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Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO PARANÁ 4ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS - PROJUDI Rua Mauá, 920 - 14º Andar - Alto da Glória - Curitiba/PR - CEP: 80.030-200 - Fone: 3210-7003/7573 - E-mail: 4TR@tjpr.jus.br RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N. 0013980-60.2024.8.16.0031 RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ RECORRIDA: ROSELI GONÇALVES AÇÃO: PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA ORIGEM: JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DE GUARAPUAVA JUIZ A QUO: RICARDO ALEXANDRE SPESSATO DE ALVARENGA CAMPOS RELATOR: JUIZ TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE PARA RECEBER O RECURSO COMO CORREIÇÃO PARCIAL. MAUS TRATOS. ART. 136 DO CÓDIGO PENAL. DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS. CRIME APURADO QUE ENVOLVE CRIANÇAS COMO VÍTIMAS. ARTIGO 226, § 1º DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. INAPLICABILIDADE DA LEI 9.099/95. DENÚNCIA QUE ENVOLVE FATOS OCORRIDOS EM 2023, OU SEJA, NA VIGÊNCIA DA LEI HENRY BOREL. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE (ALEXY) PARA RESOLUÇÃO DE DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. PRECEDENTES DAS CÂMARAS CRIMINAIS DESTE EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ENTENDIMENTO ALINHADO AO QUE PRECONIZA A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. AUSÊNCIA DE ERRO PROCEDIMENTAL. ART. 353 DO REGIMENTO INTERNO DO TJPR. 1. A decisão de declinar da competência dos Juizados Especiais para a Vara Criminal fundamenta-se no fato de que o crime apurado tem como vítimas crianças, o que atrai a aplicação do artigo 226, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Além disso, os fatos narrados ocorreram no ano de 2023, ou seja, durante a vigência da Lei Henry Borel, que corrobora a inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais Criminais em delitos que envolvem violência contra crianças, justificando, assim, a incompetência do Juizado Especial Criminal para o processamento do feito. 2. A corrente que defende a impossibilidade completa de aplicação da Lei 9.099/1995 a crimes cometidos contra crianças e adolescentes encontra respaldo na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reforça o princípio da proteção integral e da prioridade absoluta de seus direitos e interesses, conforme estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Isso implica a adoção de medidas legais que assegurem a devida punição de crimes contra crianças e adolescentes, afastando a aplicação de mecanismos que possam minimizar a gravidade dessas infrações, como os previstos na Lei 9.099/1995. 3. Assim, ao proteger os direitos das crianças e adolescentes, a interpretação mais restritiva da aplicação do JECRIM se alinha aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, reafirmando que sua segurança, dignidade e integridade física e moral devem prevalecer sobre o direito do acusado a eventuais mecanismos de despenalização. 4. Nesse sentido, é o entendimento deste Egrégio Tribunal de Justiça: CONFLITO DE COMPETÊNCIA – JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL X JUÍZO CRIMINAL COMUM – COMPETÊNCIA DO JUÍZO CRIMINAL COMUM - APURAÇÃO DA PRÁTICA DE CRIMES DESCRITOS NOS ARTS. 136 E 330 DO CÓDIGO PENAL - APURAÇÃO DA EVENTUAL PRÁTICA DE CRIME DE MAUS TRATOS - LEI Nº 14.344/2022 - LEI HENRY BOREL VEDA A APLICAÇÃO DA LEI 9.099/95 A CRIMES COMETIDOS CONTRA CRIANÇA E ADOLESCENTES NO ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR, SEJAM ELES PREVISTOS NO ECA, NO CÓDIGO PENAL OU NA LEGISLAÇÃO ESPARSA – IRRELEVÂNCIA DO QUANTUM DE PENA PREVISTO – ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. ADEMAIS, NO QUE TANGE AO ART. 330 DO CÓDIGO PENAL – CONEXÃO COM ESCOPO NO ART. 76 DO CPP – PROCESSAMENTO E JULGAMENTO PELO JUÍZO COMUM - CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE. CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE. (TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0004075-71.2023.8.16.0029 - Colombo - Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU MAURO BLEY PEREIRA JUNIOR - J. 10.02.2024) 5. Por fim, inexiste qualquer erro procedimental que justifique a anulação da decisão, observando-se o disposto no artigo 353 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), o que ratifica a regularidade da condução processual. 6. Recurso em sentido estrito conhecido como correição parcial, julgado improcedente. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso em Sentido Estrito n. 0013980-60.2024.8.16.0031, recebido como Correição Parcial, em que é Recorrente o Ministério Público do Estado do Paraná e Recorrida Roseli Gonçalves, A C O R D A M os Juízes da Quarta Turma Recursal do E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ, à unanimidade de votos, em receber o Recurso em Sentido Estrito como CORREIÇÃO PARCIAL, pelo princípio da fungibilidade, e JULGAR IMPROCEDENTE o pedido, nos termos da fundamentação. R E L A T Ó R I O Termo Circunstanciado: instaurado para apurar a suposta prática de maus tratos (art. 136, CP) pela Noticiada Roseli Gonçalves contra seus netos, menores impúberes. R. Decisão: o R. Juízo declarou a incompetência do 1º Juizado Especial Criminal de Guarapuava e determinou a redistribuição do feito a uma das Varas Criminais da Comarca (mov. 17.1, autos principais). Recurso: o Ministério Público interpôs Recurso em Sentido Estrito (mov. 21.1, autos principais), pleiteando a reforma da R. Secisão e o regular prosseguimento do feito perante o 1º Juizado Especial Criminal de Guarapuava. Manifestação: nos autos de origem, o Ministério Público se manifestou pelo recebimento do recurso como Apelação (mov. 37.1) e remessa à Turma Recursal. Parecer: o parquet manifestou-se nos presentes autos para que o recurso seja recebido como Correição Parcial e provido (mov. 11.1). V O T O Embora a decisão combatida (reconhecendo a incompetência do Juizado Especial Criminal) não seja passível de ser impugnada por meio de Recurso em Sentido Estrito, conforme o Enunciado 48 do FONAJE, e tampouco se enquadre como recorrível através de Recurso de Apelação, conforme previsto no artigo 82 da Lei 9.099/1995, o meio adequado para impugná-la seria a Correição Parcial, pois referido expediente administrativo tem por objeto a análise de atos que configuram error in procedendo. Assim, inexistindo má-fé na interposição do recurso, tampouco caracterizado eventual erro grosseiro, nos termos do art. 579 do Código de Processo Penal, é cabível a aplicação do princípio da fungibilidade para permitir seu processamento como Correição Parcial – o que ora realizo. Conforme o art. 353 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a correição parcial requer, para sua procedência, a comprovação de dois requisitos: i) interesse na correção de eventual erro ou abuso que possa causar inversão tumultuária da ordem dos atos processuais; e/ou ii) a paralisação injustificada do feito ou dilação abusiva de prazos, cabendo ao Corrigente a comprovação inequívoca da ocorrência de tais hipóteses. Dito isso, verifico que o cerne da insurgência recursal passa pelo declínio de competência do Juizado Especial Criminal, a despeito da opinio delicti do Ministério Público, para processamento do feito. Contudo, o Corrigente enfrenta apenas o mérito da decisão, sem demonstrar o preenchimento dos critérios formais requeridos pelo procedimento da Correição. Muito embora o parquet tenha se manifestado, em sede recursal, pela presença de error in procedendo, não vislumbro que tenha ocorrido: não houve paralisação injustificada do feito, tumulto processual ou dilação abusiva de prazos, de modo que, ao menos do ponto de vista formal, não se fazem presentes os requisitos aptos à procedência do pedido formulado. No caso, o Termo Circunstanciado dava conta da suposta prática do delito de maus tratos (art. 136, Código Penal) contra duas crianças (netos da investigada), em contexto doméstico (cf. Boletim de Ocorrência 2023/129742, mov. 6.1 dos autos principais). Frente a isso, a R. Decisão proferida (mov. 17.1, autos principais) declinou da competência à Vara Criminal, acompanhando a tese firmada pela Sexta Turma do C. Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “as ações penais que tratam de crimes praticados com violência contra a criança e o adolescente, distribuídas após a data da publicação do acórdão deste julgamento, deverão ser obrigatoriamente processadas nos juizados/varas de violência doméstica e, somente na ausência destas, nas varas criminais comum” (STJ - REsp 2052222 RJ 2022/0220358-2, Rel. Ministro Jesuíno Rissato Desembargador Convocado do TJDFT, Data de Julgamento: 18/04/2023, T6 - Sexta Turma, Data de Publicação: DJe 24/04/2023). Sobre o tema, observo que em 24 de maio de 2022 foi promulgada a Lei n. 14.344 (Lei Henry Borel), a qual criou mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Referida legislação alterou a Lei dos Crimes Hediondos, o Código Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao adotar conceitos similares aos da Lei Maria da Penha, a nova legislação define como violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial. Essas violências podem ocorrer no âmbito do domicílio, da família e em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação. Além disso, a Lei da Escuta Protegida (Lei 11.341/2017), que dispõe sobre sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, ao utilizar o termo “preferencialmente”, em seu artigo 23, parágrafo único, não definiu de maneira clara a competência judicial para processar e julgar as demandas que envolvem crianças vítimas de violência, deixando-a vinculada à criação das Varas Especializadas em Crimes contra Crianças e Adolescentes. Vejamos (houve destaque): Art. 23. Os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Parágrafo único. Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins. Por outro lado, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) estabelece, em seu artigo 33, que “enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Referido dispositivo parece orientar, igualmente, a definição da competência judicial para a apreciação das medidas protetivas da Lei 14.344/2022 (Lei Henry Borel)[1]. Portanto, até a criação das varas especializadas em crimes contra crianças e adolescentes, as varas criminais comuns acumulariam a competência para apreciar medidas de natureza cível e criminal. Todavia, ainda há ampla divergência jurisprudencial nos Tribunais pátrios quanto a possibilidade de declinar a competência nos casos que envolvem crimes não previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, como é o caso presente, em que se apura delito previsto no art. 136 do Código Penal. Assim, a discussão em torno da aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes praticados contra crianças e adolescentes divide- se em duas correntes jurídicas: A primeira corrente defende que a proibição prevista no § 1º do artigo 226 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), inserida pela Lei Henry Borel (Lei 14.344 /2022), restringe-se apenas aos crimes tipificados no próprio ECA. De acordo com esse entendimento, a vedação ao processamento no âmbito do JECRIM somente seria aplicável às infrações previstas no Estatuto, e não a todos os crimes cometidos contra crianças e adolescentes, como os previstos no Código Penal. Por outro lado, a corrente contraposta sustenta que o § 1º do artigo 226 vai além do ECA e proíbe a aplicação da Lei 9.099/1995 a qualquer crime cometido contra crianças e adolescentes, independentemente de estar tipificado no ECA ou em outras legislações, como o Código Penal. Essa interpretação amplia o alcance da norma e visa proteger integralmente os direitos das vítimas infanto-juvenis, afastando a possibilidade de utilização de mecanismos despenalizadores, como a transação penal, para crimes de grande impacto social e moral. Além disso, essa última corrente, conforme leciona Romero[2], reforçaria um argumento de natureza constitucional, ao destacar que o direito à liberdade do autor do fato, como o eventual direito à transação penal, não pode se sobrepor ao direito à segurança e proteção integral garantido àqueles que não atingiram a maioridade. Assim, o artigo 227 da Constituição Federal, que assegura a prioridade absoluta à proteção das crianças e adolescentes, deveria prevalecer na hipótese de conflito entre direitos fundamentais, como é o caso em crimes contra a dignidade, integridade e segurança de crianças e adolescentes. Destaco que as colisões entre direitos fundamentais (como no caso em tela), sob a ótica de Alexy, podem ser entendidas como conflitos entre princípios constitucionais[3]. A solução para esses conflitos não é a simples aplicação de um direito “sobre o outro”, mas sim a ponderação, que busca equilibrar os princípios envolvidos, considerando o peso e a relevância de cada um no caso concreto[4]. Através dessa técnica, busca-se uma solução proporcional que respeite ambos os princípios, sem excluir um em favor do outro, alcançando um resultado justo e adequado. Assim, as regras que definem quando um princípio tem prioridade sobre outro são essenciais para entender o resultado jurídico que essa precedência gera. Isso reflete a ideia central da Teoria dos Princípios de Alexy, que destaca que estes não possuem uma hierarquia fixa e absoluta, mas são orientações que devem ser balanceadas para alcançar a melhor solução possível em cada caso concreto. Além disso, a ponderação, ou seja, o processo de avaliar a importância de cada princípio no contexto específico, está intimamente ligada ao princípio da proporcionalidade. Alexy afirma que a teoria dos princípios e a proporcionalidade estão profundamente conectadas, a ponto de uma depender da outra para funcionar corretamente[5]. No presente caso, temos, de um lado, o direito à liberdade do autor do fato, que inclui o possível direito à aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/1995, como a transação penal. De outro lado, temos o direito à proteção integral das crianças e adolescentes, garantido pelo artigo 227 da Constituição Federal, o qual assegura a prioridade absoluta à defesa de seus direitos. Na primeira etapa da ponderação, é necessário avaliar a adequação[6] da medida proposta. A interpretação ampliada do § 1º do artigo 226 do ECA, que proíbe a aplicação da Lei 9.099/1995 para crimes cometidos contra crianças e adolescentes, pode ser considerada adequada na medida em que visa fortalecer a proteção a esse grupo vulnerável, prevenindo a banalização de delitos graves ao impedir que o autor dos crimes se beneficie de mecanismos despenalizadores. Na etapa seguinte, a análise da necessidade[7] requer a verificação de alternativas menos restritivas que também garantam a proteção integral da criança e do adolescente. Embora existam outros mecanismos de punição e reparação, como medidas cautelares, a exclusão da aplicação de benefícios penais para crimes graves cometidos contra menores parece ser uma medida necessária, dado o impacto social e moral de tais crimes, bem como o dever de assegurar, prioritariamente, o melhor interesse da criança. Por fim, na análise da proporcionalidade[8] em sentido estrito, deve-se ponderar se o sacrifício imposto ao direito do autor de recorrer à transação penal é justificado pelo benefício de se garantir maior proteção às crianças e adolescentes. A proteção integral das vítimas infanto-juvenis, assegurada pela Constituição, tem um peso significativo, especialmente em crimes que envolvem violência ou grave ameaça. Assim, negar ao autor do fato a possibilidade de utilizar mecanismos despenalizadores parece proporcional diante do objetivo de proteger de forma mais abrangente os direitos daqueles que ainda não atingiram a maioridade (e se encontram em posição de vulnerabilidade). Dessa forma, ao ponderar os direitos em questão – a liberdade do acusado e acesso a possíveis medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95 e os direitos fundamentais das crianças e adolescentes –, concluo que a posição que sustenta a total impossibilidade de aplicação da Lei 9.099/1995 deve prevalecer. Isso porque o objetivo maior do ordenamento jurídico e constitucional é assegurar a máxima proteção a esse grupo vulnerável, reforçando o papel do Estado, da sociedade e da família em protegê-los de todas as formas de violência e negligência. Ademais, em que pese o dissídio jurisprudencial nos Tribunais brasileiros, esse é o entendimento que tem prevalecido nas Câmaras Criminais do E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO – INQUÉRITO POLICIAL – DIVERGÊNCIA ENTRE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ACERCA DA CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DO FATO INVESTIGADO – DECISÕES JUDICIAIS ACOLHENDO AS MANIFESTAÇÕES MINISTERIAIS – QUESTÃO JURISDICIONALIZADA – HIPÓTESE DE CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – POSIÇÃO ADOTADA PELO STF, STJ E POR ESTA CÂMARA CRIMINAL – PRECEDENTES. MÉRITO – ELEMENTOS QUE INDICAM A PRÁTICA DO CRIME DE MAUS- TRATOS CONTRA CRIANÇA – LEI HENRY BOREL (LEI Nº 14.344/22) QUE INCLUIU ARTIGO 226, §1º AO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE – VEDAÇÃO À APLICAÇÃO DA LEI Nº 9.099/95 QUANDO SE TRATAR DE CRIME CONTRA CRIANÇA E ADOLESCENTE – INDEPENDENTEMENTE DA PENA COMINADA – CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE PARA DETERMINAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA VARA CRIMINAL DE FRANCISCO BELTRÃO – CONFLITO PROCEDENTE. I. CASO EM EXAME1. 1. O Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal da Comarca de Francisco Beltrão suscita conflito de competência em face do Juízo de Direito da Vara Criminal da mesma Comarca, sustentando que a Lei nº 9.099/95 não se aplica a crimes cometidos contra criança e adolescente, conforme dispõe a Lei nº 14.344/2022 (Lei Henry Borel).1. 2. A Procuradoria Geral de Justiça, por meio de parecer do Procurador de Justiça Ivonei Sfoggia, opinou pelo não conhecimento do incidente, entendendo tratar-se de conflito de atribuições entre membros do Ministério Público Estadual, a ser resolvido pelo Procurador-Geral de Justiça.1. 3. Todavia, como o incidente foi suscitado pelo Magistrado, a questão está jurisdicionalizada, cabendo ao Poder Judiciário dirimir o conflito de competência.1. 4. Os Juízos em conflito, baseados nas manifestações dos Promotores de Justiça, recusaram a competência para julgar as infrações penais investigadas, sendo que um entendeu pela incidência da Lei nº 9.099/95 e o outro pela impossibilidade de sua aplicação a crimes contra crianças e adolescentes. II. QUESTÕES EM DISCUSSÃO2. 1. Se o conflito de competência deve ser dirimido pelo Poder Judiciário, uma vez que o incidente foi suscitado pelo Magistrado, e não se trata de mero conflito de atribuições entre membros do Ministério Público. 2.2. Se é aplicável a Lei nº 9.099/95 a crimes cometidos contra crianças e adolescentes, à luz da vedação expressa contida na Lei nº 14.344/2022 (Lei Henry Borel). III. RAZÕES DE DECIDIR3. 1. O conflito de competência é questão jurisdicional quando suscitado pelo Magistrado, ainda que a divergência tenha se iniciado com manifestações de membros do Ministério Público, conforme consolidado no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.3. 2. O artigo 226, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), introduzido pela Lei nº 14.344/2022, expressamente exclui a aplicação da Lei nº 9.099/95 a crimes cometidos contra crianças e adolescentes, independentemente da pena prevista.3. 3. A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná também sustenta a inaplicabilidade da Lei nº 9.099/95 a crimes que envolvam vítimas crianças ou adolescentes, reforçando a necessidade de maior proteção para esse grupo vulnerável. IV. DISPOSITIVO E TESE4. 1. Conhece-se do conflito negativo de competência, firmando-se a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal da Comarca de Francisco Beltrão para processar e julgar o feito, afastando-se a aplicação da Lei nº 9.099/95 aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes.4.2. Tese de julgamento: "É inaplicável a Lei nº 9.099/95 aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes, conforme dispõe o artigo 226, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com redação dada pela Lei nº 14.344/2022 (Lei Henry Borel), sendo competente para processar e julgar tais crimes o Juízo Criminal Comum." Dispositivos relevantes citados: – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), art. 226, § 1º.– Lei nº 9.099/95, art. 61.– Código de Processo Penal, arts. 113 e seguintes. Jurisprudência relevante citada:– STF, Pet nº 623 QO/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 27.9.1996.– STJ, CC nº 159.497/CE, 3ª Seção, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 1.10.2018.– TJPR, 1ª Câmara Criminal, 0014599-07.2023.8.16.0069, Rel. Des. Subst. Benjamim Acácio de Moura e Costa, J. 11.05.2024.– TJPR, 1ª Câmara Criminal, 0004075- 71.2023.8.16.0029, Rel. Juiz Mauro Bley Pereira Júnior, J. 10.02.2024. (TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0001815-29.2024.8.16.0209 - Francisco Beltrão - Rel.: SUBSTITUTO SERGIO LUIZ PATITUCCI - J. 14.09.2024) CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO COMUM E JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. ELEMENTOS QUE INDICAM A PRÁTICA DO CRIME DE MAUS-TRATOS CONTRA CRIANÇA. LEI. HENRY BOREL (LEI. 14.344/22) QUE INCLUIU ARTIGO 226, §1 NO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE. VEDAÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI N. 9.099/95 QUANDO SE TRATAR DE CRIME CONTRA CRIANÇA E ADOLESCENTE. CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE PARA DETERMINAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA VARA CRIMINAL DE CIANORTE. (TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0014599-07.2023.8.16.0069 - Cianorte - Rel.: SUBSTITUTO BENJAMIM ACACIO DE MOURA E COSTA - J. 11.05.2024) CONFLITO DE COMPETÊNCIA – JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL X JUÍZO CRIMINAL COMUM – COMPETÊNCIA DO JUÍZO CRIMINAL COMUM - APURAÇÃO DA PRÁTICA DE CRIMES DESCRITOS NOS ARTS. 136 E 330 DO CÓDIGO PENAL - APURAÇÃO DA EVENTUAL PRÁTICA DE CRIME DE MAUS TRATOS - LEI Nº 14.344/2022 - LEI HENRY BOREL VEDA A APLICAÇÃO DA LEI 9.099/95 A CRIMES COMETIDOS CONTRA CRIANÇA E ADOLESCENTES NO ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR, SEJAM ELES PREVISTOS NO ECA, NO CÓDIGO PENAL OU NA LEGISLAÇÃO ESPARSA – IRRELEVÂNCIA DO QUANTUM DE PENA PREVISTO – ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. ADEMAIS, NO QUE TANGE AO ART. 330 DO CÓDIGO PENAL – CONEXÃO COM ESCOPO NO ART. 76 DO CPP – PROCESSAMENTO E JULGAMENTO PELO JUÍZO COMUM - CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE. CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE. (TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0004075-71.2023.8.16.0029 - Colombo - Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU MAURO BLEY PEREIRA JUNIOR - J. 10.02.2024) Por fim, entendo que a posição dominante neste E. Tribunal, acompanhando a corrente que defende a impossibilidade completa de aplicação da Lei 9.099/1995 a crimes cometidos contra crianças e adolescentes encontra respaldo também na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte IDH reforça o princípio da proteção integral e da prioridade absoluta dos direitos das crianças, conforme estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Destaco: Em todas as situações que envolvam crianças, quatro princípios orientadores devem ser aplicados e respeitados transversalmente, nomeadamente: i) não discriminação; ii) o melhor interesse da criança; iii) o direito de ser ouvido e participar, e iv) o direito à vida, sobrevivência e desenvolvimento. Qualquer decisão estatal, social ou familiar que implique qualquer limitação ao exercício de algum direito de uma menina ou de um menino, deve ter em conta o superior interesse da criança e adequar-se rigorosamente às disposições que regem a matéria. A Corte reitera que o melhor interesse da criança se fundamenta na própria dignidade da pessoa humana, nas características da criança e na necessidade de promover seu desenvolvimento, com pleno aproveitamento de suas potencialidades. [Corte IDH. Caso Ramírez Escobar e outros vs. Guatemala. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 9-3-2018. Tradução livre.] Com esse espírito, a Corte IDH tem reiteradamente decidido que os Estados têm a obrigação de adotar todas as medidas necessárias para garantir a segurança e a integridade das crianças, especialmente em situações de vulnerabilidade, impondo que a proteção aos direitos das crianças deve ser efetiva e prioritária. Isso implica a adoção de medidas legais que assegurem a devida punição de crimes contra menores, afastando a aplicação de mecanismos que possam minimizar a gravidade dessas infrações, como os previstos na Lei 9.099/1995. Ao proteger os direitos das crianças e adolescentes, a interpretação mais restritiva da competência do JECRIM se alinha aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, reafirmando que a segurança, dignidade e integridade física e moral das crianças devem prevalecer sobre o direito do acusado a mecanismos de despenalização. Assim, essa visão, que prioriza a proteção integral e a severidade na punição de crimes contra menores, encontra sólida fundamentação na jurisprudência da Corte IDH. Diante disso, e, tendo em vista a inexistência de quaisquer equívocos procedimentais apontados na atuação do R. Juízo de origem, nos termos do art. 353 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, entendo que não merece prosperar a correição pretendida. Diante do exposto, voto para receber o Recurso em Sentido Estrito como Correição Parcial, pelo princípio da fungibilidade, e para JULGAR IMPROCEDENTE o pedido, mantendo a R. Decisão por seus próprios fundamentos. Sem custas ou honorários. É como voto. Ante o exposto, esta 4ª Turma Recursal dos Juizados Especiais resolve, por unanimidade dos votos, em relação ao recurso de MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, julgar pelo(a) Com Resolução do Mérito - Não-Provimento nos exatos termos do voto. O julgamento foi presidido pelo (a) Juiz(a) Marco Vinícius Schiebel, com voto, e dele participaram os Juízes Tiago Gagliano Pinto Alberto (relator) e Leo Henrique Furtado Araújo. 22 de novembro de 2024 TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO Juiz Relator *A síntese desta fundamentação encontra-se explicada neste segmento do voto, em linguagem simplificada e de fácil acesso ao cidadão, em atenção ao princípio argumentativo da inteligibilidade. ANEXO I 1. Competência dos Juizados Especiais A decisão questiona se o Juizado Especial Criminal (JECRIM) é competente para julgar o caso. O caso envolve maus-tratos contra crianças (Art. 136 do Código Penal), o que atrai a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Crimes contra crianças e adolescentes, especialmente em um contexto de violência doméstica, não podem ser julgados pelo JECRIM, pois envolvem maior gravidade. 2. Lei Henry Borel Os fatos ocorreram em 2023, já durante a vigência da Lei Henry Borel, que trata da proteção de crianças contra a violência doméstica. Essa lei proíbe que crimes de violência contra crianças sejam julgados por juizados especiais, direcionando-os para varas especializadas e, na sua ausência, para as varas criminais regulares. 3. Proteção Integral das Crianças A decisão também se alinha ao entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essa Corte defende a proteção total e a prioridade dos direitos das crianças, o que reforça a necessidade de tratamento rigoroso em casos de crimes contra elas. O uso de mecanismos de despenalização, como os previstos na Lei 9.099 /1995, que poderia abrandar a punição, não se aplica nesses casos. 4. Jurisprudência O Tribunal de Justiça do Paraná reafirma que a Vara Criminal tem competência para julgar crimes de maus-tratos e outros delitos cometidos contra crianças. O entendimento é que a Lei Henry Borel veda a aplicação de processos simplificados para esses crimes, independentemente da pena prevista. 5. Regularidade do Processo Não houve erros processuais que justifiquem a anulação da decisão. A condução do processo está de acordo com as regras do Tribunal de Justiça do Paraná. 6. Resultado O recurso foi recebido como Correição Parcial, a qual foi julgada improcedente. Ou seja, o Tribunal decidiu manter a decisão original, considerando-a correta. Conclusão: Crimes contra crianças são tratados com maior rigor pela legislação brasileira, especialmente após a vigência da Lei Henry Borel. Os juizados especiais criminais, que tratam de crimes menos graves e que permitem penas alternativas, não são competentes para esses casos, devendo ser julgados pela Vara Criminal. A decisão reafirma a prioridade dos direitos das crianças e adolescentes e a necessidade de garantir uma punição adequada para crimes que os envolvem. [1] Conforme MARTINS, Marília. Ferraz. Violência doméstica e familiar contra a criança e adolescente. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Comissão da Infância e Juventude. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/cije/slides_marilia_violencia. pdf Acesso em 28 jun. 2024. [2] ROMERO, Paulo Roberto Santos. Os maus tratos, a Lei Henry Borel e os Juizados Especiais Criminais. 5 set. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-05/paulo- romero-crime-maus-tratos-lei-henry-borel-jecrim/ Acesso em 07/10/2024. [3] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, p. 95. [4] Idem, p. 94. [5] TRIVISONNO, Alexandre T. G.; OLIVEIRA, Júlio Aguiar. As condições e a estrutura da ponderação de princípios na Teoria Discursiva do Direito: o STF realmente pondera? RIL. Brasília, a. 60, n. 238, p. 11-31 abr./jun. 2023. [6] ALEXY, Robert, op. cit., p. 588-589. [7] ALEXY, Robert, op. cit., p. 590-592. [8] Id., ibid., p. 593-611.
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