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Acórdão
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PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO PARANÁ 4ª CÂMARA CÍVEL - PROJUDI RUA MAUÁ, 920 - ALTO DA GLORIA - Curitiba/PR - CEP: 80.030-901 APELAÇÃO CÍVEL N.º 0000621-34.2015.8.16.0039, DA COMARCA DE ANDIRÁ – VARA DA FAZENDA PÚBLICA APELANTE: MUNICÍPIO DE ANDIRÁ APELADOS: AURI ESTEVAM E OUTROS RELATOR: DES. ABRAHAM LINCOLN CALIXTO APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BEM PÚBLICO DOADO POR MEIO DE LEI MUNICIPAL INCONSTITUCIONAL. SENTENÇA QUE RECONHECEU A NULIDADE DA DOAÇÃO. VÍCIO QUE REPERCUTE NAS ALIENAÇÕES POSTERIORES, INDEPENDENTEMENTE DA BOA-FÉ DOS ADQUIRENTES. IMÓVEL QUE DEVE RETORNAR AO PATRIMÔNIO DO MUNICÍPIO DE ANDIRÁ. ATO INCONSTITUCIONAL QUE NÃO SE CONVALIDA PELO DECURSO DO TEMPO. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO. VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.º 0000621-34.2015.8.16.0039, da Comarca de Andirá – Vara da Fazenda Pública, em que é apelante MUNICÍPIO DE ANDIRÁ e apelados AURI ESTEVAM e OUTROS. I. RELATÓRIO 1. Trata-se de recurso de apelação cível interposto por MUNICÍPIO DE ANDIRÁ contra a respeitável sentença de mov. 117.1 que, em sede de Ação Civil Pública ajuizada em face de AURI ESTEVAM e OUTROS, julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na petição inicial “(...) para reconhecer incidentalmente a inconstitucionalidade da lei municipal nº. 1.512/2004, declarar a nulidade da doação do imóvel registrados junto ao CRI desta comarca sob nº 13.733, mas tornando-o tal doação sem efeito aos adquirentes posteriores”. Diante da sucumbência recíproca, impôs a cada uma das partes o pagamento de metade das custas processuais e dos honorários advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa. 2. Opostos embargos de declaração pela parte ré (Ref. mov. 126.1), foram eles acolhidos, a fim de cancelar a ordem de indisponibilidade de bens determinada no Ref. mov. 9.1. 3. Em suas razões recursais (Ref. mov. 153.1), o Município-apelante requer a reforma do , narrando que propôs a presente demanda com o escopo de reaver imóvel públicodecisum (matrícula n.º 13.733), doado a particular sem prévia licitação, através de lei pessoal e inconstitucional. Explana que a digna Juíza da causa, embora tenha declarado de forma incidental a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 1.512/04, registrou que o vício na doação não se estende aos terceiros de boa-fé. Sustenta que “(...) pelo raciocínio traduzido na sentença, o imóvel público sofreu alienação pelo fato de que os terceiros estariam de boa fé. Equivale dizer que bem público é prescritível”. Acrescenta que tal conclusão vai de encontro ao que preceitua o artigo 191, parágrafo único da Constituição Federal. Destaca que a Carta Magna não estabelece a boa-fé de terceiro como causa para aquisição de bem público. Nesse contexto, defende que a declaração de nulidade da alienação do imóvel importa retorno à condição de bem público, o que é oponível , mesmo após o transcurso deerga omnes muito tempo. Diz, ainda, que “(...) o primeiro comprador (Auri Estevam) é empresário do ramo imobiliário e o segundo adquirente (Edson) é advogado, portanto os dois tinham plenas condições intelectuais e materiais para saber da irregularidade na aquisição do imóvel”. Noutro ponto, requer a reforma da sentença, na parte em que lhe impôs o pagamento de parte dos ônus de sucumbência, invocando os artigos 17, 18 e 19 da Lei n.º 7.347/85. Por fim, pugna pelo conhecimento e provimento do recurso, nos aspectos abordados. 4. Os apelados apresentaram contrarrazões, defendendo a manutenção da decisão objurgada (Ref. mov. 162.1). 5. Regularmente processados, vieram os autos a esta Corte para julgamento. 6. Em parecer exarado no Ref. mov. 8.1-TJ, a douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso. É o relatório. II. VOTO E SUA FUNDAMENTAÇÃO 1. Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso de apelação cível interposto. 2. Em análise ao caderno processual, tem-se que o recurso merece o almejado provimento, a fim de se reconhecer que o imóvel em litígio deve retornar ao patrimônio do Município-apelante. 3. Cinge-se a controvérsia recursal em verificar se o imóvel doado pelo ente municipal, por meio da Lei n.º 1.512/04, deve retornar ao patrimônio público ou permanecer como propriedade do adquirente, com esteio na boa-fé. Antes de ingressar no tema, é preciso esclarecer que a sentença já reconheceu a nulidade da doação, bem como, a inconstitucionalidade incidental da mencionada norma, nos seguintes termos, :verbis “[...] Primeiramente, cabe ressaltar que o Supremo Tribunal Federal entende cabível o ajuizamento de ação civil pública, discutindo incidentalmente a constitucionalidade de lei, quando não demonstrado que o objeto da demanda é tão somente a inconstitucionalidade desta. [...] O controle difuso dos atos normativos municipais poderá ser exercido de forma ampla, tendo como objeto de controle uma lei ou um ato normativo municipal e parâmetro ou paradigma de constitucionalidade tanto a Constituição Federal, quanto a Constituição Estadual do respectivo Estado-membro onde está situado o Município e até mesmo a própria Lei Orgânica do Município, que será exercida por qualquer juiz ou tribunal. Para tanto, reputo necessário que se discorra acerca da questão da inconstitucionalidade, lato sensu, e mais especificamente, dos tipos: material e formal. É, de início, necessário e salutar rememorar que a questão de (in)constitucionalidade deriva de uma análise relacional entre o que afirma a Constituição e a ação, o agir, o comportamento que se diz não obedecer, ou não lhe estar conforme, em âmbito normativo. Reconhecida essa incompatibilidade, essa desconformidade entre a ação (lato sensu) e a norma jurídico-constitucional (Constituição), o ato deverá ser anulado ou reconhecido como nulo, evitando que produza efeitos e exista normativamente em contrariedade à norma base do sistema jurídico. Uma vez que a Lei Municipal nº 1.512 de 30 de dezembro de 2004 vinculou a doação do bem imóvel público à parte requerida sem os trâmites legais dispostos no procedimento administrativo, sendo que até o presente momento nada ficou comprovado quanto aos benefícios decorrentes da doação ou cumprimento do interesse público derivado dos incentivos fiscais os quais ocasionariam uma eventual dispensa dos trâmites legais, é de se reconhecer sua inconstitucionalidade. [...]”. A insurgência recursal se volta exclusivamente em relação à segunda parte do veredito singular, que concluiu que a propriedade do bem deve ser preservada em favor do adquirente de boa-fé. Feito esse esclarecimento, passo a apreciar a matéria devolvida à esta Corte. Consoante se denota dos autos, no ano de 2004 o imóvel público, matriculado sob n.º 13.733, foi doado para RENATO CEZAR MARTINS – ME, por meio da Lei Municipal n.º 1.512/04 (Ref. movs. 1.2 e 1.3). Posteriormente, foi ajuizada execução fiscal pelo Município de Andirá em face da referida empresa (Ref. movs. 1.6 e 1.7). Durante o curso de tal demanda, a executada alienou o imóvel em apreço para AURI ESTEVAM EIRELE – ME, a qual, por sua vez, o vendeu para EDSON RODRIGUES BARBOSA (todos réus nesta ação civil pública) (Ref. mov. 1.3). Diante desse cenário fático, surgiu no presente processo – com o escopo de se acrescentar elementos ao pedido de retorno do bem ao patrimônio público – discussão acerca da presença de fraude à execução e da boa-fé dos adquirentes. Aliás, foi amparada na boa-fé do atual proprietário e no princípio da segurança jurídica, que a douta Magistrada fundamentou sua decisão de impedir que a nulidade da doaçãoa quo produzisse efeitos em relação aos compradores. Ocorre que, independentemente desses fatores, não há como manter a sentença nesta parte. É que com a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 1.512/04 – que sequer foi objeto de recurso – a cadeia de atos jurídicos restou nula desde a origem. Vale dizer, sendo nula a doação, o bem não deixou o patrimônio público e, em consequência, as alienações posteriores não poderiam sequer ter ocorrido. A propósito, oportuna a lição de ,FLÁVIO MARTINS ALVES NUNES JÚNIOR :verbis “[...] Outrossim, para as partes atingidas no processo pelo controle difuso, os efeitos são ex tunc, retroativos. Como vimos no início do capítulo, a lei inconstitucional é nula, írrita, inválida desde o seu nascimento. Assim, a declaração de inconstitucionalidade é um “ato declaratório” e não “constitutivo”, declara a invalidade originária da lei ou do ato normativo. Por exemplo, se a parte questiona a validade de contrato baseado numa lei considerada inconstitucional, declarada a inconstitucionalidade dessa norma, incidentalmente, os efeitos dessa decisão serão retroativos (desconstituindo-se o contrato e os efeitos daí decorrentes). Da mesma maneira, se uma pessoa incidentalmente questiona a validade dos tributos que lhe foram impostos, declarada incidentalmente a inconstitucionalidade da lei, no caso concreto, os efeitos deverão ser retroativos, e os tributos deverão ser devolvidos. [...]”. ( , Capítulo 12 – Controle dein CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL constitucionalidade, 12.10 – Controle difuso de constitucionalidade, Versão ).eBook Assim, ainda que os adquirentes tenham agido de boa-fé, não se pode preservar o atual registro de propriedade do imóvel. Acrescente-se, outrossim, que desconsiderar toda a sistemática jurídica que trata das consequências da inconstitucionalidade acima referidas gera maior insegurança do que manter, sem substrato legal, o bem sob propriedade do particular. Além disso, soma-se ao caso o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, pois o retorno do bem ao patrimônio da municipalidade é potencialmente mais benéfico à sociedade. Aos compradores que entendam terem sido prejudicados, cabe a busca, por meio de ação própria, de compensação pelas perdas e danos. A fim de corroborar os fundamentos esposados, válido colacionar o seguinte precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, :verbis “Cancelamento de registro público – Municipalidade de Mirassol - Lei Municipal 1.964/95, a qual autorizou a doação de imóvel público à empresa privada – Superveniência da declaração de inconstitucionalidade da referida lei pelo C. Órgão Especial deste E. Tribunal – Efeitos da declaração que retroagem à edição do ato normativo, nulificando-o desde a origem – Anulação da doação celebrada com base em lei declarada inconstitucional – Cancelamento de todos os registros posteriores efetuados na matrícula do imóvel – Restituição da propriedade do bem à - Sentença de improcedênciaMunicipalidade reformada – Apelo provido, com observação”. (Apelação Cível n.º 0004523-68.2011.8.26.0358, 12ª. Câmara de Direito Público, Relator Desembargador , DJ 16/12/18, g.n)SOUZA MEIRELLES Por fim, consigne-se que o fato de a ação ter sido proposta mais de 10 (dez) anos após a vigência da Lei Municipal n.º 1.512/04 não tem o condão de alterar a conclusão adotada, uma vez que atos inconstitucionais não se convalidam pelo decurso do tempo. Nesse sentido, :verbis “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. OFENSA AO ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E À SÚMULA VINCULANTE 10/STF. ALEGAÇÃO GENÉRICA. SÚMULA 284/STF. JULGAMENTO MONOCRÁTICO. POSSIBILIDADE. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. ESTABILIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA VINCULANTE 43/STF. CONVALIDAÇÃO, PELO TEMPO, DE SITUAÇÃO MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Os recursos interpostos com fulcro no CPC/1973 sujeitam-se aos requisitos de admissibilidade nele previstos, conforme diretriz contida no Enunciado Administrativo 2 do Plenário do STJ. 2. A alegação genérica de afronta ao art. 97 da Constituição Federal e à Súmula Vinculante 10/STF caracteriza deficiência de fundamentação, uma vez que não permite a exata compreensão da controvérsia e impede o conhecimento do agravo interno, neste ponto. Aplica-se à hipótese a Súmula 284/STF. 3. É firme o entendimento do STJ no sentido de que "as contratações temporárias, celebradas pela Administração Pública, na vigência da Constituição da República, ostentam caráter precário, submetendo-se à regra insculpida no art. 37, IX, da CR/88, conforme jurisprudência pacífica desta Corte" (AgInt no RMS 43.658/PA, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 22/3/2017). 4. Na "forma da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, situações flagrantemente inconstitucionais - como o provimento de cargo público efetivo, sem a devida submissão a concurso público -, não podem e não devem ser superadas pelo eventual decurso do tempo (STF, MS 28.279/DF, Rel. Ministra ELLEN GRACIE, TRIBUNAL PLENO, DJe de 28/04/2010; STJ, REsp 1.293.378/RN, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 05/03/2013)" (AgRg no AgRg no REsp 1.366.545/MT, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 02/10/2015). 5. Agravo interno parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido”. (AgInt no RMS n.º 49.924/PA, Primeira Turma, Relator BENEDITO , DJe 13/10/17, g.n).GONÇALVES Daí porque é preciso reformar a sentença no aspecto abordado, a fim de reconhecer que o imóvel discutido nos autos deve retornar ao patrimônio do MUNICÍPIO DE ANDIRÁ. Em consequência, fica a parte ré responsável pelo pagamento da totalidade das custas processuais e dos honorários advocatícios, estes mantidos no importe fixado pela sentença. Deixo de arbitrar honorários recursais, ante o provimento do recurso (STJ, EDcl no AgInt no REsp 1.573.573/RJ). 4. Forte em tais fundamentos, voto no sentido de dar provimento ao recurso, a fim de reconhecer que o imóvel em litígio deve retornar ao patrimônio do Município-apelante, redistribuindo, em consequência, os ônus sucumbenciais, na forma da fundamentação. III. DISPOSITIVO ACORDAM os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade, em dar provimento ao recurso, nos termos do voto e sua fundamentação. O julgamento foi presidido pelo (a) Desembargadora Regina Helena Afonso de Oliveira Portes, sem voto, e dele participaram Desembargador Abraham Lincoln Merheb Calixto (relator), Desembargadora Maria Aparecida Blanco de Lima e Desembargador Luiz Taro Oyama. Curitiba, 17 de abril de 2020 Desembargador Abraham Lincoln Merheb Calixto Juiz (a) relator (a)
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