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Acórdão
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RELATÓRIO 1. Agravo de instrumento n. 0031344-46.2021.8.16.0000 Trata-se de agravo de instrumento manejado contra a decisão proferida pela MM. Juíza de Direito Débora Demarchi de Melo ao mov. 31.2 dos autos n. 0007176-38.2021.8.16.0013, da ação de reintegração de posse movida pela Agravada contra um grupo de pessoas não identificadas de início; por ela, determinou Sua Excelência a reintegração da recorrida na posse do imóvel localizado à rua Eleonora Brasil Pompeo, 410, bairro Tatuquara, objeto da matrícula 38.386 do 8º RI, com área de 48.400m2, cuja perda, segundo entendeu, decorreu de esbulho recém cometido.Alega o Agravante, em síntese: a) os requisitos para a concessão da tutela provisória não foram comprovados, sendo necessária a designação de audiência de justificação, pois, nas fotos e vídeos colacionados aos autos, é possível constatar que a área não estava cercada ou delimitada, de sorte que não é possível precisar o que é via pública, área destinada ao passeio e o próprio objeto destes autos, tendo sido mencionado no relatório ambiental produzido a pedido da Agravada, ademais, a presença de resíduos sólidos depositados inadequadamente, o que indica que o imóvel estava abandonado e sem cumprir com sua função social; b) o Juízo a quo não adotou providências preliminares indispensáveis ao cumprimento da ordem de reintegração de posse (prévio cadastramento e apuração do perfil social das famílias, além elaboração de plano específico de execução que respeite os direitos humanos e o princípio da proporcionalidade); c) é necessário que se aguarde o término do período de pandemia do COVID-19, conforme têm decidido este Tribunal Estadual e o Supremo Tribunal Federal quando se trata de reintegrações de posse coletivas, dado o risco de aumento dos casos de infecções e mortes pelo vírus covid-19; d) a execução da medida deferida em 1ª instância é apta a provocar dano irreparável, pois há mais de 80 (oitenta) pessoas instaladas no local que não têm alternativa habitacional adequada, havendo de ser buscada uma solução pacífica para a questão.Concluindo, pugna pela reforma da decisão recorrida e pela suspensão liminar de seus efeitos.Ao mov. 9.1, no exercício do poder geral de cautela, suspendi parcialmente a vigência da decisão agravada, especificamente no que concerne à determinação de reintegração da Agravada na posse do imóvel, mantendo a proibição à realização de novas construções, sob pena de sujeição do infrator ao pagamento da multa fixada pelo Juízo a quo. Ainda, solicitei o envio de relatório da Comissão de Conflitos Fundiários, assinalando que, após o seu recebimento, deliberaria sobre o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal.O relatório foi juntado ao mov. 18, e, aos mov. 26 e 28, as partes apresentaram manifestação.Pela decisão de mov. 31.1, antecipei parcialmente a tutela recursal, para suspender parcialmente a vigência da decisão agravada.Foram apresentadas contrarrazões (mov. 39.1).Ao mov. 44.1, foi juntado o segundo relatório de visita realizado na ocupação, do qual foi dada ciência às partes.Após, a douta Procuradoria-Geral de Justiça se manifestou pelo provimento do recurso (mov. 46.1).Por fim, as partes se manifestaram sobre o relatório de mov. 44 (movs. 54.1 e 55.1). 2. Agravo de instrumento n. 0031347-98.2021.8.16.0000 Trata-se de agravo de instrumento manejado contra a decisão proferida pela MM. Juíza de Direito Débora Demarchi de Melo ao mov. 31.2 dos autos n. 0007176-38.2021.8.16.0013, da ação de reintegração de posse movida pela Agravada contra um grupo de pessoas não identificadas de início; por ela, determinou Sua Excelência a reintegração da recorrida na posse do imóvel localizado à rua Eleonora Brasil Pompeo, 410, bairro Tatuquara, objeto da matrícula 38.386 do 8º RI, com área de 48.400m2, cuja perda, segundo entendeu, decorreu de esbulho recém cometido.Aduzem os Agravantes, em resumo, que: a) são residentes da área objeto da ação possessória e se encontram em situação de extrema vulnerabilidade social; b) a comunidade “Vila União”, localizada na rua Eleonora Brasil Pompeo, nº 410, Tatuquara, Curitiba/PR, conformou-se no dia 15/05/2021, sobre área que se encontrava há anos desocupada, sem uso e em estado de degradação; c) a ocupação é composta por em torno de 80 famílias em estado de emergência social, em sua maioria por não poder mais arcar com valores de aluguel ou já estarem em situação de rua, contando com crianças e idosos; d) a propriedade estava abandonada e não vem cumprindo sua função social; e) a decisão agravada desconsiderou a situação de vulnerabilidade socioeconômica da comunidade; f) tratando-se de ação possessória em que figura no polo passivo grande número de pessoas em situação de hipossuficiência econômica, é imprescindível a intimação da Defensoria Pública, nos termos do artigo 554, §1º, do CPC; g) caso não se entenda pela cassação da decisão agravada, é necessário promover a solução adequada para o presente conflito; h) a cominação de multa e de incursão em crime de desobediência é completamente desarrazoada; i) a situação de calamidade pública decorrente da Pandemia da Covid-19 é apta a obstar o cumprimento de qualquer ordem de remoção, devendo ser assegurado o direito de moradia; j) estão presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, inexistindo, ademais, periculum in mora reverso, pois a espera por uma solução adequando do conflito posto não gerará nenhum prejuízo à Agravada, notadamente porque o imóvel estava abandonado há anos.Ao mov. 16.1, reportei-me à decisão proferida nos autos do AI 0031344-46.2021.8.16.0000, por meio da qual suspendi parcialmente os efeitos da decisão agravada. O relatório da Comissão de Conflitos Fundiários foi juntado ao mov. 28.Ao mov. 45.1 indeferi o pedido de reconsideração formulado pelos Agravantes.Após, a Agravada e a Defensoria Pública apresentaram manifestação (mov. 56.1 e 58.1).Na decisão de mov. 67.1, houve a determinação de expedição de ofício ao Juízo a quo, por mensageiro, para que dê cumprimento à liminar na parte mantida por este Tribunal.Na sequência, antecipei parcialmente a tutela recursal, para suspender parcialmente a vigência da decisão agravada (mov. 76.1).Foram apresentadas contrarrazões (mov. 93.1).Ao mov. 95.3, foi juntado o segundo relatório de visita realizado na ocupação.Após, a douta Procuradoria-Geral de Justiça se manifestou pelo provimento parcial do recurso (mov. 97.1).Por fim, as partes se manifestaram sobre o relatório de mov. 95 (movs. 110.1, 111.1 e 112.1).É o relatório.
VOTO Conheço dos recursos, que são tempestivos, tem amparo no artigo 1.015, I do CPC e estavam dispensados do regular preparo.Entendo que os fundamentos que nortearam o deferimento parcial do pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal são suficientes à demonstração de que o recurso merece provimento em parte, razão pela qual, por brevidade e para evitar tautologia, peço licença para reitera-los, promovendo os ajustes necessários. Discute-se nestes recursos o acerto da decisão proferida em favor da Agravada, determinante de sua reintegração na posse do imóvel ocupado localizado à rua Eleonora Brasil Pompeo, 410, bairro Tatuquara, objeto da matrícula 38.386 do 8º RI.O presente recurso deriva de uma ação de reintegração de posse de força nova, para a qual está previsto rito especial, cuja principal característica é a de permitir que, ao autor, seja concedida de plano a tutela possessória, contanto que demonstre, independente de demonstração de urgência no recebimento dela (CPC, artigo 561, combinado com os artigos 562 e 558): i) sua posse; ii) que a perdeu em razão de esbulho cometido pelo réu; iii) que o esbulho ocorreu dentro de ano e dia, contado retroativamente da data de ajuizamento da ação. Além dos referidos requisitos legais, entende a doutrina e a jurisprudência que devem ser analisadas as implicações concretas que a concessão da ordem de reintegração de posse poderá causar, levando em conta a função social da posse e da propriedade, bem como o direito à moradia. Neste sentido: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ART. 927 DO CPC/73. 1. "O cumprimento da função social da posse deve ser cotejado junto a outros critérios e elementos legais, a teor dos artigos 927, do Código de Processo Civil e 1.201, parágrafo único, do Código Civil" (REsp 1148631/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2013, DJe 04/04/2014) 2. O "art. 927 do CPC/1973, reproduzido no art. 561 do novo diploma, previa competir ao autor da ação possessória de reintegração a comprovação dos seguintes requisitos: a posse; a turbação ou esbulho pela parte ré; a data da turbação ou do esbulho e a perda da posse", todavia, "ainda que verificados os requisitos dispostos no item antecedente, o julgador, diante do caso concreto, não poderá se furtar da análise de todas as implicações a que estará sujeita a realidade, na subsunção insensível da norma. É que a evolução do direito não permite mais conceber a proteção do direito à propriedade e posse no interesse exclusivo do particular, uma vez que os princípios da dignidade humana e da função social esperam proteção mais efetiva (REsp 1302736/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 23/05/2016) 3. O tribunal de origem deixou de prestar jurisdição completa para o deslinde da presente causa ao não apreciar a "qualidade da posse", quanto ao cumprimento da função social da propriedade esbulhada, sendo imperioso o retorno dos autos à origem para prosseguir na avaliação da prova no caso concreto.4. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.(AgInt no REsp 1636012/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/08/2019, DJe 26/08/2019) No caso, colhe-se do relatório da Comissão de Conflitos Fundiários que a ocupação da área objeto do litígio iniciou-se em meados de janeiro deste ano, motivada por situações de desemprego, impossibilidade de pagamento de aluguel, etc. Consta do relatório que há cerca de 270 famílias morando no local, entre as quais 220 crianças, 2 cadeirantes, 3 crianças com autismo e 1 com paralisia cerebral, 1 pessoa com obesidade mórbida e diversos idosos. De acordo com o segundo relatório produzido pela mesma Comissão, a situação se estabilizou, ou seja, não tem havido o ingresso de mais pessoas na área, sobre a qual, além disso, foi minimamente melhorada a infraestrutura da qual se valem os ocupantes para ali viver, mediante, por exemplo, instalação de uma cozinha comunitária e – de modo ilícito – realização de ligações clandestinas à rede pública de distribuição de energia.Tais informações, aliadas aos documentos constantes da petição inicial dos autos de origem, demonstram, a priori, a posse exercida pela Agravada, conforme matrícula de mov. 1.6, bem como a existência de esbulho há menos de ano e dia. A despeito disso, a concessão da medida liminar, na extensão que lhe deu o d. Juízo de 1º Grau, não se mostrou adequada no caso concreto.Causas como a presente são deveras complexas, exigindo que se equacione o direito do proprietário das terras – mesmo daquele que tinha a posse até então e porventura cumpria com a função social da propriedade – e a necessidade de, tanto quanto possível, acomodar dignamente as famílias que, em situação de vulnerabilidade, não tenham onde se estabelecer para ter efetivado o direito constitucional de moradia (mesmo que precário, mediante locação de um imóvel), obrigando-se a infringir a lei e esbulhar imóvel pertencente a outrem.Este Tribunal tem consciência de sua responsabilidade, resumida pela promessa feita por cada magistrado, no ato de investidura no cargo, quanto ao cumprimento da Constituição e das leis. Todavia, no exercício desse poder/dever, é preciso agir com sensatez, ponderação e equilíbrio, a fim de que, a pretexto de assegurar o direito de um cidadão, não seja criado ou agravado um problema social. É claro que a apresentação de solução para o grave déficit habitacional é obrigação do Estado, que não pode ser repassada ao particular, notadamente àquele que cumpra com a função social da propriedade. Todavia, há que ser considerado que de nada adianta expulsar um grande grupo de invasores de um local se alguma alternativa não lhes for oferecida; o problema só será transferido para outra localidade.Na espécie, analisando os documentos de mov. 1.8 a 1.16 dos autos de origem, verifica-se que, conquanto a Agravada seja proprietária do imóvel desde 1998, deixou de cercar e delimitar a área, sendo o local utilizado como depósito irregular de resíduos sólidos; à área, não dava destinação alguma, havendo apenas a referência à realização de estudos com vistas à implementação de um futuro projeto de edificação.Por sua vez, segundo restou apurado no relatório da Comissão de Conflitos Fundiários, a comunidade do entorno parece aprovar a ocupação da área, a qual estava com aspecto de abandonada há bastante tempo e sem qualquer tipo de utilização, sendo utilizada para descarte de resíduos sólidos e animais mortos. Ademais, assentou-se que as pessoas que se estabeleceram na ocupação passam longe do perfil de moradores de rua típicos: são famílias estruturadas, que buscam um local para se fixar em tempos de crise econômica.Com efeito, tratando-se, a princípio, de área que não estava cumprindo a sua função social (inobstante seja possível reconhecer que a Agravada, até mesmo pela falta de oposição de terceiros, tinha a qualidade de possuidora, por ser respeitada como dona), mostrou-se precipitada a determinação de retirada das pessoas que se encontram no imóvel. O cumprimento da ordem judicial de reintegração na posse, com a satisfação do interesse da Agravada, será à custa de graves danos à esfera privada de muitas pessoas, devendo-se prestigiar, ao menos neste momento, a função social da propriedade e o direito à moradia.É importante registrar, outrossim, que o Supremo Tribunal Federal, em decisão de Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, concedeu parcialmente medida cautelar na ADPF n. 828/DF, determinando que, com relação às ocupações ocorridas após o marco temporal de 20 de março de 2020, que sirvam de moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada. E, neste caso, a despeito de, pelo Juízo a quo, terem sido acionadas as autoridades públicas para a colaboração no encontro de uma solução para o problema da falta de moradia dos ocupantes, nenhuma medida concreta, tanto quanto se sabe, foi adotada, razão pela qual se mostra prematuro desaloja-los do imóvel.Assim, ainda que houvesse por parte da Agravada e que esta tenha sido dela esbulhada, a ordem de reintegração de posse não poderia ser cumprida antes da adequada realocação das pessoas por parte do Poder Público, consoante decisão da Suprema Corte.Posto isto, voto no sentido de conhecer e dar parcial provimento aos recursos, para revogar parcialmente a decisão agravada, especificamente no que concerne à determinação de reintegração da Agravada na posse do imóvel (da qual é corolário a retirada do local daqueles que lá já estão instalados), mantendo a proibição de ingresso de novos ocupantes e de edificação de novas acessões, visando não agravar a situação, sabido que, quanto maior o número de pessoas que se estabelecem numa área conflituosa, maior a complexidade da operação para desalojá-las e, eventualmente, reassenta-las. Admito, por outro lado, que, em relação às acessões já realizadas, seja possibilitada a introdução de benfeitorias necessárias e úteis, consistentes em instalação de energia elétrica, água, esgoto, etc., para preservação da dignidade mínima dos moradores, às suas expensas e com a ciência de que, em princípio, não terão direito a indenização ou retenção, pois sua posse não pode ser reconhecida como de boa fé.
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