em manter a prisão pela continuação da necessidade de assegurar a ordem pública. No que toca a fundamentação baseada na necessidade de assegurar a instrução criminal, percebe-se que esta não se faz mais necessária, já que tranqüilamente encerrada a primeira fase da instrução criminal, sem que fosse noticiada qualquer tentativa de obstaculização da instrução por parte da ré. Verifica-se, portanto, a manifesta ilegalidade da manutenção da custódia cautelar da recorrente, sendo imperiosa, pois, a concessão de habeas corpus de ofício em favor da recorrente, de modo a ensejar a pronta revogação de sua prisão processual. Por fim, imprescindível agir de ofício também, conforme consolidado entendimento desta Câmara, para excluir a referência à circunstância agravante do art. 61, II, 'f', do Código Penal, incabível nesta fase de pronúncia. A propósito: "PRONÚNCIA - TENTATIVA DE HOMICÍDIO - PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO POR AUSÊNCIA DE ANIMUS NECANDI - INVIABILIDADE - APRECIAÇÃO PELO JÚRI. Havendo indícios de que o réu possa ter agido com animus necandi, impõe-se remeter o julgamento ao Tribunal do Júri, cuja atuação somente pode ser afastada ante prova inequívoca de que não ocorreu delito afeto a sua competência. RECURSO DESPROVIDO. CANCELAMENTO, DE OFÍCIO, DA REFERÊNCIA À CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE" (Recurso em Sentido Estrito nº 307.533-0, Relator Des. Telmo Cherem, D.J. 20.01.2006). III. Ante o exposto, ACORDAM os integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso, reconhecendo-se, contudo e de ofício, parcialmente nula a decisão, por falta de fundamentação no que concerne à admissão da qualificadora do crime de homicídio e do crime conexo de ocultação de cadáver, de modo que outra decisão deve ser proferida, fundamentadamente, acerca destas questões; concedendo-se, além disto, de ofício, em favor da recorrente, a revogação de sua custódia cautelar, excluindo-se, também de ofício, a menção a circunstância agravante do art. 61, II 'f', do Código Penal. Participaram do julgamento os Excelentíssimos Desembargadores JESUS SARRÃO (Presidente) e CAMPOS MARQUES. Curitiba, 10 de janeiro de 2008. LUIZ OSÓRIO MORAES PANZA Juiz Conv. Relator
|