Íntegra
do Acórdão
Ocultar
Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
EMBARGOS INFRINGENTES Nº 445.954-3/01, DA COMARCA DE CASCAVEL (3ª VARA CRIMINAL). Embargante: CARMEM REGINA GERMANO ULZEFER. Embargado: MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ Assistentes de Acusação: ELEDI DO ROCIO DE CASTRO E OUTRO. Relator: Des. JOSÉ MAURÍCIO PINTO DE ALMEIDA.
EMBARGOS INFRINGENTES. PRONÚNCIA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO POR MAIORIA. ART. 121, §2º, INC. III E IV, E 121, §2º, INC. III E IV, CC ART. 14, INC. II, POR 15 VEZES, TODOS CC ART. 69 DO CP. DECISÃO DE PRONÚNCIA COM BASE EM INDÍCIOS QUE NÃO ENSEJAM CONCLUSÃO DE TER A RÉ AGIDO COM DOLO. FATOS QUE NÃO EVIDENCIAM A VONTADE LIVRE E CONSCIENTE DE MATAR. EXAME QUE NÃO PODE MANTER-SE NO CAMPO DA SUBJETIVIDADE DO JULGADOR. DESCLASSIFICAÇÃO QUE MERECE SER OPERADA. IN DUBIO PRO SOCIETATE. PRINCÍPIO A SER APLICADO COM PARCIMÔNIA. TRIBUNAL DO JÚRI: GARANTIA CONSTITUCIONAL, E NÃO INSTITUIÇÃO A JULGAR CASO EM QUE NÃO RESTOU EVIDENCIADA A CONDUTA DOLOSA. DESPRONÚNCIA DE TENTATIVAS DE HOMICÍDIO CULPOSO (SEM LESÕES) POR AUSÊNCIA DE TIPIFICAÇÃO. RECURSO PROVIDO.
1.Para que o feito seja encaminhado a julgamento pelo Tribunal do Júri, necessário que se tenha evidenciado tratar-se de crime doloso contra a vida; não encontrando tal respaldo nos autos, deve o julgador operar a desclassificação, encaminhando para julgamento pelo juízo competente.
2.Não se pode admitir a pronúncia com base em fatos exteriores que poderiam supor ter o agente atuado com dolo, assim como não é viável aceitarem-se indícios que permanecem no campo da subjetividade, os quais dependem da maneira de interpretarem-se os fatos ocorridos.
3."(...) o 'in dubio pro reo' conecta-se umbilicalmente à estirpe de dogma constitucional instransponível: o art. 5º, LVII, da Constituição da República reforça o princípio 'in dubio pro reo'. Embora não exista dispositivo aparente que mencione, textualmente, a expressão 'in dubio pro reo', é inegável seu laço de consanguinidade com a Lei Maior, o que não acontece com o 'in dubio pro societate' - este sim, sem pai nem mãe, filho de tubo de ensaio, filhote do laboratório pretoriano, monstrengo bizarro e esquizóide de uma criação artificial, uma espécie de Frankstein jurídico, que deve ser expurgado da jurisprudência. Aliás, essa execrável dicotomia entre 'in dubio pro reo' e 'in dubio pro societate' sugere que os interesses do acusado são contrapostos aos da sociedade, o que é insustentável, ao menos, num sistema de base garantista. Com efeito, o princípio 'in dubio pro reo' é um princípio 'pro societate', porque é um princípio pro garantia undividual, pro Constituição, pro Estado Democrático de Direito. Aquilo que se tem como 'princípio in dúbio pro societate', em verdade, não tem nada de pro sociedade. Ao contrário, é contra a democracia, contra as liberdades individuais, contra, portanto, a própria sociedade.(...) Não se pode concordar plenamente com a ideia, porque a dúvida - seja sobre questões de direito, seja sobre questões de fato - é sempre dúvida, e, portanto, como tal, como dúvida que é, deve ser revertida, sempre e sempre, em favor do acusado" - (ADRIANO SÉRGIO NUNES BRETAS. "O ESTIGMA DE "PILATOS - DESCONSTRUINDO O MITO 'IN DUBIO PRO SOCIETATE' DA PRONÚNCIA NO RITO JÚRI". Curitiba: Bretas Advocacia, 2008, p. 21-23).
4."Submeter alguém presumivelmente inocente sob o argumento de que há indícios de autoria, ainda que não vagos, e de que existe a prova de materialidade, ao Tribunal do Júri, deixando para que o santo do dia faça o milagre, é desconsiderar a Constituição Federal" (Desembargador Mário Helton Jorge, voto vencido, fl. 1.218).
I.
CARMEM REGINA GERMANO ULZEFER teve negado provimento, pela 1ª Câmara Criminal deste egrégio Tribunal de Justiça, por maioria, ao RECURSO EM SENTIDO ESTRITO pelo qual se voltava em face da decisão que a pronunciou, em primeiro grau, como incursa nas sanções dos artigos 121, §2º, incisos III e IV, e no artigo 121, § 2º, inciso III e IV, combinado com o artigo 14, inciso II, por mais 15 (quinze) vezes, combinados com o artigo 69, todos do Código Penal, em virtude da prática dos seguintes fatos narrados na denúncia: "No dia 04 do mês de fevereiro do ano de 2007, por volta das 19h30min, a denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER dirigiu-se até a lanchonete ´Santa Fé´, situada na Avenida Barão do Serro Azul, 674, neste Município e Comarca de Cascavel, conduzindo o veículo marca Mitsubishi, modelo Pajero Sport HPE, placas AUA 4513, de sua propriedade. Lá chegando, a denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER adentrou em alta velocidade com seu automóvel no lote em que está instalada referida lanchonete e, com consciência e vontade dirigidas à prática dos ilícitos a seguir descritos, arremessou o veículo contra todos os clientes do estabelecimento, os quais estavam acomodados em mesas posicionadas na parte frontal de referido terreno e que se espalhavam até os fundos, onde estavam instaladas a cozinha e a churrasqueira da lanchonete. A denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER atingiu, no primeiro impacto, a mesa que era ocupada pelas vítimas Thiele de Castro, Adrielle Cecília Feltrin, Geneci Kussler e Francielle Lemes Nunes. Após atropelar essas ofendidas, a denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER seguiu em frente, acelerando seu veículo, colidindo-o contra as vítimas Paulo Heitor Dalsasso, Carlos Eduardo de Lima Júnior, Elaine Cristina Fazio, Sheila Aparecida Rodrigues Menezes, Gabriela Donadussi, Elen Sbardella e Jéssica Amaral Ferreira, os quais estavam próximos à churrasqueira da lanchonete, instalada em edícula construída na parte dos fundos do terreno. Também próximos à churrasqueira estavam as vítimas Diandra Ribas Munhoz, Emílio José Martini e Eduardo Vinícius Tonini, que, embora também tenham sido visadas pela denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER, não foram atingidos pelo automóvel que conduzia, porque o viram e conseguiram se desviar de sua trajetória. Com essa conduta, a denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER, com vontade de matar, causou na ofendida Thiele de Castro as lesões corporais descritas no laudo de necropsia de fl. 135, as quais foram causa de sua morte. A denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER, assim agindo, iniciou, com inequívoco animus necandi, a execução do homicídio das seguintes vítimas, causando-lhes as lesões corporais descritas nos laudos periciais respectivos: a)Adrielle Cecília Feltrin (laudo de exame de lesões corporais de fl. 137); b)Geneci Kussler (laudo de exame de lesões corporais de fl. 345); c)Francielli Lemes Nunes (laudo de exame de lesões corporais de fl. 161); d)Paulo Heitor Dalsasso (laudo de exames de lesões corporais de fl. 343); e)Carlos Eduardo de Lima Junior (laudo de exame de lesões corporais de fl.139); f)Elaine Cristina Fazio (laudo de exame de lesões corporais de fl. 140); g)Sheila Aparecida Rodrigues (laudo de exame de lesões corporais de fl. 142); h)Ana Paula Guedes (laudo de exame de lesões corporais de fl. 138); i)Everson Ferreira Menezes (laudo de exame de lesões corporais de fl. 141); j)Gabriela Donadussi (laudo de exame de lesões corporais de fl. 157); l)Elen Sbardella (laudo de exame de leões corporais de fl. 158); m)Jéssica Amaral Ferreira (laudo de exame de lesões corporais de fl. 159). A denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER somente não obteve o resultado pretendido por circunstâncias alheias à sua vontade, já que as vítimas acima relacionadas receberam pronto atendimento médico prestado pela equipe do SIATE, o que impediu suas mortes. A denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER, ao arremessar seu veículo Pajero contra as vítimas Diandra Ribas Munhoz, Emílio José Martini e Eduardo Vinícius Tonini iniciou, dolosamente, a execução de seu homicídio, porém, não obteve o resultado pretendido porque esses ofendidos perceberam a aproximação do veículo e conseguiram se esquivar do choque, cabendo registrar que Diandra Ribas Munhoz foi obrigada a se jogar ao solo, e dessa queda lhe foram ocasionadas as lesões descritas no laudo da fl. 160. A denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER executou os homicídios tentados e consumado já descritos com emprego de meio cruel, vez que impôs a todas as vítimas sofrimento atroz e desnecessário, além de expor a perigo comum todos os clientes de referido estabelecimento comercial ao invadir o pátio da lanchonete conduzindo veículo de grande porte em alta velocidade. A denunciada CARMEN REGINA GERMANO ULZEFER cometeu os delitos mediante recurso que impossibilitou a defesa das vítimas, porque não puderam esboçar qualquer tipo de reação ao serem surpreendidas pelo choque iminente de automóvel potente e de grandes dimensões" (fl. 04/05). Inconformada com a decisão majoritária da 1ª Câmara Criminal, que entendeu por bem manter a decisão de pronúncia da acusada, interpôs os presentes Embargos Infringentes, amparada nos artigos 609, parágrafo único, do CPP e 86-A, I, do Regimento Interno desta eg. Corte. A embargante esteia-se no voto vencido do eminente Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau, hoje Desembargador, MARIO HELTON JORGE, que entendeu não vislumbrar dolo na sua conduta, concluindo ser acertado desclassificá-la de homicídio doloso para culposo, de tentativa de homicídio qualificado para de lesões corporais culposas, com despronúncia relativa às tentativas de homicídio culposo. Em suas razões, expõe a embargante: a)-ainda que a instrução criminal tenha apontado mera ocorrência de imprudência de sua parte, entendeu o julgador de primeiro grau por pronunciá-la, invocando o princípio do in dubio pro societate, acrescentando que "se deve saber, quando a valoração jurídica da prova aponta para a imprudência, existem dispositivos próprios que regem a matéria e não permitem margem a manobras hermenêuticas" (fl. 1.731); b)-a decisão majoritária desconsiderou por completo os fatos antecedentes, que merecem ser analisados como um indicativo de inexistência de dolo na conduta da embargante, quais sejam: I)-o fato de nunca ter havido problemas em seu casamento; II)-ter passado a tarde inteira pescando com seu marido; III)-não ter ingerido bebida alcoólica; e IV)-frequentar o estabelecimento onde ocorreu o acidente com habitualidade; além de que a decisão parece afrontar as provas colhidas nos autos; c)-o voto divergente merece prevalecer, pois desconstitui os fundamentos da sentença de pronúncia e a base dos votos majoritários; d)-no que concerne ao fundamento de que seria proibido estacionar o veículo dentro do estabelecimento, são inúmeros os depoimentos em sentido contrário, assim como demonstram as fotos acostadas nos autos referentes a eventos anteriores lá realizados; e)-não há que se falar em presunção de dolo por alguém a ter induzido a agir como descrito na denúncia (voz masculina dizendo "vai, vai, vai"), sendo que "a primeira pergunta que surge é: ´por que tal pessoa, que seria facilmente identificável, não foi denunciada como co-autora dos supostos homicídios? A resposta, apesar de afrontar regras primárias de direito penal, é extremamente simples: se alguém o disse, jamais foi no sentido da embargante jogar seu veículo contra os presentes, mas ao contrário, para que ela manobrasse. E isso ficou provado!" (fl. 1.740); f)-o veículo teria ficado parado por pelo menos 10 segundos até que alguém dissesse tal frase, enquanto outras testemunhas disseram ter ouvido outra expressão: "estaciona ali", sendo, na verdade, bem pouco provável que qualquer pessoa tenha escutado algum diálogo provindo do interior do veículo, pois havia uma banda de pagode no local, pessoas conversando e um automóvel com motor potente ligado e com quase todos os vidros fechados, a 5 (cinco) metros de distância da mesa; g)-em relação ao argumento de que teria tido tempo, durante o trajeto, para acionar os freios, também não pode ser tomado como base para a pronúncia, isso porque, no momento em que ocorreram os fatos, foi tomada por uma sensação de desespero, não havendo como se exigir frieza em suas reações; h)-questiona "por outro lado, com as devidas vênias, quais contramedidas a embargante deveria ter tomado? Acionar o freio? Puxar o freio de mão? Em quanto tempo? Talvez 4 segundos, levando-se em consideração que a velocidade final foi de 32 km/h e o veículo chega a 100 km/h em 10 segundos? É possível isto numa situação de pânico e desespero, em uma posição de descontrole da direção? Ou é mais crível que nenhuma medida foi tomada simplesmente porque não houve tempo? O sucesso, contudo, foi pensando de forma reversa: a embargante não tomou contramedidas porque não quis! Ora, não se pode ser assim. Em verdade, inadmissível, porque parte da premissa visivelmente equivocada. Parece simples, mas é uma inversão, como bem notado pelo r. voto divergente" (fl. 1.743); i)-no que concerne ao fundamento acessório de que o local era plano e não existiria a inclinação, tal ponto foi superado pelas testemunhas, que indicam ser o lugar levemente inclinado; j)-"a interpretação do (mal-lido) princípio do in dúbio pro societate deve ser feita (como foi feita pelo r. voto divergente) por esse e. Tribunal de forma adequada, ou seja, considerando-se a efetiva existência de crime que, como se sabe, contém elementos subjetivos. Estes, por sua vez, não se encontram presentes, exceto se forem consideradas as presunções (que não são indícios) como provas. Perceba-se: a busca por indícios somente é necessária quando não haja provas. E estas existem: são robustas, seguras e indicam a mais absoluta ausência de dolo na conduta de Carmem" (fl. 1746). Recebido os embargos infringentes à fl. 1.749, foi aberta vista à douta Procuradoria-Geral de Justiça, que, à fl. 1767, se manifestou fosse dada oportunidade aos assistentes de acusação para sobre eles falar. ELEDI DO ROCIO DE CASTRO E FRANCIELI LEMES NUNES se manifestaram às fls. 1774/1783, pugnando pelo não-provimento do recurso. Às fls. 1.790/1.793, a douta Procuradoria-Geral de Justiça igualmente ponderou pelo desprovimento dos embargos. II. O recurso merece ser provido. Na decisão que entendeu por bem pronunciar a ré, o julgador de primeira instância elencou como elementos de sua convicção para inferir ter a embargante agido com dolo: a)-a impossibilidade de se estacionar no local; b)-tratar-se de veículo com câmbio automático, e, necessariamente, a ré teria pisado no freio ao imbicar em frente à lanchonete, fato que denota não lhe ser possível confundir tal pedal com o do acelerador, pois já estava pisando nele, e a perícia confirma que, com o veículo parado, não é necessário acionar o freio para troca de marchas; c)-não há que se falar em aclive na frente da lanchonete suficiente a ensejar a parada da camionete sem acionar os freios; d)-testemunhas informam ter ouvido uma voz masculina dizendo "vai, vai, vai", e afirmam que não observaram ter a ré olhado para trás em nenhum momento; e)-evidente a aceleração brusca promovida pelo veículo, capaz de promover sulcos na pedra brita, e, se pisou por equívoco no acelerador, razão não haveria para nele manter o pé, além de que o fato de ter o seu pé preso ao acelerador evitaria que ela, imediatamente, retirasse a força intensa com a qual pressionava o pedal; f)-o veículo percorreu 17 metros, distância essa suficiente para que tivesse sido acionado o freio de mão. E, se isso não demonstrasse o dolo direto, ao menos o eventual restaria evidenciado, pois teria a ré aceitado a possibilidade de produzir as consequências conhecidas. Por fim, o magistrado "a quo" justificou a impossibilidade de aplicar, no caso em exame, o princípio do in dubio pro reo, porquanto, em se tratando de crime doloso contra a vida, a dúvida beneficia a sociedade (in dubio pro societate); por isso, existindo qualquer dúvida sobre a manobra envolver dolo ou não, deveria ela ser dirimida pelos jurados. Todavia, esse entendimento não pode prevalecer, sendo de se acolher a linha de raciocínio esposada no voto vencido do Desembargador MARIO HELTON JORGE. Como sabido, destinam-se ao julgamento pelo Tribunal do Júri aqueles crimes cometidos dolosamente contra a vida, como bem dispõe o artigo 74, caput, do Código de Processo Penal, garantia prevista em nossa Carta Magna1 de o cidadão, nessas hipóteses, ser julgado pelos seus pares. Mas, para que assim seja, é necessário que se vislumbrem nos autos elementos suficientes a convencer o julgador, no final da fase da judicium acusaciones, de que realmente o fato imputado ao acusado foi cometido com dolo. O dolo "é a vontade e a consciência de realizar os elementos constantes do tipo legal. Mais amplamente, é a vontade manifestada pela pessoa humana de realizar a conduta"2. E a vontade consiste em "resolver executar a ação típica, estendendo-se a todos os elementos objetivos conhecidos pelo autor que servem de base à sua decisão em praticá-la. Ressalte-se que o dolo abrange também os meios empregados e as conseqüências secundárias de sua atuação"3. O legislador previu que, na denominada fase da decisão de pronúncia (art. 408 do CPP4), cabe ao julgador singular, de acordo com o contido nos autos, adotar uma de quatro previsões legais: absolvição, impronúncia, desclassificação e pronúncia. Conforme VICENTE GRECO FILHO5, "é comum dizer-se que a função da pronúncia é a de remeter o réu a júri. Mas rejeitamos, terminantemente, essa impostação. A função da fase de pronúncia é exatamente a contrária. Em outras palavras, a função do juiz togado, na fase da pronúncia, é a de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em decisão, quiçá, de vingança pessoal ou social. Ou seja, cabe ao juiz na fase de pronúncia excluir do julgamento popular aquele que não deva sofrer repressão penal". ADRIANO SÉRGIO NUNES BRETAS6, penalista e processualista penal paranaense de primeira linha, tece acerba crítica à utilização, em casos como o presente, do princípio "in dubio pro societate" em detrimento do "in dubio pro reo": "O resgate do 'in dubio pro reo' para a fase da pronúncia pressupõe dois enfoques: um legal; outro lógico. Do ponto de vista legal, o chamado 'princípio in dubio pro societate' não encontra respaldo em nenhum dispositivo do ordenamento jurídico, que atribui o ônus da prova à acusação, sufragando o estado de inocência presumido. Não há, pois, acomodação normativa do brocardo em nenhuma fenda do ordenamento jurídico. Em contrapartida, o 'in dubio pro reo' conecta-se umbilicalmente à estirpe de dogma constitucional instransponível: o art. 5º, LVII, da Constituição da República reforça o princípio 'in dubio pro reo'. Embora não exista dispositivo aparente que mencione, textualmente, a expressão 'in dubio pro reo', é inegável seu laço de consanguinidade com a Lei Maior, o que não acontece com o 'in dubio pro societate' - este sim, sem pai nem mãe, filho de tubo de ensaio, filhote do laboratório pretoriano, monstrengo bizarro e esquizóide de uma criação artificial, uma espécie de Frankstein jurídico, que deve ser expurgado da jurisprudência. Aliás, essa execrável dicotomia entre 'in dubio pro reo' e 'in dubio pro societate' sugere que os interesses do acusado são contrapostos aos da sociedade, o que é insustentável, ao menos, num sistema de base garantista. Com efeito, o princípio 'in dubio pro reo' é um princípio 'pro societate', porque é um princípio pro garantia undividual, pro Constituição, pro Estado Democrático de Direito. Aquilo que se tem como 'princípio in dúbio pro societate', em verdade, não tem nada de pro sociedade. Ao contrário, é contra a democracia, contra as liberdades individuais, contra, portanto, a própria sociedade. (...) Não se pode concordar plenamente com a ideia, porque a dúvida - seja sobre questões de direito, seja sobre questões de fato - é sempre dúvida, e, portanto, como tal, como dúvida que é, deve ser revertida, sempre e sempre, em favor do acusado. (...) Portanto, o juiz deve reverter as eventuais dúvidas remanescentes do caso em favor do acusado". E, nessa linha, sendo a desclassificação uma previsão legal, quando for o caso, como é o presente, deve ela ser operada pelo juízo singular, em vez de encaminhar o feito ao Júri. Ao revés do concluído pelo julgador de primeiro grau, não há embasamento probatório suficiente para ensejar a pronúncia da ré, porque, ainda que existam elementos para se buscar a responsabilização pela modalidade culposa, o mesmo não se pode dizer quanto à dolosa. Não se pode admitir a pronúncia com base em concatenação de fatos exteriores que, ao ver do julgador, demonstrariam dolo. Isso porque, ao fazer uma conjectura dos fatos e elementos presentes nos autos, o próprio magistrado reconheceu que os elementos probatórios são contraditórios, interpretando-os de modo a concluir ter havido dolo na conduta da embargante. Nesse mesmo sentido, pronunciou-se o Ministério Público em primeiro grau, favorável à desclassificação dos crimes, ao contra-arrazoar o Recurso em Sentido Estrito: "(...) comentários e pequenas contradições não podem justificar a pronúncia da recorrente, quando existem provas suficientes a justificar a desclassificação de sua conduta para homicídio culposo e lesões corporais culposas" (fl. 1.052). Enquanto a materialidade e autoria são incontestes nos autos, pôs-se em dúvida o elemento volitivo. Mas, da detida análise dos elementos probatórios carreados no caderno processual, não se vislumbram indícios bastantes para afirmar que a conduta da ré foi dolosa. A narração da peça acusatória deve ser analisada em harmonia com os fatos noticiados dos presentes nos autos. Restou comprovado que a acusada, seu marido Edimar e os amigos Adonias e Ângela, no dia do ocorrido, foram até o restaurante Big Peixe, onde passaram a tarde, retornando a Cascavel no final do dia. Pretendendo confraternizar com Magnus, amigo de Adonias, combinou-se um churrasco na Lanchonete Santa Fé, e então para lá se dirigiram, tendo sido o veículo conduzido por Carmem (testemunhos de Adonias, Ângela e Edimar). No que toca à chegada ao estabelecimento comercial, se inicia a dúvida sobre a conduta da ré. Inquestionável que Carmem, ao chegar, imbicou seu veículo na entrada do estabelecimento, ficando, por pelo menos dez segundos, parada em frente ao portão, até que adentrasse com o veículo, ocasionando a morte de uma pessoa e ferindo quinze. A acusação defende que a ré teria, de maneira consciente e com animus necandi, acelerado o veículo e entrado no estabelecimento, com a evidente finalidade de matar as pessoas que ali se encontravam. A embargante, por sua vez, assegura, inicialmente, ter aportado o automóvel na entrada da lanchonete, pois, sempre que ia ao local com seu marido, deixava o veículo estacionado no pátio. Verificando que havia mesas ali dispostas, e que não tinha como estacionar lá dentro, parou a camionete, dando início à manobra para estacioná-lo na rua. Nesse momento, afirma ter-se confundido com os pedais, quando sua sandália enroscou no acelerador; daí não ter conseguido desvencilhar-se para apertar o freio, causando assim o acidente. Não há como se negar que existem nos autos diferentes depoimentos de variadas hipóteses sobre o que teria realmente acontecido, o que não poderia ser diferente em decorrência da quantidade de pessoas envolvidas nos fatos. Todavia, pelos elementos apontados pelo julgador na decisão de pronúncia, não há como se aceitar sejam eles suficientes para sustentar a conclusão de ter a ré agido com vontade livre e consciente de cometer os crimes na forma em que lhe foram imputados, ou seja, com dolo. Os indícios, como se observará, permanecem no campo da subjetividade, não servindo a apontar de maneira objetiva o elemento volitivo. Os indícios, como leciona HERMÍNIO ALBERTO MARQUES PORTO, "vistos especificamente, representam provas artificiais, não objetivas, vindas da coordenação racional de pontos informativos: é o indício um fato que, estando em relação íntima com outro, enseja ao analisador uma natural relação entre os dois, chegando de um a outro. Indícios de autoria são as conexões entre fatos conhecidos no processo e a conduta do agente, na forma descrita pela inicial penal; o indício ´suficiente´ de autoria oferece uma relativa relação entre um primeiro fato e um seguinte advindo da observação inicial, e devem tais indícios, para que motivem a decisão de pronúncia, apresentar expressivo grau de probabilidade que, sem excluir de dúvida, tende a aproximar da certeza" (Júri. Procedimento e aspectos do julgamento. Questionários. 11ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2.005, fl. 72). Irrefragável que Carmem, em ocasiões anteriores, frequentara o estabelecimento (Caoe, o dono da lanchonete, em seu depoimento, fls. 1.373/1.384; Adonias, fls. 1.274/1.292; e Edimar 1.446/1.470). A impossibilidade de se estacionar o veículo no pátio, ao contrário do que restou consignado na decisão de pronúncia da embargante (fl. 940), restou parcialmente negada pelo proprietário do local. Observe-se que, em seu depoimento judicial, ainda que tenha inicialmente afirmado não ser possível estacionar no local, Caoe confirma que, em situações diversas, autorizava clientes/amigos a deixar seus veículos no pátio (desde que não houvesse mesas ali espalhadas ou estivesse chovendo)7. E o próprio Caoe diz que Carmem e Edimar estiveram na lanchonete e estacionaram seu veículo dentro do estabelecimento (citando inclusive o modelo, Corolla). Para além de tal evidência de que, não só a embargante, como outras pessoas deixavam seus veículos estacionamentos dentro da lanchonete, as testemunhas Ana Paula Guedes (fl. 1.312/1313), Adonias Oliveira de Souza (fl. 1.290), Adrielle Cecília Feltrin (fl. 1.300), Ângela Cristina Gambin (fls. 1328/1329), Antonio Marcos Marchiore (fls. 1.355/1.356), Maurílio (fl. 358 e 1.559/1.572), Eduardo Vinícius Tonini (fl. 1.474) e Elen Sbardella (fl. 1.482) ratificaram ser possível estacionar veículos no pátio do estabelecimento. Portanto, não se coaduna com tais elementos probatórios presentes nos autos a conclusão judicial de não ser possível estacionar o veículo dentro do pátio, bem assim a inferência de ter a embargante imbicado o seu com o intuito de fazê-lo ser indício de dolo de sua parte. Dessa forma, não se pode levar em linha de conta esse fato como indício suficiente para embasar ter ela agido ou não com dolo. Ponto esse demasiadamente tênue, contrapondo-se à previsão do artigo 408/CPP, que dispõe sobre o convencimento do magistrado acerca da existência do crime doloso contra a vida. O digno julgador singular alinha, ainda, como elementos que evidenciariam o dolo pela acusada, os seguintes acontecimentos: a)-não tinha como a ré confundir os pedais, pois teria pisado no freio ao imbicar na frente da lanchonete, fato que denota ser impossível a confusão do pedal do freio com o do acelerador, pois já o estava acionando; b)-não ter sido comprovada pela perícia a desnecessidade de pisar no freio em decorrência do pequeno aclive em frente à lanchonete; c)-há evidência de aceleração brusca promovida pelo veículo ante aos sulcos que se formaram na pedra brita; d)-o veículo teria percorrido 17 metros, e essa distância seria suficiente para que tivesse sido acionado o freio de mão. Ora, todos esses argumentos se traduzem em "suposições", e não, em provas indiciárias suficientes de que teria ocorrido dolo. Consigne-se que, se outros elementos existissem nos autos, capazes de formar uma coordenação racional de pontos informativos, a conclusão poderia ser outra; mas, diante do que restou colhido no presente feito, não há como chegar a outra conclusão: tudo não ultrapassa um contexto de conjecturas. Imagina-se que a acusada não teria como confundir os pedais, pois já estaria pisando em um deles (freio). Supõe-se que ela não pisaria no freio para engatar marcha ré, pois, estando o veículo de câmbio automático parado, tal procedimento seria desnecessário. Pensa-se que, pelo sulco deixado nas pedras, teria havido aceleração brusca e intencional (mas também poderia ter ocorrido a aceleração por ocorrência do pisar errado da condutora, e em razão de seu desespero ao tentar desvencilhar-se do chinelo agarrado ao pedal). Ocorre que, diante dos elementos presentes nos autos, não há como se asseverar que o encadeamento de tais suposições, como fez o julgador em sua decisão, demonstram que a ré não teria como confundir os pedais (de forma imprudente), e, assim, a sua conduta merecesse ser tida como dolosa. Sabido que, ao se dirigir um veículo automático, o condutor não emprega o pé esquerdo, ficando condicionado tão-somente a conduzir o automóvel com a perna direita8. Não se pode olvidar ter a ré deixado claro que, há mais de 3 (três) anos (fl. 1.613), dirige tão-somente veículos automáticos, o que esclarece a "inércia" em não se utilizar da perna esquerda para pisar no freio. Ademais, em tais situações, não é possível prever que todas as pessoas tenham a mesma reação para contorná-la; logo, daí não se poder garantir que a ré tivesse reflexos como o de utilizar o freio de mão. E a ausência de reflexos ou conduta capaz de conter a situação de descuido não pode ser tratada como uma forma de concluir ter a acusada agido com dolo. Há de se considerar ainda que a embargante, inconsequentemente, dirigia o veículo sem o calçado adequado, o que é vedado pela legislação de trânsito (art. 252, inc IV, CTB). Mas não se pode desdenhar que, mesmo com veículos sem a peculiar condição de dirigir do automóvel automático, são noticiados casos semelhantes ao presente por mulheres que dirigem sem o calçado adequado9. De outra volta, irrelevante o argumento de que várias testemunhas teriam ouvido uma voz masculina dizendo "vai, vai, vai!", e o de afirmarem não ter observado a acusada, em nenhum momento, olhando para trás. Esses depoimentos esparsos também não bastam a evidenciar dolo. Ora, se outra pessoa incentivou Carmem a partir com o veículo para dentro da lanchonete, com o fim de matar aquelas pessoas, qual a razão de não ter sido denunciada como co-autora? Simplesmente porque não existem elementos suficientes para reconhecer essa conduta. Indo adiante, vê-se que as testemunhas se contradizem. Ora afirmam que ouviram uma "voz" dizendo "estaciona ali" (Paulo10, Adonias11 e Ângela12), ora teriam ouvido "vai, vai, vai!" (Francielle13, Rosemara14 e Sandra15). Ainda assim, se foi dita a última frase, como saber a conotação que lhe foi dada? "Vai, vai, vai!" como incentivo a cometer o crime, ou "vai, vai, vai!" como direcionamento para que a ré estacionasse o veículo na rua? Sem contar que o ambiente estava sonoramente poluído, como a música da banda de pagode, pessoas conversando e um veículo de alta potência ligado. Não há de se considerarem como indícios suficientes a ensejar o reconhecimento de conduta dolosa tais relatos testemunhais contraditórios, que não se conectam com outros elementos probatórios. É de se repensar se alguém, a pelo menos 5 metros de distância do carro, o qual possuía apenas um dos vidros abertos e era insulfilmado, iria conseguir notar se a ré olhara para trás com o intuito de manobrar ré, discernindo o que fora dito no interior do automóvel! E, diante de tantas suposições, certamente tais pontos não podem ser reputados como indícios de que Carmem tenha agido com vontade consciente de matar. Inegável se concluir que a versão da embargante é coerente com as provas dos autos, o que afasta a versão da acusação - de conduta dolosa. Mais uma vez, calham à argumentação, as palavras da Promotora de Justiça NAYANI KELLY GARCIA ANDRADE: "a prova existente no processo é harmônica com a versão apresentada pela apelante. Pronunciá-la para que seja submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri desta Comarca, como autora de um homicídio doloso consumado e quinze tentativas de homicídios dolosos, com base em pequenas contradições e frases soltas, ouvidas fora de contexto, é um absurdo" (fl. 1.065). Ponha-se a especial realce, outrossim, a fundamentação do brilhante voto vencido lavrado pelo culto Desembargador MÁRIO HELTON JORGE: "Portanto, os indícios que deram sustentação à probabilidade da existência do dolo (impossibilidade de estacionar dentro do pátio, que a ré teria acionado o freio quando parou antes do acidente, que é necessário pisar no freio para a mudança de marcha e que a voz de vai, vai, vai) não são sérios, capazes de demonstrar que a vontade da ré era o de cometer ou assumir o risco de cometer os crimes de homicídio e de tentativa. Ademais, inexiste qualquer prova de que a denunciada conhecesse quaisquer das pessoas vitimadas no local, se não as conhecia, então o dolo estaria direcionado a todas as pessoas" (fl. 1.723). Ao tratar da dificuldade de verificação da conduta dolosa, MIGUEL REALE JÚNIOR destaca: "Problema dos mais intrincados diz respeito à verificação do dolo, pois seria penetrar no âmago do agente para captar sua posição subjetiva. Seria uma prova diabólica, se não se considerasse que a constatação deste acontecimento interno deve se dar a partir dos acontecimentos externos. É do conjunto das circunstâncias que se pode deduzir a ocorrência do elemento interior, concluindo que o agente quis a ação e seu resultado, pois é dos dados apresentados pela própria ação, pela forma como foi realizada, pelas circunstâncias concomitantes e mesmo antecedentes, que se pode, por um processo lógico, baseado no senso comum e nas regras de experiência, alcançar a revelação da subjetividade do agente. A experiência indica que determinados acontecimentos decorrem de estados anímicos ou os acompanham, permitindo pela regularidade do modo de ser inferir a subjetividade do outro, aliás o que todos fazemos no cotidiano com relação ao próximo, visando a apreender o significado de seus atos, a intenção com a qual são praticados. A verificação do dolo consiste, portanto, em uma passagem do extrínseco ao intrínseco desconhecido, por via da lógica e da experiência comum, com base naquilo que costuma acontecer" (Instituições de Direito Penal, Parte Geral. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2.004, p. 226). A embargante é uma senhora de 58 anos, sem antecedentes criminais, com família constituída, e que passara o dia todo em confraternização com os amigos e marido. Fatos esses incontroversos. Não restou demonstrado que tivesse razões ou inimizade com qualquer pessoa presente no estabelecimento. E, assim, não teria nenhum motivo para ter jogado o veículo propositalmente - e com vontade de matar - contra aquelas pessoas por ela desconhecidas. Em nenhum momento sequer restou cogitado nos autos que a acusada estivesse em situação momentânea de descontrole emocional. Pelo contrário, as testemunhas que afirmam terem visto Carmem, que permaneceu no local após o acidente, confirmam que ela chorava muito e se preocupava com as vítimas. Há de se refletir que, se fosse realmente a intenção da acusada matar aquelas pessoas, ela não teria permanecido no local, prontificando-se a socorrer e a restituir os danos (como confirmam os depoimentos de Antonio Marcos Penas Borges fl. 1.362/1.372, Ellen, fl. 1.488 e Jéssica, fl. 1.537). Partindo do nível de racionalidade do homem médio, somente alguém acometido de alguma psicopatia ou apresentando descontrole emocional agiria dolosamente em tais circunstâncias; Trata-se de quinze tentativas e um homicídio consumado - e sem nenhuma motivação. Desse modo, não se entrelaçando os fatos de forma satisfatória a indicar que a conduta da ré foi dolosa, não deve a recorrente ser levada a julgamento pelo tribunal popular. Diante de toda a análise feita, não há ainda que se cogitar da hipótese de ter ocorrido dolo eventual. Isso porque, conforme a fundamentação acima exposta, não há como se vislumbrar tivesse a ré consciência e vontade da ilicitude, bem assim que tivesse aceitado o resultado como possível ou provável, devendo, assim, ser desclassificados os crimes. E como bem registrado no voto vencido e na doutrina de Adriano Bretas, se dúvida resta, deve ela ser aplicada em favor da ré - e não da sociedade. Se perdura a incerteza, mister se faz se opere em benefício daquele contra qual a acusação não encontrou meios suficientes a apontar a alegada conduta criminosa. Encaminhar-se a ré a júri, sob o fundamento de que se estaria, na verdade, resguardando os princípios constitucionais da soberania dos veredictos e do juízo natural não se harmoniza com a própria instituição garantista que caracteriza o Tribunal do Júri. O cidadão tem direito a ser julgado pelos seus pares, cuja decisão será soberana, desde que sua conduta se amolde à previsão legal e mereça seguir pelo peculiar rito do Tribunal do Júri. Ao Judiciário, incumbe delimitar a admissibilidade da acusação, que deve ser firme e fundamentada, sendo inadequado remeter a julgamento pelo júri feito em que não se verificou a ocorrência de crime doloso contra a vida, para que esta instituição realize exame acerca do elemento volitivo. Nessa linha, consigne-se também a doutrina de SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO16: "É fácil, na sequência, perceber que a expressão in dubio pro societate não exibe o menor sentido técnico. Em tema de direito probatório, afirmar-se ´na dúvida, em favor da sociedade´ consiste em absurdo lógico-jurídico. Veja-se: em face da contingente dúvida, sem remédio, no tocante à prova - ou melhor,imaginada incerteza - decide-se em prol da sociedade. Dizendo de outro modo: se o acusador não conseguiu comprovar o fato, constitutivo do direito afirmado, posto que conflitante despontou a prova, então se soluciona a seu favor, por absurdo. Ainda porque não provou ele o alegado, em face do acusado, deve decidir-se contra o último. Ao talante, por mercê judicial o vencido vence, a pretexto de que se favorece a sociedade: in dubio contra reum. Só o exagerado positivismo jurídico - quase desaparecido - pode tolerar o sério mal-entendido. O fenômeno processual mantém-se: a acusação não suportou o onus probandi. Subjacente à assertiva in dubio pro societate acha-se o vedado procedimento de ofício e a quebra da denominada presunção de inocência (arts. 5 º, inc. LVII, e 129, inc I, da Constituição da República)". Em casos análogos, proclamou o C. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA no Resp nº 705.416/SC17: "Para se emitir juízo de pronúncia, o Magistrado não pode ter dúvidas a respeito da existência do dolo, posto que deve, ao fundamentá-la, ser econômico com suas palavras para não influir na convicção dos jurados. A dúvida deve ser sempre dirimida em favor do réu, e não como está na decisão atacada, em que se invocou o brocado in dubio pro societate para pronunciar o recorrente, tendo em vista a impossibilidade de se estabelecer o elemento subjetivo do tipo. De outra parte, o decisum desclassificatório, constitui precedente lógico e necessário o juízo de certeza declaratório, com a ampla análise das questões de fato constituídas nos elementos probatórios, âmbito no qual o magistrado deve exercer com profundidade o seu racional convencimento motivado. Se na pronúncia tem-se um juízo de prelibação, de admissibilidade, de suspeita, de probabilidade, sob pena de usurpação de competência, uma vez que o processo toma curso distinto, o juízo natural: Tribunal do Júri, para julgamento daquela mesma infração, na desclassificação, o juízo é definitivo específico, de certeza, tomando-se imprescindível a cognição profunda dos fatos contidos nas provas coligidas. Admissível, pois a análise exaustiva do elemento subjetivo do tipo no âmbito do decisum de desclassificação, em que se emite um juízo de certeza, e não de suspeita, como na pronúncia, em que visa salvaguardar a competência constitucional do júri." (...) A decisão de pronúncia deve ter um mínimo substrato no sentido da ocorrência de crime doloso contra a vida. Se da prova dos autos não exsurge qualquer elemento que possa apontar para a prática de crime doloso, não há de se remeter o julgamento do feito ao Tribunal do Júri. O controle judiciário sobre a admissibilidade da acusação necessita ser firme e fundamentado, tornando-se inadequado remeter a julgamento pelo Tribunal do Júri um processo sem qualquer viabilidade de haver condenação do acusado por homicídio na modalidade dolo eventual ´A dúvida razoável, que leva o caso ao júri, é aquela que permite tanto a absolvição quanto a condenação. Assim, não é trabalho do juiz togado 'lavar as mãos' no momento de efetuar a pronúncia, declarando, sem qualquer base efetiva em provas, haver dúvida e esta dever ser resolvida em favor da sociedade, remetendo o processo a julgamento pelo Tribunal Popular. Cabe-lhe, isto sim, filtrar o que pode e o que não pode ser avaliado pelos jurados, zelando pelo respeito ao devido processo legal e somente permitindo que siga a julgamento a questão realmente controversa e duvidosa. Esta, afinal, é a função do judicium acusationis - fase de instrução - pela qual passaram as partes, produzindo provas sobre o crivo do contraditório e da ampla defesa. (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. Ed. Revista dos Tribunais, p. 672, 2005)´. Conclui-se, pois, ser vedada a pronúncia do réu, ausente contexto probatório que indique a prática de crime doloso contra vida. Não há de se falar na aplicação do aforismo in dubio pro societate". Assim sendo, conclui-se pelo provimento dos embargos infringentes e pela prevalência do voto vencido, de lavra do eminente Des. MARIO HELTON JORGE, que bem entendeu pela desclassificação dos crimes dolosos para culposos (homicídio qualificado para culposo, tentativas de homicídio dolosos para lesões corporais culposas) e pela despronúncia das tentativas de homicídio culposo (sem lesões) por ausência de tipificação. III. Ante o exposto, ACORDAM os Magistrados integrantes da Segunda Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná, em COMPOSIÇÃO INTEGRAL, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso. Presidiu o julgamento o Excelentíssimo Desembargador LIDIO JOSÉ ROTOLI DE MACEDO (REVISOR), com voto, e dele participaram o Excelentíssimo Desembargador NOEVAL DE QUADROS e os Excelentíssimos Juízes de Direito Substitutos em Segundo Grau LILIAN ROMERO e CARLOS AUGUSTO ALTHEIA DE MELLO. Curitiba, 19 de fevereiro de 2009.
José Maurício Pinto de Almeida Relator
1 Art. 5º, inciso XXXVIII, alínea ´d´, da Constituição Federal. 2 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, parte geral. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, fl. 185. 3 CAPEZ, Idem, fl. 185. 4 Redação antes da reforma da Lei 11.689/2008, o qual era vigente à época em que a ré foi pronunciada. 5 TUCCI, Rogério Lauria; GREGO FILHO, Vicente. Tribunal do Júri. Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT, 1999, p. 118/119. 6 "O ESTIGMA DE PILATOS - DESCONSTRUINDO O MITO 'IN DUBIO PRO SOCIETATE' DA PRONÚNCIA NO RITO JÚRI". Curitiba: Bretas Advocacia, 2008, p. 21-23). 7 Fls. 1373/1384. 8 Inclusive, pesquisando-se, notou-se que existem alguns casos de acidentes que ocorrem por motoristas que acostumados a dirigir veículos com três pedais, confundem-se ao pilotar veículos automáticos, como pode ver-se no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u125180.shtml.
9 Pesquisa diz que salto alto é um dos vilões dos acidentes de trânsito MILENA BUOSI Da Folha Online Anabela, agulha, plataforma, geométrico. A elegância dos sapatos de salto alto não combina com trânsito. Pesquisa feita por uma empresa que treina motoristas aponta que, dos 3.095 alunos que se envolveram em acidentes, 491, ou 16%, tiveram como vilão o salto alto. Esse tipo de calçado é traiçoeiro e pode causar a falsa sensação de que, com ele, o pé "chegará primeiro" no pedal. Além disso, há o risco de enroscar. O autor da pesquisa, o psicólogo e diretor da empresa Treno-Drive, André dos Santos, estudou os casos dos motoristas que se envolveram em acidentes e procuraram a escola entre janeiro de 1997 até janeiro deste ano. Do total de 3.095, 66% são mulheres; 24%, homens; e 10% homossexuais. "Travestis também dirigem de salto alto", disse. Parte da culpa dos saltos foi reconhecida pelos motoristas. Em outros casos, para se chegar a essa conclusão, os alunos foram detalhadamente entrevistados e os acidentes, relembrados. Segundo Santos, os piores sapatos para dirigir são os de plataforma e o de salto agulha. No caso do primeiro, de acordo com ele, o salto chega primeiro no tapete do que no pedal. "Alguns alunos disseram que, no momento do acidente, faltou freio. Ao verificarmos, descobrimos que a culpa foi do sapato", disse. Outro problemático é o agulha. O maior risco é enroscar no tapete ou no próprio pedal. "Esse tipo é desaconselhável porque tem uma inclinação de quase 40 graus do peito do pé até onde fica o calcanhar. Ao pisar, o agulha pode ir para baixo do pedal e travar." O psicólogo recordou o caso de uma executiva que estava na rua da Consolação, seguindo para o centro da capital paulista. Ao fechar o farol, seu salto agulha travou e o pé não alcançou o freio a tempo. "Fomos reconstituir o que havia ocorrido. Ela estava com um pé na embreagem e o outro não chegou no freio. Ela acabou batendo nos carros que estavam na frente. O passageiro de um Voyage acabou fraturando duas costelas. Ela ficou traumatizada, foi horrível", disse. Segundo o psicólogo, a executiva passou por diversas aulas práticas, entrevistas, avaliações psicológicas e conversas. "Após se recuperar, ela seguiu de carro para a casa da vítima, em Higienópolis." Para quem não abre mão do salto alto, o melhor a fazer é levar o sapato no carro e uma sapatilha no pé. "A mulher deve levar dois sapatos: um sem salto para dirigir e o alto para colocar após sair do trânsito. Quando estiver próximo do manobrista, a mulher pára, coloca o salto alto e entrega o carro. Afinal, a vaidade também é importante." (http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u32390.shtml).
Mortes por causa do salto alto No Japão, plataformas de 20 a 30 centímetros de altura já causaram até mortes. No ano passado, em Tóquio, uma professora caiu de seu salto 13 e bateu a cabeça. Ainda saiu andando, mas, horas depois, teve um desmaio e morreu no hospital, supostamente em conseqüência da queda. Em novembro, em Osaka, outra jovem japonesa prendeu o sapato nos pedais, não conseguiu controlar o carro e acabou atropelando e matando um pedestre. O último acidente foi há três semanas, em Kochi, no sul do país: mais uma adepta das plataformas teve problema com os pedais do carro e provocou um acidente que deixou dois mortos e um ferido. Por essas e outras, a prefeitura de Osaka anunciou que vai proibir as jovens de dirigir usando salto plataforma. (http://veja.abril.com.br/010300/p_082.html).
10 Fl.1589. 11 Fl. 1281. 12 Fl. 1331. 13 Fl. 1641. 14 Fl. 1592. 15 Fl. 1604. 16 PITOMBO, Marcos de Moraes. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº1, p. 09-23, 2003. 17 STJ - REsp 705416 / SC - T6 - SEXTA TURMA - Rel. Ministro PAULO MEDINA, p. em DJ 20/08/2007 p. 311, REPDJ 27/08/2007 p. 298.
|