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Acórdão
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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N.º 0025399-31.2015.8.16.0019, DA COMARCA DE PONTA GROSSA - – 3.ª VARA CRIMINAL RECORRENTE: MATHEUS ZAINEDIN RECORRIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ RELATOR: DES. MIGUEL KFOURI NETO PRONÚNCIA. HOMICÍDIO SIMPLES COMETIDO COM DOLO EVENTUAL NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 121, CAPUT, CP). RECURSO DA DEFESA. ALMEJADA DESCLASSIFICAÇÃO PARA A MODALIDADE CULPOSA. PROCEDÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS HÁBEIS A CONFIGURAR CONDUTA DOLOSA. EMBRIAGUEZ ALIADA À CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM CHINELOS E COM ESTADO DE SONOLÊNCIA QUE, NO CASO, NÃO É SUFICIENTE PARA TIPIFICAR O DOLO EVENTUAL. AUSÊNCIA DE INDICATIVOS DE QUE O ACUSADO DELIBERADAMENTE EFETUOU MANOBRA ARRISCADA, DE MODO A ASSUMIR O RISCO DE ATROPELAR A OFENDIDA SOBRE A CALÇADA, CAUSANDO-LHE A MORTE. CIRCUNSTÂNCIAS IMPUTADAS AO ACUSADO QUE, NO CASO, NÃO SÃO SUFICIENTES PARA O RECONHECIMENTO DO DOLO EVENTUAL. AUSÊNCIA, ADEMAIS, DE INDICATIVOS DE QUE O ACUSADO TRAFEGAVA EM VELOCIDADE MUITO SUPERIOR À PERMITIDA. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME PARA A MODALIDADE CULPOSA QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso em Sentido Estrito sob n.º 0025399-31.2015.8.16.0019, da Comarca de Ponta 2 Grossa – 3.ª Vara Criminal, em que é recorrente MATHEUS ZAINEDIN e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. O Ministério Público do Estado do Paraná ofereceu denúncia contra MATHEUS ZAINEDIN como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal, pelos fatos assim descritos: “No dia 19 de setembro de 2015, por volta das 09h00min, em via pública, no prolongamento da Rua Vicente Machado, n.º 1.100, Centro, nesta cidade e Comarca de Ponta Grossa/PR, o denunciado MATHEUS ZAINEDIN, agindo com dolo eventual em relação aos resultados produzidos por sua conduta, qual seja a de conduzir o veículo automotor Fiat/Siena, placas APZ-0321, com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool, eis que, mesmo ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, bem como de que havia consumido significativa quantidade de bebida alcoólica, que estava com muito sono, dirigindo de chinelo (e que, portanto, sequer deveria estar dirigindo, pois estava com seus reflexos e atenção prejudicados), voluntariamente realizou manobra arriscada, sem demonstrar qualquer preocupação no sentido de ao menos certificar-se de que poderia fazê-lo com razoável segurança (cf., aliás, comanda o art. 34 do Código de Trânsito Brasileiro) – assumindo, portanto, o risco real de vir a ocasionar grave(s) colisão(ões) com outros veículos automotores ou causar lesões corporais das quais poderia resultar na morte de terceiro, como efetivamente ocorreu, visto que o denunciado matou a vítima VALDOMIRA FRANCZAK DO AMARAL ao invadir o passeio com o referido veículo e atingi- la, causando-lhe as lesões descritas no Laudo de Exame Cadavérico (fl. 50), ocasionando politraumatismo, causa eficiente de sua morte.” (mov. 58.1) Vencido o itinerário procedimental pertinente, o MM. Juiz pronunciou MATHEUS como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal. Foi-lhe permitido aguardar o julgamento em liberdade (mov. 163.1). Inconformado, MATHEUS interpôs o presente recurso em sentido estrito (mov. 180.1). A Defesa alega nas razões recursais que o acusado não agiu com dolo eventual. Ao contrário do que consta da denúncia, não está comprovado que MATHEUS estava embriagado no momento do ocorrido, já que havia parado de ingerir cerveja por volta das 02h30/03h e o acidente ocorreu aproximadamente às 09h. Os sinais de embriaguez relatados pelos policiais que atenderam a ocorrência podem ter sido confundidos com sinais de ressaca e, principalmente, do nervosismo do acusado por ter atropelado a 3 vítima, ocasião em que ele inclusive bateu sua cabeça contra o volante – “o que também explica sua excitação logo após o fato”. Ademais, a má conservação da via – curva sinuosa sem acostamento, “com inúmeros buracos e ondulações resultantes de reparos mal feitos” – pode ter contribuído para o atropelamento. Assevera, também, que MATHEUS não trafegava em alta velocidade, salientando que, no momento do ocorrido, “apenas estava voltando para sua residência por um caminho alternativo, após aproximadamente 5 (cinco) horas depois de ter parado de ingerir bebidas alcóolicas, motivo pelo qual em nenhum momento perseguiu ou anuiu com o resultado desastroso”. Ao concluir, pede a desclassificação da conduta para a modalidade culposa, bem como o reconhecimento das atenuantes previstas no art. 65, inc. III, alíneas “b” e “d”, do Código Penal. Requer, ainda, seja computado “o tempo que o réu permaneceu preso provisoriamente – 3 dias”, nos termos do art. 42 do Código Penal (mov. 180.1). Contrarrazões, pelo desprovimento do recurso (mov. 206.1). Subiram os autos a esta Corte. A douta Procuradoria Geral de Justiça, em r. parecer subscrito pelo ilustre Procurador de Justiça, Dr. Alfredo Nelson da Silva Baki, opina pelo parcial conhecimento do recurso e, na parte conhecida, pelo seu desprovimento (mov. 9.1 – TJ). É a síntese do essencial. FUNDAMENTAÇÃO E VOTO Cuida-se de recurso em sentido estrito interposto por MATHEUS ZAINEDIN contra a r. decisão que o pronunciou como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal (mov. 163.1). A Defesa almeja a desclassificação da conduta para a modalidade culposa, ao argumento de que o acusado não agiu com dolo eventual. Inexistem provas de que ele estava embriagado no momento do ocorrido. Ademais, MATHEUS não trafegava em alta velocidade, sendo que o atropelamento pode ter ocorrido por conta da má conservação da via, já que o local era uma curva acentuada sem acostamento, com diversos buracos e ondulação. 4 Pois bem. A materialidade dos fatos está comprovada pelo Auto de Prisão em Flagrante (mov. 1.2), Boletim de Ocorrência (mov. 49.4), Certidão de Óbito (mov. 49.7), Laudo de Exame de Veículo a motor (mov. 49.16); Extrato consolidado de Acidente de trânsito – BATEU (mov. 56.7/56.10 e 55.16/55.17), Laudo de Exame Complementar (mov. 55.16), bem como pelo Laudo de Exame e Levantamento Indireto de Local de Atropelamento e Morte (mov. 146.1). Quanto à autoria delitiva, o réu MATHEUS ZAINEDIN confirma ter atropelado Valdomira Franczak do Amaral, porém nega que estivesse embriagado no momento do ocorrido e em alta velocidade. MATHEUS relata que no dia anterior havia ido a uma festa com alguns amigos, local onde ingeriu cerveja – “umas cinco ou seis latinhas”. Por volta das 02h30/3h cochilou na residência onde estava ocorrendo a festa. Posteriormente, Fábio acordou o interrogado para que fossem embora. O interrogado, então, decidiu ir para sua casa e deu uma carona a Fábio, para levá-lo à residência dele. No caminho, quando “estava descendo”, o interrogado viu que a vítima “atravessou rápida”. O interrogado não “lembra bem o que aconteceu”, mas acredita que se assustou e se recorda que, quando viu a vítima, “puxou o carro”, para a esquerda. Lembra do impacto na vítima e logo em seguida puxou o volante e bateu no poste. Bateu a cabeça no volante. De pronto olhou pelo retrovisor. Única coisa que passou pela cabeça foi ver se ela estava viva. Saiu do carro, procurou ver se ela tinha algum sinal. Estava bem machucada. Dirigiu-se até uma escada ali perto e sentou. Nisso apareceu uma mulher perguntando se tinha bebido, falou que não. Logo em seguida veio bombeiro. Tentou auxiliar, mas afastaram-no do local e pediram para esperar. Depois disso foi preso. Algemaram-no e o colocaram no camburão. Até terminarem o flagrante. Não lembra da latinha de cerveja que foi encontrada no carro. Bebeu Kaiser, mas não lembra da latinha. Ali normalmente passava a 40 km/h – 30 km/h. Não exagerava ali, que tinha conhecimento de uma via perigosa. Não estava chovendo, fazia bastante sol. (...) Na verdade, visualizou a vítima na hora que começou a fazer a curva. Ela meio que atravessou. Não lembra se acabou colidindo com ela na rua ainda. Bateu no canto direito da frente do carro. Em seguida, o interrogado bateu no poste. No susto puxou o carro. Acha que dá uns cinquenta metros no máximo do local que bateu na vítima até o poste. (...) Pediu para alguém ligar para o bombeiro e para a polícia. Saiu sem celular. Só parou e pediu para uma mulher, uma das primeiras que estavam no local. (...) Considera que se estivesse em alta velocidade poderia ter capotado. (...) Pretende assumir a responsabilidade. Está aqui para arcar com as 5 consequências. Já tinha passado no local do acidente. Passou lá e deixou o Fabio. Mora no Santa Paula. (...) Às vezes voltava pela Taunay (mov. 142). Claudinei Ramos da Silva afirma que se dirigiu ao local dos fatos para dar atendimento ao atropelamento descrito na denúncia. MATHEUS relatou que perdeu o controle do veículo e confirmou que atropelou a vítima, tendo em seguida batido em um poste. A vítima estava sendo atendida na ambulância, mas não foi possível reanimá-la. O acusado recusou-se a fazer o teste do bafômetro. Foi feito o auto de constatação de embriaguez, pois MATHEUS apresentava odor etílico, dificuldade na fala e escrita bem ruim. Salienta que o acusado fez uma declaração por escrito “e teve bastante dificuldade para por no papel”. Havia uma lata de cerveja dentro do veículo, aberta e quase cheia. Quando o depoente chegou ao local, MATHEUS estava fora do veículo e de chinelo. O atropelamento ocorreu por volta das 09h, talvez um pouco antes. O local é uma curva, “bem perigosinha”, estreita e “não é boa”, mas havia sinalização. O acusado não disse se estava em alta velocidade. Não é normal haver circulação de pessoas no local. O local dos fatos fica próximo ao Centro, e faz ligação com o Bairro Ronda. É uma curva acentuada e o limite de velocidade, pelo que o depoente se recorda, é de 30 km/h. (...) Após o atropelamento que foi sobre a calçada, o acusado colidiu com o poste. Não tem área de escape para veículo, só uma calçada mais estreita para pedestre. (...) Ao atender a ocorrência, é normal questionar o condutor, conversar com ele, convidar para fazer ao etilômetro, bem como indagar se ele deseja fazer uma declaração por escrita. Nesse momento foi constatada a dificuldade na escrita. MATHEUS estava visivelmente nervoso. (...) Questionado, o réu confirmou que havia “tomado umas cervejas” nas primeiras horas daquele dia;... (mov. 142). Rafael dos Santos, que também atendeu a ocorrência, apresenta relato semelhante ao de Claudinei, supratranscrito. Aduz que foi o depoente quem localizou a lata de cerveja, Kaiser, no interior do veículo conduzido pelo réu, a qual havia sido consumida pela metade. Confirma que MATHEUS apresentava sinais de embriaguez – “odor etílico forte”, bem como dificuldade na fala e na escrita. Também se recorda que o acusado estava usando chinelo (mov. 142). Por sua vez, Fábio Ribeiro do Nascimento afirma que é amigo de MATHEUS e que esteve com ele no dia anterior ao acidente. Foi um churrasco que teve da meia-noite às 02h com os amigos. O pessoal bebeu algumas cervejas até às 02h e depois dormiram no mesmo local. No dia seguinte foram para casa. Era de manhã cedo, por volta das 08h. Foi para casa com o MATHEUS. Ele foi dirigindo. Deixou uma cerveja no carro. Ele não estava muito alterado. Dormiram e depois foram para casa. Talvez 6 sonolento, mas alterado não. Foi o depoente quem esqueceu a cerveja no carro. Deixou a cerveja embaixo do banco do passageiro. Não sabe dizer quanto de bebida ele ingeriu, só o horário – da meia-noite às 2h. Sabe o horário porque estava junto. Foi o horário que durou o churrasco. O depoente também dormiu lá. A cerveja já estava do dia anterior. Estava no banco do passageiro. O depoente não estava junto com o acusado no momento do acidente, pois já tinha ficado em casa. (...) A latinha estava vazia (mov. 142). Odilon Labas Junior diz que conhece MATHEUS, pois foram colegas de faculdade e trabalho. Ficou sabendo do ocorrido porque recebeu uma ligação de Silvio que contou da situação. (...) Chegando à delegacia entrou na entrada da carceragem e viu MATHEUS deitado no chão de piso bruto. (...) Quando conversou com ele, ele foi bem lúcido. Atendeu ele uma hora depois da prisão. (...) MATHEUS estava bem abatido, nervoso, mas nada que fosse extremo (mov. 142). A denúncia descreve que MATHEUS agiu com dolo eventual, pois conduziu seu veículo Fiat/Siena embriagado, com muito sono e de chinelo, tendo realizado “manobra arriscada, sem demonstrar qualquer preocupação no sentido de ao menos certificar-se de que poderia fazê-lo com razoável segurança” – ocasião em que atropelou a vítima Valdomira Franczak do Amaral, sobre o passeio, matando-a. Ao contrário do que alega a Defesa, entendo que há indicativos de que MATHEUS estava embriagado no momento do ocorrido. Apesar de não haver prova técnica – vez que consta dos autos que MATHEUS não quis se submeter ao teste de bafômetro -, os policiais que atenderam a ocorrência, Claudinei Ramos da Silva e Rafael dos Santos, confirmam que ele apresentava sinais de embriaguez – odor etílico e dificuldade na fala e na escrita. Ademais, MATHEUS afirma que, na noite anterior até a madrugada do dia dos fatos, participou de um churrasco, local onde ingeriu cerveja. Apesar de relatar que desde às 02h30 da manhã, horário em que foi dormir, até o momento dos fatos (por volta das 09h) não ingeriu mais cerveja, ele admite que, durante o churrasco, ingeriu “umas cinco ou seis latinhas”. Não obstante, ainda que existam indicativos da embriaguez do acusado, a pretensão de desclassificação merece prosperar. Como referido, a denúncia imputa o dolo eventual em razão de MATHEUS ter conduzido seu veículo embriagado, com muito sono, de chinelos, ocasião em que realizou “manobra arriscada, sem demonstrar 7 qualquer preocupação no sentido de ao menos certificar-se de que poderia fazê-lo”, ocasião em que invadiu o passeio e atropelou a ofendida, matando-a. De fato, Claudinei Ramos da Silva e Rafael dos Santos confirmam que MATHEUS estava de chinelo. Tal fato, todavia, embora constitua infração administrativa (art. 252, inc. IV, CTB), não justifica a pronúncia do acusado, ainda que aliado às demais circunstâncias indicadas na inicial acusatória. Por outro lado, não há indicativos suficientes de que MATHEUS efetivamente estava “com muito sono”, conforme descrito na denúncia. Fábio Ribeiro do Nascimento afirma que “talvez” o acusado estivesse “sonolento”, mas não alterado. Ele, porém, confirma a informação do acusado de que foram dormir por volta das 02h, aduzindo que acordaram por volta das 08h para ir embora do local. E, consoante consta da denúncia, o atropelamento ocorreu por volta das 09h. Quanto à imputação da “manobra arriscada”, nenhuma testemunha presencial foi ouvida sob o crivo do contraditório. Ao ser interrogado em Juízo, porém, MATHEUS afirma que, no local dos fatos, quando estava indo à sua residência, viu que a vítima “atravessou rápida”. O interrogado não “lembra bem o que aconteceu”, mas acredita que se assustou e se recorda que, quando viu a vítima, “puxou o carro”, para a esquerda. Lembra do impacto na vítima e logo em seguida puxou o volante e bateu no poste. Ou seja, ainda que se entenda que a vítima foi atropelada sobre a calçada, inexistem indicativos de que o acusado deliberadamente realizou manobra arriscada, a ponto de assumir o risco de causar o evento danoso descrito na denúncia, que infelizmente ocasionou a morte de Valdomira. Ademais não há, nos presentes autos, comprovação de que MATHEUS trafegava em velocidade muito superior à permitida, circunstância essa sequer descrita na denúncia. Portanto, as circunstâncias indicadas na denúncia, ainda que somadas, não se mostraram suficientes para a caracterização da figura do dolo eventual. Em situações como esta, de acidentes ocorridos no trânsito, a regra é de que os crimes são culposos, de modo que, para que seja configurado o dolo, ainda que eventual, deve-se verificar elementos concretos e bem delineados no sentido de que o denunciado ao menos “assumiu o risco 8 de produzir o resultado”, no caso, morte. Ou seja, o dolo eventual em crimes de trânsito, embora admissível, é sempre exceção. Este é o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, consignado no julgamento do REsp n.º 249604/SP, 5.ª Turma, de relatoria do Min. Felix Fischer, qual seja, de que o dolo eventual nos crimes de trânsito é exceção. A distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente é uma das questões mais controvertidas do Direito Penal. Como se observa da leitura do art. 18, inc. I, do Código Penal, que prevê que o agente deve “assumir o risco” de produzir o resultado, o nosso ordenamento jurídico adotou a teoria do consentimento do dolo eventual. Ou seja, para a configuração do dolo eventual é necessária a presença dos dois elementos do dolo: o cognitivo e o volitivo, pois como observa ALBERTO SILVA FRANCO, citando DIAZ PALOS, o dolo eventual, “‘é dolo antes que eventual’. E por ser dolo e desta forma exigir os dois momentos, não pode ser conceituado com desprezo de um deles, como fazem os adeptos da teoria da probabilidade, que se desinteressam por completo do momento volitivo.” (in “Código Penal e sua interpretação jurisprudencial”, 5 ed. São Paulo: RT, 2002, p. 205). O eminente professor JUAREZ TAVARES assim leciona sobre o tema, verbis: “A distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente continua sendo um dos pontos mais controvertidos e nevrálgicos da teoria do delito. A fim de estabelecer essa distinção, atendendo aos fundamentos antes enunciados, deve-se partir de dois pressupostos. O primeiro, de que o dolo eventual, é legalmente, equiparado ao dolo direto no tocante aos seus efeitos, o que quer dizer que o dolo eventual deve haver um grau de intensidade no tocante ao processo de produção do resultado que tenha carga equivalente àquela que se desenvolve com o dolo direto. Isto leva à conclusão de que o dolo eventual deve ter uma base normativa que justifique sua inclusão no âmbito volitivo do sujeito. Assim, na identificação do dolo eventual é preciso não perder de vista esse procedimento de equivalência, o que faz cair por terra, por conseguinte, qualquer teoria que pretenda equacioná-lo exclusivamente nos amplos limites de seu elemento intelectivo. O segundo pressuposto é de que no dolo eventual o agente deve ter refletido e estar consciente acerca da possibilidade da realização do 9 tipo e, segundo o seu plano para o fato, se tenha colocado de acordo com o fato de que, com sua ação produzirá uma lesão no bem jurídico. Já na culpa consciente, o agente também está ciente da possibilidade de realização do tipo, mas como não se colocou de acordo com a produção do resultado lesivo, espera poder evitá-lo ou confia na sua não-ocorrência. A distinção, assim, deve processar-se no plano volitivo e não apenas no plano intelectivo do agente.” (...) O Código Penal brasileiro, em seu art. 18, I, acolhe a fórmula de assumir o risco, que implica dar relevância, na configuração do dolo eventual, ao seu elemento volitivo e não meramente intelectivo, mas essa adoção nada mais é do que uma expressão também do conformar-se com o resultado e não descarta a análise do elemento intelectivo como seu pressuposto prévio. Neste particular, inclusive em face da equivocidade de seus termos, a fórmula do código é evidentemente incompatível com um direito penal de garantia que está a exigir uma precisa tomada de posição da doutrina para delimitá-la no seu verdadeiro sentido. A questão primordial do dolo eventual não reside proporcionalmente nas expressões de formulação legal ou nas expressões usadas pela doutrina, mas no ponto em que, no dolo, qualquer que seja sua espécie, há uma vontade do agente no sentido de realizar o resultado e, assim, lesar o bem jurídico. Para que se possa sustentar a existência do dolo eventual ainda que dentro da estrutura do dolo, como forma de direção consciente e voluntária da sua conduta, assim como vontade de manobrar ou conduzir essa atividade, será preciso partir de dois fundamentos: a) o agente deve ter consciência de que, com sua atuação, pode seriamente lesar ou pôr em perigo um bem jurídico; b) atua com indiferença diante dessa séria possibilidade de lesão ou colocação em perigo do bem jurídico, de modo a assumir o risco de sua produção. O que assinala, portanto, a base do dolo eventual é a relação recíproca de seus elementos constitutivos. Primeiramente, o agente deve dirigir sua conduta com consciência da seriedade das possibilidades de lesão e de perigo de lesão ao bem jurídico e, ademais, com indiferença a essa possibilidade de lesão ou colocação de perigo que ele admitiu como séria, isto é uma possibilidade efetiva, concreta, atual. Em segundo lugar, que essa indiferença se traduza numa aceitação do resultado de dano ou de perigo. A indiferença não se pode satisfazer simplesmente com uma decisão sobre a direção da conduta, mas pressupõe, para servir de base ao dolo, que o agente inclua na sua consciência que essa modalidade de atuação está sendo conduzida no sentido de uma séria possibilidade de lesão 10 ou colocação em perigo do bem jurídico.” (in “Teoria do Injusto Penal”, 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 346/351). Com base na lição do professor JUAREZ TAVARES, pode- se concluir que ao praticar “racha” o agente tem “consciência de que, com sua atuação, pode seriamente lesar bens jurídicos” e “atua com indiferença diante dessa séria possibilidade de lesão, de modo a assumir o risco de sua produção”. Em tal hipótese, havendo indícios de que agiu com dolo eventual, deverá ser julgada pelo Tribunal do Júri. Já no caso do homicídio ocasionado pela conduta do motorista que dirige embriagado tal ação se subsome mais à culpa consciente do que ao dolo eventual. Ou seja, da referida conduta se extrai que o agente age por imprudência ao dirigir o veículo embriagado ao entender, de forma leviana, que estava em condições de dirigir e, neste caso, a competência será do Juiz togado. Por outro lado, esta Primeira Câmara Criminal tem firmado o entendimento de que o excesso de velocidade aliado à embriaguez ao volante pode configurar o dolo eventual, pois demonstram a consciência acerca da possibilidade de realização do tipo, em seu aspecto cognitivo e volitivo. Desse modo, a conduta de dirigir veículo automotor embriagado e em alta velocidade que exceda de forma manifesta as normas de trânsito, dependendo do caso concreto, pode ensejar um juízo de fundada suspeita da ocorrência do dolo eventual, justificando a submissão da matéria à apreciação do Tribunal Popular. Contudo, reitere-se que no presente caso não há indicativos suficientes de que MATHEUS efetivamente estava em velocidade superior à permitida, de modo a justificar a sua pronúncia. Ademais, como visto, também não há indicativos bastantes de que ele estava com “muito sono” no momento do ocorrido, nem, tampouco, que ele deliberadamente efetuou manobra arriscada, de modo a assumir o risco de causar a morte da vítima. E o fato de ele dirigir de chinelos, ainda que aliado às demais circunstâncias indicadas na denúncia, também não é suficiente para caracterizar a figura do dolo eventual. A desclassificação do crime de homicídio com dolo eventual (art. 121, caput, CP) para o delito de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, caput, CTB), portanto, é medida que se impõe. Em abono, o entendimento desta colenda Primeira Câmara Criminal: “PENAL E PROCESSO PENAL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - HOMICÍDIO SIMPLES, POR SEIS VEZES - PRONÚNCIA - 11 MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS COMPROVADAS - DOLO EVENTUAL - INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS HÁBEIS Á CARACTERIZÁ- LO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE HOMICÍDIO CULPOSO - PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA, RECONHECIDA DE OFÍCIO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DO RÉU, DECLARADA DE OFÍCIO.” (TJPR - 1ª C.Criminal - RSE - 1091516- 5 - Guarapuava - Rel.: Marcos S. Galliano Daros - Unânime - J. 24.10.2013) “PRONÚNCIA - HOMICÍDIO DOLOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR - ELEMENTOS INSUFICIENTES PARA CONCLUIR QUE O RÉU ASSUMIU O RISCO DO RESULTADO LESIVO - DOLO EVENTUAL NÃO CONFIGURADO - VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO OBJETIVO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Para a configuração do dolo eventual é imprescindível haver provas de ter o agente previsto e aceito como possível o resultado, não bastando a mera violação do dever de cuidado objetivo ou mesmo a confiança leviana de que poderia evita-lo.” (TJPR - 1ª C.Criminal - RSE - 1472398-3 - Prudentópolis - Rel.: Naor R. de Macedo Neto - Unânime - J. 05.05.2016) Destaque-se, por fim, que a pretensão de reconhecimento das atenuantes previstas no art. 65, inc. III, alíneas “b” e “d”, do Código Penal, bem como de aplicação do instituto da detração penal (art. 42, CP) não comporta análise no presente recurso. Isso porque se trata de matéria afeta à dosimetria da pena, que deverá ser analisada pelo ilustre Magistrado a quo em caso de eventual prolação de sentença condenatória. À face do exposto, define-se o voto pelo provimento do presente recurso interposto pelo réu MATHEUS ZAINEDIN, a fim de desclassificar o crime de homicídio com dolo eventual (art. 121, caput, CP) para o delito de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, caput, CTB), devendo os autos serem remetidos ao Juízo de Primeiro Grau, a quem compete a prolação de eventual sentença condenatória. DISPOSITIVO ACORDAM os integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso, para desclassificar o crime de homicídio com dolo eventual para o delito de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, devendo os autos serem remetidos ao Juízo de Primeiro Grau, a quem compete a prolação de eventual sentença condenatória. 12 Participaram do julgamento, votando com o relator, os eminentes Desembargadores Macedo Pacheco e Antonio Loyola Vieira. Curitiba 26 de abril de 2018 MIGUEL KFOURI NETO Presidente e Relator
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