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Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
I – Trata-se de alvará judicial para aquisição da substância fosfoetanolamina sintética com pedido de tutela de urgência ajuizada por Luana Cristina Justi em face de Baruk Laboratórios EIRELI, na qual foi proferida sentença que extinguiu o feito, sem resolução de mérito, com fulcro no artigo 485, inciso IV, do Código de Processo Civil, em razão de que somente a ANVISA, órgão federal responsável pelo controle sanitário, pode autorizar a comercialização de medicamentos e, ao final, concedeu os benefícios da assistência judiciária gratuita (mov. 6.1-1º Grau).Inconformada com a r. sentença de primeiro grau a autora interpôs recurso de apelação (mov. 9.1-1º Grau) alegando, em síntese, que a decisão merece reforma, haja vista que proferida em descompasso com centenas de ações idênticas, onde a probabilidade do direito e o risco de dano (morte do requerente) restaram reconhecidos, bem como a possibilidade aquisição da fosfoetanolamina sintética mediante prestação pecuniária em valor judicialmente ajustado com a apelada. Que a presente lide trata de relação entre particulares, de modo que, inexistindo vedação, possível que a apelante opte pelo uso de medicamento experimental, e que o direito constitucional à saúde, à vida e a dignidade da pessoa humana, dada a supremacia constitucional, deve superar qualquer interpretação contrária, afastando-se qualquer e qualquer efeito vinculante a decisão da ADI 5501. Sustenta estarem presentes os requisitos para a concessão da antecipação da tutela. Que não há qualquer vedação legal ao uso de medicamento experimental ora em tela, e que não apresenta toxidade para o ser humano. Que a Resolução RDC nº 38/2013 regulamente o acesso a medicamentos sem registro na ANVISA antes que sejam concluídas pesquisas clínicas, especialmente no caso de uso compassivo. Assevera que a probabilidade do direito se funda no direito à vida e direito de escolha da autora. Que o perigo de dano ao resultado útil do processo decorre de que eventual demora acarrete o rápido desenvolvimento da patologia, apresentando risco de morte e que perfaz dano irreparável. Que a substância pleiteada já foi autorizada pela ANVISA como componente do medicamento CAELYX 20 mg, além de que o laboratório Quality Medical, com anuência da ANVISA, disponibiliza a venda direta ao consumidor de suplemento alimentar a base de fosfoetanolamina sintética. Que a presente medida se revela adequada para obter o consentimento do judiciário para o objeto pretendido na presente ação, através de Autorização Judicial através de expedição de Alvara Judicial com a autorização para o uso do medicamento, não se confundindo com o Alvara Judicial da Lei 6.858/1990. Pugnou pela antecipação dos efeitos da tutela recursa para o fim de autorizar ao Requerente a aquisição junto ao laboratório requerido, a substância fosfoetanolamina sintética, dentro dos padrões de pesquisa desenvolvida há mais de 20 anos, na quantidade de 1.080 (um mil e oitenta capsulas/dose) de fosfoetanolamina sintética 500mg por dose, ou de maneira excepcional a quantidade de 544,50 gramas do pó do mesmo medicamento, equivalente ao prazo de 12 (doze) meses, suficiente para garantir o seu tratamento, mediante, o custeio da fabricação através do pagamento do valor de R$ 3,00 (três reais) por dose, se fornecida em pó, ou no valor de R$ 3,50 (três reais e cinquenta centavos), se fornecida em capsula, a contar da ciência da decisão e ao final, pelo provimento do recurso.
É a breve exposição.
II – VOTO E SUA FUNDAMENTAÇÃO: Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso de apelação. A autora ajuizou a presente ação visando a concessão de alvará para fins de aquisição de fosfoetanolamina sintética junto ao laboratório requerido.Não obstante a autora ora apelante tenha instruído o feito com documentação dando conta de que foi diagnosticada com carcinoma mucinoso, com diagnóstico citopatológico positivo para malignidade (mov. 1.6-1º Grau), carece de razão ao pleitear a concessão de autorização para aquisição da substância denominada fosfoetanolamina sintética, uma vez que, no âmbito do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5501, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, e que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”, por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Vejamos: “SAÚDE – MEDICAMENTO – AUSÊNCIA DE REGISTRO – INCONSTITUCIONALIDADE. É inconstitucional ato normativo mediante o qual autorizado fornecimento de substância, sem registro no órgão competente, considerados o princípio da separação de poderes e o direito fundamental à saúde – artigos 2º e 196 da Constituição Federal.”(ADI 5501, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-283 DIVULG 30-11-2020 PUBLIC 01-12-2020). Do referido julgado, extrai-se a seguinte fundamentação do voto do relator: “A esperança que a sociedade deposita nos medicamentos, sobretudo aqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência. Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia dos fármacos utilizados. O direito à saúde não será plenamente concretizado se o Estado deixar de cumprir a obrigação de assegurar a qualidade de droga mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desengano, charlatanismo e efeito prejudicial.(...)Ao elaborar o ato impugnado, o Congresso Nacional, permitindo a distribuição de remédio sem controle prévio de viabilidade sanitária, omitiu-se no dever constitucional de tutelar a saúde da população. Impossível tomar essa constatação como intromissão indevida do Supremo na esfera de atribuição dos demais Poderes. Decorre dos elementos objetivos verificados neste processo, especialmente no tocante à ausência de registro da fosfoetanolamina sintética.A aprovação do produto no órgão do Ministério da Saúde é exigência para industrialização, comercialização e importação com fins comerciais, na forma do artigo 12 da Lei nº 6.360/1976. O registro mostra-se imprescindível ao monitoramento, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, da segurança, eficácia e qualidade terapêutica. Ausente o cadastro, a inadequação é presumida.Por dever de coerência, cumpre reiterar: em Direito, os fins não justificam os meios. O diploma atacado suprime, casuisticamente, o requisito, evidenciando haver o legislador deixado em segundo plano a obrigação de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde. A oferta de medicamento, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido à margem do figurino constitucional, com atropelo dos pressupostos mínimos de segurança visando o consumo, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde – artigo 196 da Lei Maior.” Da referida fundamentação, possível extrair-se que o direito à vida, à saúde e à liberdade de escolha, não se presta a autorizar a indiscriminada comercialização e utilização de medicamentos ao arrepio dos critérios científicos exigidos para a aprovação pelo órgão competente, no caso a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, de modo a atestar não apenas a eficácia, mas também a segurança, sob pena de adotar-se postura temerária, e prestigiar o charlatanismo em detrimento da ciência, e fragilizar demasiadamente a proteção aos referidos direitos.A exigência de critérios científicos para a autorização da comercialização e uso de medicamento é medida necessária para a efetiva proteção da saúde e da vida em sua perspectiva coletiva, razão pela qual deve prevalecer em detrimento de interesses individuais, uma vez que não há direito fundamental absoluto.Por ser a saúde um direito fundamental social de alto valor na ordem constitucional, a adoção de critérios científicos se dá exatamente para fins de evitar a sua vulneração em detrimento de interesses que possam lhe ser atentatórios, sendo o registro na ANVISA procedimento essencial para a tutela do direito à saúde.Em se tratando de fármacos, é imperiosa a adoção de critérios estritamente técnicos para o fim efetiva proteção à saúde pública, não sendo demais lembrar que, inclusive, há substâncias que mesmo autorizadas podem ensejar efeitos colaterais trágicos, tal qual o que ficou notoriamente conhecido como “síndrome da talidomida”, medicamento cuja utilização durante a gestação ocasionou a má-formação dos braços e pernas de milhares de fetos.Nesse aspecto, como dito, cumpre ao órgão competente a regulamentação, razão pela qual descabido qualquer debate sobre a eficiência ou segurança na utilização do referido medicamento no âmbito do presente feito, uma vez que, nos termos do entendimento da Corte Suprema, diante da inexistência de registro na ANVISA, a inadequação é presumida.Nesse sentido, é o entendimento deste Tribunal: “APELAÇÃO CÍVEL EM PEDIDO DE EXPEDIÇÃO DE ALVARÁ JUDICIAL AUTORIZANDO A COMPRA DE PRODUTO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA.1. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA COMPRA DE FOSFOETANOLAMINA SINTÉTICA (PÍLULA DO CÂNCER) EM LABORATÓRIO PRIVADO. AUTOR DIAGNOSTICADO COM NEOPLASIA MALIGNA DA PRÓSTATA (CID-C61). SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DA LEI 13.269/2016, QUE AUTORIZA O USO DA SUBSTÂNCIA PARA O TRATAMENTO DO CÂNCER, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADI 5501 MC/DF). SUBSTÂNCIA EM FASE EXPERIMENTAL E NÃO REGISTRADA NA ANVISA. INEXISTÊNCIA DE PRESCRIÇÃO MÉDICA INEQUÍVOCA SOBRE A NECESSIDADE DO MEDICAMENTO NO CASO CONCRETO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.2. RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDO E IMPROVIDO.”(TJPR - 9ª C.Cível - 0000900-34.2020.8.16.0107 - Mamborê - Rel.: DESEMBARGADOR LUIS SERGIO SWIECH - J. 05.12.2020) “APELAÇÃO CÍVEL. ALVARÁ JUDICIAL. AUTORIZAÇÃO PARA COMPRA DO MEDICAMENTO FOSFOETANOLAMINA SINTÉTICA. “PÍLULA DO CÂNCER”. IMPOSSIBILIDADE. SUSPENSÃO DA COMERCIALIZAÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI N. 5501. AUSÊNCIA DE REGISTRO NA ANVISA E DE ESTUDOS SOBRE A EFICÁCIA DA DROGA. PRECEDENTES. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião de medida cautelar deferida na ADI 5501, suspendeu a eficácia da Lei n. 13.269/2016, que autorizava o uso da substância fosfoetanolamina sintética, uma vez que a substância não possui registro na ANVISA e sua eficiência é desconhecida. RECURSO NÃO PROVIDO.”(TJPR - 5ª C.Cível - 0007398-71.2019.8.16.0014 - Londrina - Rel.: DESEMBARGADOR NILSON MIZUTA - J. 30.04.2019). Nem se fale que a pretensão se justifica na utilização compassiva do medicamento ora em tela, uma vez que, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 657718/MG, no que tange os medicamentos de uso experimental e programas de acesso expandido e de uso compassivo, destinados a oferecer a pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ou que ameacem a vida e sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados no país, acesso a medicamento novo promissor ainda sem registro na Anvisa, o STF entendeu que todos esses casos devem ser, contudo, resolvidos administrativamente, nos termos da regulamentação aplicável, sem interferência do Poder Judiciário.Vejamos a ementa do referido julgado cuja fundamentação restou acima transcrita: “Direito Constitucional. Recurso Extraordinário com Repercussão Geral. Medicamentos não registrados na Anvisa. Impossibilidade de dispensação por decisão judicial, salvo mora irrazoável na apreciação do pedido de registro. 1. Como regra geral, o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) por decisão judicial. O registro na Anvisa constitui proteção à saúde pública, atestando a eficácia, segurança e qualidade dos fármacos comercializados no país, além de garantir o devido controle de preços. 2. No caso de medicamentos experimentais, i.e., sem comprovação científica de eficácia e segurança, e ainda em fase de pesquisas e testes, não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Estado a fornecê-los. Isso, é claro, não interfere com a dispensação desses fármacos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável. 3. No caso de medicamentos com eficácia e segurança comprovadas e testes concluídos, mas ainda sem registro na ANVISA, o seu fornecimento por decisão judicial assume caráter absolutamente excepcional e somente poderá ocorrer em uma hipótese: a de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016). Ainda nesse caso, porém, será preciso que haja prova do preenchimento cumulativo de três requisitos. São eles: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento pleiteado em renomadas agências de regulação no exterior (e.g., EUA, União Europeia e Japão); e (iii) a inexistência de substituto terapêutico registrado na ANVISA. Ademais, tendo em vista que o pressuposto básico da obrigação estatal é a mora da agência, as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. 4. Provimento parcial do recurso extraordinário, apenas para a afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União”.(RE 657718, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-267 DIVULG 06-11-2020 PUBLIC 09-11-2020). Em síntese, restringir a comercialização de medicamentos sem os devidos registros é medida que visa salvaguardar o direito à vida e à saúde, razão pela qual não se mostra cabível a pretensão de autorização para aquisição da substância denominada fosfoetanolamina sintética, mercê da ausência da competente autorização perante a ANVISA, sendo certo que eventual ingresso em programas de acesso expandido e de uso compassivo devem ser resolvidos administrativamente, nos termos da regulamentação aplicável.Destarte, não comporta provimento a pretensão recursal.Diante do exposto, voto pelo conhecimento e desprovimento do recurso, nos termos da fundamentação.
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