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Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
Relatório.Trata-se de agravo de instrumento interposto pela autora Magali Gonçalves Pereira contra a decisão proferida pelo juízo da Vara Cível da Comarca de Arapoti que, em ação declaratória de nulidade de negócio e restituição de valores, autos nº 0000033-30.2020.8.16.0046, indeferiu o requerimento liminar de bloqueio de bitcoins de titularidade da ré Gensa Serviços Digitais S/A (mov. 35.1).A agravante afirma que foi vítima de fraude financeira praticada pelas rés e que a demanda se destina à reparação do prejuízo que sofreu.Relata que inicialmente requereu o bloqueio de R$ 26.590,00, mas que a ordem emitida pelo sistema Bacenjud só permitiu a constrição sobre R$ 17.144,35.Sustenta que a diferença deve ser suprida com o bloqueio sobre frações de bitcoins pertencentes à ré, a partir de ordem encaminhada às exchanges que detêm a custódia dos ativos virtuais e subsequente conversão em dinheiro.Argumenta que a fraude praticada pelas rés prejudicou inúmeros investidores e que os tribunais têm admitido o bloqueio de criptomoedas.O pedido de tutela antecipada foi deferido, determinando-se o bloqueio e a liquidação de frações de bitcoin pertencentes à Gensa Serviços Digitais S.A., no valor de R$ 9.445,65, mediante expedição de ofício às exchanges responsáveis pela custódia dos ativos e posterior depósito em conta bancária à disposição do juízo (mov. 6.1).As intimações para contrarrazões restaram infrutíferas (mov. 18.1 a 21.1).É o relatório.
Voto e sua fundamentação.As empresas requeridas foram citadas no juízo de origem, mas não apresentaram contestação (mov. 39 a 43, autos principal).Por força da revelia, o prazo para contrarrazões teve início a partir da publicação da decisão que concedeu a liminar recursal (artigo 346, do CPC), já tendo transcorrido.Presentes os pressupostos processuais de admissibilidade recursal, intrínsecos (cabimento, legitimidade, interesse, ausência de fato extintivo do direito de recorrer) e extrínsecos (regularidade formal, tempestividade, preparo e inexistência de fatos impeditivos do direito de recorrer), conheço do recurso.Do bloqueio de criptomoedas. A tutela de urgência cautelar exige a demonstração da probabilidade do direito e o risco ao resultado útil do processo (art. 300, CPC)A autora propôs ação de nulidade de negócio jurídico c/c restituição de valores em que afirma que em setembro de 2019 celebrou contrato com a ré Gensa Serviços Digitais, pelo qual repassou a esta última a quantia de R$ 26.590,00.Em contrapartida, a contratada assumiu a obrigação de investir o dinheiro em bitcoins e mais tarde devolvê-lo em 36 parcelas mensais, com acréscimo dos rendimentos derivados da oscilação no valor do ativo.Ocorre que em outubro de 2019 a Gensa teria deixado de efetuar o pagamento das parcelas, impedido o saque das quantias investidas e obrigado os clientes a converterem seus investimentos em outra criptomoeda criada pela própria corretora.A narrativa da autora é corroborada pelo comprovante de depósito da quantia mencionada em favor da Gensa e pelo recibo emitido pela corretora (mov. 1.10-11).A Deliberação nº 813/2019 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) determinou que a Zero10 Club, pessoa jurídica mais tarde sucedida pela Gensa, deixasse de oferecer títulos e contratos de investimento coletivo a partir de março de 2019 (mov. 1.21).Em razão do descumprimento de tal deliberação, a CVM aplicou multa de R$ 300 mil à corretora, conforme indicam a ata da reunião ocorrida em 03/09/2019 e a manifestação técnica que a instruiu (disponível em: http://www.cvm.gov.br/decisoes/2019/20190903_R1.html>).Além dos fortes indícios de ilegalidade na contratação, as provas produzidas até o momento levam a crer que a Gensa enfrenta dificuldades de honrar os compromissos assumidos perante os seus clientes.Com a petição inicial, a autora juntou reportagem do jornal Folha de S. Paulo que noticia a dificuldade dos investidores de reaverem as quantias que haviam entregue à corretora (mov. 1.24).A própria Gensa reconheceu o “descompasso na realização bancária dos valores de saques solicitados pelos usuários”, sem oferecer alternativa que não sua conversão em outra criptomoeda (mov. 1.15). O juízo a quo indeferiu o requerimento de bloqueio por entender que as peculiaridades desse ativo inviabilizam a exata correspondência entre o crédito que a autora aparente ter e a fração de bitcoin sobre a qual recairá a constrição.O CPC não dispõe expressamente sobre o bloqueio de bitcoins e de outras criptomoedas, o que leva a concluir que a constrição deve ser admitida.De acordo com o Código de Processo Civil, a impenhorabilidade é exceção e se restringe aos casos previstos em lei: Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.O receio manifestado pelo juízo a quo, porém, não é destituído de fundamento. Há grande incerteza quanto ao regime aplicável às criptomoedas, especialmente porque a doutrina diverge quanto à sua natureza jurídica e até o momento o Congresso Nacional não lhes deu disciplina legal. Um dos poucos instrumentos normativos que deles tratam é a Instrução Normativa nº 1.888/2019, expedida pela Receita Federal.O art. 5º desse regulamento define criptoativo e exchange:Criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal;Exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos.Uma vez que os criptoativos têm valor conversível em moeda corrente e são transacionáveis, parece possível equipará-los aos “títulos e valores mobiliários com cotação no mercado” mencionados pelo artigo 835, inciso III, do CPC.Aliás, a competência da CVM para fiscalizar as corretoras de criptoativos se funda justamente na qualificação dos contratos de investimento coletivo que elas oferecem a seus clientes como valores mobiliários, nos termos do art. 2º, IX da Lei nº 6.385/1976.Por outro lado, devem ser consideradas as peculiaridades das criptomoedas, em especial a superlativa instabilidade do valor que os agentes econômicos lhe atribuem.Nesse sentido, destaque-se a observação do Prof. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (Breves considerações econômicas e jurídicas sobre a criptomoeda. Os bitcoins. Revista de direito empresarial. v. 14. mar./abr. 2016, p. 139-154):Dois dos maiores problemas dos bitcoins estão em sua extrema volatilidade e falta de regulação, de onde decorre o não preenchimento de uma das funções primordiais da moeda, precisamente a ser uma reserva de valor. E sua breve história tem apresentado ciclos de alta e baixa descontrolados.Ao contrário de outros ativos financeiros, as criptomoedas estão sujeitas ao risco de intensas desvalorizações em curtos espaços de tempo.Tal circunstância recomenda que as frações de criptoativos eventualmente bloqueados sejam previamente liquidados pela exchange que detém a sua custódia, em aplicação analógica do art. 852, I do CPC.Em seguida, a quantia em moeda corrente derivada da liquidação deve ser depositada em conta bancária à disposição do juízo, na qual deve permanecer até que sobrevenha decisão definitiva a respeito.Conclusão.Pelo exposto, voto por conhecer e dar provimento ao recurso para determinar o bloqueio e a liquidação de frações de bitcoin pertencentes à Gensa Serviços Digitais S.A., no valor de R$ 9.445,65, mediante expedição de ofício às exchanges responsáveis pela custódia dos ativos e posterior depósito em conta bancária à disposição do juízo.
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