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Acórdão
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Trata-se de recurso de apelação interposto em face da sentença prolatada nos autos de ‘ação de registro civil de nascimento de nascitura com dupla maternidade’ nº 0001178-13.2020.8.16.0179, que indeferiu a petição inicial e extinguiu o feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, inciso I e 330, inciso III, do Código de Processo Civil, face à ausência de interesse processual, pois não ocorreu sequer a tentativa de registro da criança. Sustentam as apelantes, em suma (mov. 14.1): que se socorreram do Judiciário em busca de ver reconhecido seu direito constitucional ao planejamento familiar, conforme artigo 226, § 7º, da Constituição Federal; que já foi reconhecido pelo STF ser a união homoafetiva entidade familiar, no julgamento da ADPF n. 132/RJ e ADI n. 4.277/DF, estendendo-lhe os mesmos direitos e deveres; que postulam em juízo o reconhecimento da dupla maternidade oriunda do método de inseminação caseira, meio acessível àqueles que não dispõem de condições financeiras para realização da inseminação assistida em clínica de reprodução humana; que no ordenamento jurídico pátrio não há regulamentação para reconhecimento automático da dupla maternidade decorrente do método de inseminação artificial caseira, cujo material genético masculino fora obtido por doação e não comprado em Clínica de reprodução assistida; que a exigência de apresentação de declaração assinada pelo Diretor da clínica de reprodução assistida para efetivar o registro civil de nascimento de duas mães, conforme exigido no item II do artigo 17 do Provimento n. 63 de 2017 do CNJ, afronta o princípio da igualdade e viola o direito das apelantes ao planejamento familiar; que a necessidade de demandar em juízo para ver reconhecido o método de concepção por inseminação caseira e a declaração da dupla maternidade, determinando que seja anotada no registro de nascimento da nascituro, satisfaz o binômio necessidade e adequação, conforme artigo 17 do CPC, não havendo falar em falta de interesse ou legitimidade processual; que a filiação é provada pela certidão do termo de nascimento, nos termos do artigo 1603 do Código Civil, assim como é resguardado aos pais o direito de reconhecerem seus filhos, conjunta ou separadamente, conforme artigo 1607 do mesmo Códex; que ao negar a existência de interesse processual das apelantes, foram feridos os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana; que deve ser reformada a sentença para deferir-se a petição inicial, pois presentes as condições da ação; que caso não entenda pelo julgamento imediato da demanda originária deste recurso, seja determinada a baixa dos autos para que uma nova decisão seja proferida apreciando o mérito da ação.A Procuradoria-Geral de Justiça se manifestou pelo reconhecimento do interesse processual e pela reforma da sentença, com o regular prosseguimento da demanda e admissão dos documentos acostados pelas apelantes após a sua prolação, à luz do art. 435, do Código de Processo Civil (mov. 15.1).É, em resumo, o relatório.
Presentes os requisitos de admissibilidade recursal, conheço do recurso interposto.As apelantes ajuizaram ‘ação de registro civil de nascimento de nascituro com dupla maternidade’, cuja pretensão é ‘declarar a dupla maternidade e determinar seu registro na certidão de nascimento da nascituro, afastando a exigência da apresentação de declaração do Diretor Técnico da clínica de reprodução assistida para lavratura do registro de nascimento com o nome das duas mães’. Narraram as apelantes que estabeleceram união estável desde 2017, tinham o desejo de constituir família, e optaram pelo método da inseminação artificial caseira, ante o alto custo e a impossibilidade financeira de realizar o procedimento em clínica. Assim, promoveram a inseminação de Bianca, que à época do ajuizamento da ação estava grávida. Pleiteando o registro da dupla materinidade, defendem que a Resolução 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça não regulamenta a dupla maternidade oriunda de inseminação caseira, e que exigir a declaração da clínica de reprodução assistida para realizar o registro civil com as duas mães viola o princípio da igualdade.O juízo a quo indeferiu a petição inicial e extinguiu o feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, inciso I e 330, inciso III, do Código de Processo Civil, face à ausência de interesse processual, pois não ocorreu sequer a tentativa de registro da criança. Ponderou o magistrado, além do fato de a ação ter sido ajuizada antes mesmo do nascimento e da negativa registral, sobre a sensibilidade da matéria, a necessidade de regulação do direito para os procedimentos mais complexos que a concepção comum e a questão da filiação (mov. 6.1).No entanto, após a prolação da sentença, as apelantes comunicaram o nascimento com vida de sua filha, e juntaram as declarações de nascido vivo (mov. 20.2) e de negativa registral para inclusão do nome da segunda mãe, sustentada no fato de que o procedimento de inseminação caseira não é abrangido no Provimento n. 73 do CNJ, que regulamenta as questões relativas à reprodução assistida (mov. 20.3).O Provimento n. 63.2017 do Conselho Nacional de Justiça ‘Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro “A” e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. O provimento estabelece:Art. 16. O assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida será inscrito no Livro A, independentemente de prévia autorização judicial e observada a legislação em vigor no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, munidos de documentação exigida por este provimento. § 1º Se os pais forem casados ou conviverem em união estável, poderá somente um deles comparecer ao ato de registro, desde que apresente a documentação referida no art. 17, III, deste provimento. § 2º No caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna. Art. 17. Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos: I – declaração de nascido vivo (DNV); II – declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários; III – certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal. § 1º Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação. § 2º Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida. § 3º O conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida. Note-se que, embora não haja definição expressa sobre o termo ‘reprodução assistida’, ao determinar a apresentação de ‘declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga’, há imposição de requisito insuperável na hipótese de autoinseminação, que inviabiliza o registro na via administrativa. Deste modo, à míngua de regulamentação sobre autoinseminação no provimento n. 63 do CNJ, resta configurado o interesse processual das apelantes, ante a necessidade de pronunciamento do judiciário, sob pena de omissão da prestação jurisdicional.Em que pese a manifestação do Ministério Público pela manutenção da sentença (mov. 21.1), não faria sentido determinar o arquivamento do feito, obrigando as apelantes, por consequência, a ajuizar nova ação instruída com os mesmos documentos que já foram juntados nos autos. É possível, diante do nascimento da filha e da negativa registral, determinar a emenda da petição inicial para aditamento do pedido, com o prosseguimento do feito.Precisamente ante a alteração da situação de fato e a falta de pronunciamento do juízo de origem sobre as alegações e documentos do evento 20 dos autos de origem, revela-se inviável a aplicação do disposto no art. 1.013, par. 3º, I, do CPC. Haveria insuperável supressão de instância que privaria as ora apelantes de recurso ordinário em caso de eventual indeferimento do pedido.Deste modo, em observância aos princípios da economia e celeridade processuais e, presente o interesse processual antes mesmo da negativa registral, o deferimento da petição inicial é medida que se impõe. O voto é, portanto, pelo conhecimento e provimento do recurso, para cassar a decisão que indeferiu a petição inicial e determinar a baixa dos autos para prosseguimento do feito.
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