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Acórdão
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RELATÓRIO Vistos, relatados e discutidos estes autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0025602-06.2022.8.16.0000, em que é autor o Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, curadora a Procuradoria Geral do Estado do Paraná, e interessados a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, o Estado do Paraná e Outros, e amicus curiae a Defensoria Pública do Estado do Paraná. 1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná visando à declaração da inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 20.127/2020, que alterou o art. 3º da Lei Estadual nº 19.701/2018, diploma que estabelece diretrizes da saúde pública e de proteção à infância e à juventude no âmbito estadual. 2. Aduz o autor, em síntese, que: a) o mencionado ato normativo padece de inconstitucionalidade formal, por extrapolar da competência legislativa estadual para complementar a legislação federal em matéria de saúde pública e proteção à infância e à juventude; b) o diploma impugnado, alterando a norma anterior que dispunha acerca do parto natural, passou a prever o denominado “parto adequado”, contemplando a possibilidade de que a gestante opte pela realização de parto cesáreo, independentemente da existência de motivos médicos, a partir da 39ª semana de gestação; c) ao promulgar uma norma que se opõe à política nacional, o Estado do Paraná ultrapassou sua competência normativa, em desacordo com o disposto no artigo 13, parágrafo 1º, da Constituição do Paraná e, consequentemente, no artigo 24, parágrafos 1º e 2º, da Constituição da República; d) “o art. 8º, §8º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), garante às gestantes o ‘direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos’”; e) a norma federal privilegia o parto natural e preconiza a realização de cesárea somente nos casos em que houver motivo médico; f) igualmente, o diploma legislativo apresenta vício de inconstitucionalidade material, uma vez que contraria o direito à saúde, conforme estabelecido no artigo 167 da Constituição do Estado do Paraná, e a proteção à infância e à juventude, nos termos do artigo 216 da Constituição do Estado do Paraná; g) ao autorizar a realização de cesárea sem indicação médica, a Lei nº 20.127/2020 anda na contramão das diretrizes terapêuticas emitidas pelo Ministério da Saúde, olvidando que a realização de cesáreas desnecessárias contribui para a prematuridade tardia iatrogênica dos bebês, para a ocorrência de desconforto respiratório neonatal e para a necessidade de internação dos bebês em unidades de terapia intensiva neonatal, além de interferir no aleitamento materno e gerar impactos adversos na saúde da criança a longo prazo; h) embora a lei tenha sido promulgada com o propósito de conferir autonomia à mulher para escolher a modalidade de parto que considera mais alinhada com suas preferências e crenças, o diploma legal influencia na realidade social vigente, uma vez que tal "liberdade de escolha" transforma-se em um estímulo para a realização da cirurgia cesariana. 3. Requer, ao final: “a procedência do pedido, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade formal da Lei nº 20.127, de 15 de janeiro de 2020, do Estado do Paraná, por extrapolar a competência legislativa estadual para suplementar a legislação federal em tema de saúde pública e de proteção à infância e à juventude (art. 13, incisos XII, XV e § 1º, da Constituição do Estado do Paraná; art. 24, incisos XII, XV e §§ 1º e2º da Constituição da República) e a inconstitucionalidade material da referida lei, por se tratar de ato frontalmente contrário ao direito à saúde (art. 167 da Constituição do Estado do Paraná) e à proteção à infância e à juventude (art. 216 da Constituição do Estado do Paraná)”. 4. A Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (mov. 19.1), argumentou, em síntese, que: a) a via eleita é inadequada pois envolve a análise prévia de norma infraconstitucional, especificamente da Lei Federal nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), ensejando somente ofensa indireta à Constituição; b) o processo legislativo concernente à promulgação da Lei Estadual nº 20.127/2020 foi conduzido em estrita observância das normas regimentais, legais e constitucionais aplicáveis; c) os estados, enquanto entidades federativas, detêm competência legislativa concorrente, de acordo com as disposições constitucionais, para elaborar legislação relacionada à saúde pública e à proteção da infância e juventude, sendo imperativo reconhecer e valorizar as iniciativas normativas locais e regionais sobre o assunto, desde que não haja vedação expressa na Constituição; d) a lei em questão não excedeu os limites da competência privativa da União, uma vez que o legislador estadual atuou dentro da esfera normativa garantida constitucionalmente ao Estado; e) não há legislação federal que trate especificamente do parto adequado, o que possibilita ao Estado do Paraná, por meio de projeto de lei, exercer sua competência legislativa plena, conforme estabelece o art. 24, §3º, da Constituição Federal; f) a Lei Estadual nº 20.127/2020 tem como objetivo apenas assegurar o direito ao parto adequado, ao proporcionar à parturiente o poder de escolha entre diferentes modalidades de parto, após a disponibilização de informações sobre as opções disponíveis, incluindo suas vantagens, desvantagens e os procedimentos associados a cada uma delas; g) resta preservada a autonomia profissional do médico nas situações em que a escolha não seja factível; h) diversos especialistas e associações compostas por profissionais que atuam diariamente na rede de saúde pública demonstram apoio à concessão do poder de escolha à parturiente. Pugnou pelo não conhecimento da ação e, no mérito, pela improcedência. 5. A Procuradoria-Geral do Estado, (mov. 24.1), na qualidade de curadora da constitucionalidade das leis estaduais, defendeu que: a) a causa de pedir apresentada pelo autor fundamenta-se na alegada violação ao disposto no art. 8º, §8º do ECA e no art. 19-Q da Lei nº 8.080/1990, o que representa uma arguição de inconstitucionalidade meramente reflexa; b) o Estado do Paraná agiu unicamente complementando as normas gerais estabelecidas pela União, sendo a Lei Estadual nº 20.127/2020 formalmente constitucional, pois não excede os limites constitucionais de atuação dos Estados em sua competência suplementar; c) o objetivo da lei é prestigiar a autonomia da vontade da mulher, além de proteger a saúde e a vida do nascituro, pois o parto cesariano só é permitido com o "consentimento livre e esclarecido" da mulher, levando em consideração as "características do parto" e a partir da "39ª semana de gestação”. Pugnou pela extinção sem resolução de mérito da ação e, no mérito, o reconhecimento da constitucionalidade do diploma. 6. Deferi (31.1 e 52.1) o ingresso da Defensoria Pública do Estado do Paraná na qualidade de amicus curiae e neguei o ingresso da Associação Garagem Mulher como amicus curiae. Determinei, ainda, a notificação da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Paraná (SOGIPA), do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) e da Sociedade Paranaense de Pediatria para que prestassem informações sobre a presente controvérsia. 7. A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Paraná (SOGIPA), aduziu que (mov. 48.2): a) a Organização Mundial de Saúde abandonou a meta de partos cesáreos adotada desde 1985 e passou a recomendar que esforços sejam feitos para que tais partos sejam realizados somente quando necessários; b) já emitiu pronunciamento público, disponível na internet, contrário à lei em exame; c) os Estados e Municípios devem seguir as Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal estabelecidas pelo Ministério da Saúde, as quais sintetizam e avaliam as informações científicas relevantes acerca da assistência ao parto e ao nascimento; d) é fundamental a qualificação da atenção à gestante, a fim de garantir que a decisão a respeito do parto avalie os ganhos e possíveis riscos associados. 8. Notificou-se o Conselho Regional de Medicina (mov. 47.2), mas que deixou de apresentar manifestação (mov. 50). 9. A Sociedade Paranaense de Pediatria apresentou parecer (mov. 57.1), no sentido de que, conforme as orientações, definições e argumentos científicos expressos no documento "Parto Seguro" de 2018, emitido pela Sociedade Brasileira de Pediatria, o parto via vaginal é considerado o mais adequado tanto para o recém-nascido quanto para a gestante, a menos que haja uma indicação específica em que a cesárea seja a melhor opção para o binômio mãe-bebê. 10. A Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), qualidade de amicus curiae, sustentou que a) a lei em questão não apenas busca regular uma matéria já contemplada na legislação federal, como também contradiz o princípio do acesso universal e igualitário às gestantes, já que limita às gestantes do Paraná a opção pelo parto cesariano; b) a lei impugnada não apresenta qualquer elemento que demonstre a singularidade deste Estado para justificar a elaboração de legislação suplementar diante da ausência de circunstâncias exclusivas deste ente federativo que justifiquem a suplementação federal; c) a opção pela cirurgia cesariana sem uma indicação clínica adequada não apenas aumenta os riscos para a vida e a saúde tanto da mãe quanto do bebê, mas também contradiz a política pública nacional que busca reverter essa situação preocupante, acarretando, ainda, gastos desnecessários para o Sistema Público de Saúde; d) o entendimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que, para prevenir riscos, não devem ser realizadas intervenções no trabalho de parto sem uma indicação médica adequada; e) a realização de cesarianas, por outro lado, está diretamente associada a um aumento do risco de mortalidade e morbidade materna em comparação ao parto vaginal; f) diante das evidências médicas e científicas, a vida da gestante e do recém-nascido é melhor protegida quando se assegura o direito ao parto vaginal cuidadoso, com a aplicação de intervenções cirúrgicas somente quando clinicamente indicadas e respaldadas por evidências científicas; g) a vontade individual não pode ser o guia da política de saúde quando se opõe às melhores práticas e desafia os juramentos profissionais de proteção à vida, prevenção de danos à saúde e aplicação da medicina fundamentada em evidências científica; h) a adoção de tratamento médico inapropriado em relação ao parto se insere naquilo que restou definido como violência obstétrica. Pugnou pela procedência da ação. 11. A Procuradoria-Geral de Justiça ratificou, integralmente, a petição inicial e rogou pela procedência dos pedidos (mov. 74.1).
VOTO E SUA FUNDAMENTAÇÃO 12. A controvérsia cingia-se, inicialmente, ao exame da constitucionalidade da Lei Estadual nº 20.127/2020, que alterou o art. 3º da Lei Estadual nº 19.701/2018, diploma que estabelece diretrizes da saúde pública e de proteção à infância e à juventude no âmbito estadual. 13. Em primeiro lugar, é de rigor a transcrição da Lei Estadual nº 20.127/2020: “Art. 1º Altera o inciso VII do art. 3º da Lei nº 19.701, de 20 de novembro de 2018, que passa a vigorar com a seguinte redação:VII - o parto adequado, respeitadas as fases biológica e psicológica do nascimento, garantindo que a gestante participe do processo de decisão acerca de qual modalidade de parto atende melhor às suas convicções, aos seus valores e às suas crenças;Art. 2º Acresce os §§ 1º, 2º, 3º e 4º ao art. 3º da Lei nº 19.701, de 2018, com a seguinte redação: § 1º O parto adequado mencionado no inciso VII deste artigo é aquele que:I - promove uma experiência agradável, confortável, tranquila e segura para a mãe e para o bebê;II - garante à parturiente o direito a ter um acompanhante durante o parto e nos períodos pré-parto e pós-parto;III - respeita as opções e a tomada de decisão da parturiente na gestão de sua dor e nas posições escolhidas durante o trabalho de parto.§ 2º Nas situações eletivas, é direito da gestante optar pela realização de cesariana, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos, e tenha se submetido às avaliações de risco gestacional durante o pré-natal, na forma do inciso I deste artigo.§ 3º A decisão tomada pela gestante deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, de modo a atender as características do parto adequado.§ 4º Para garantir a segurança do feto, a cesariana a pedido da gestante, nas situações de risco habitual, somente poderá ser realizada a partir da 39ª semana de gestação, devendo o registro em prontuário.Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” Destaquei. 14. São apontados como parâmetro de controle os seguintes dispositivos das Constituições Estadual e Federal: Constituição do Estado do Paraná:“Art. 13. Compete ao Estado, concorrentemente com a União, legislar sobre: [...] XII - previdência social, proteção e defesa da saúde; XV - proteção à infância e à juventude;[...] § 1º. O Estado, no exercício de sua competência suplementar, observará as normas gerais estabelecidas pela União.(...)Art. 167. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à prevenção, redução e eliminação de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para a sua promoção, proteção e recuperação. (...)Art. 216. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao deficiente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Constituição da República“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;XV - proteção à infância e à juventude;[...] § 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.” 15. O autor apresenta dois eixos argumentativos: de um lado, a inconstitucionalidade formal da Lei nº 20.127/2020, por afrontar a competência da União para estabelecer normas gerais da União a respeito de saúde pública e proteção à criança e ao adolescente. De outro, sinaliza a existência de inconstitucionalidade material do normativo, por estar na contramão das evidências científicas existente acerca do direito à saúde e da proteção à infância e à juventude. Da publicação da Lei Estadual nº 21.926/2024 e da continuidade normativa. 16. Em segundo lugar, por meio do petitório de mov. 112.1, a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná noticiou a promulgação, em 11-04-2024, da Lei Estadual nº 21.926/2024, diploma que consolidou a “legislação paranaense relativa aos Direitos da Mulher, criando o Código Estadual da Mulher Paranaense”. Referiu que a nova lei revogou a Lei Estadual nº 20.127/2020, objeto desta ADI, sem interromper sua força normativa, isso porque, a nova lei apenas consolidou e reproduziu os dispositivos revogados em outro ato normativo. Pugnou pela intimação do autor para que realize o aditamento da petição inicial, com a substituição da lei anteriormente impugnada pela nova lei. 17. É de se ver que o julgamento da presente demanda objetiva teve início na sessão do dia 15-04-2024. A alteração legislativa noticiada ocorreu no dia 11-04-2024 (quinta-feira) e somente foi informada pela ALEP no dia 16-04-2024, após o início do julgamento. 18. Observa-se que a nova lei reproduziu literalmente os dispositivos previstos na Lei Estadual nº 20.127/2020, inserindo-os na Lei Estadual nº 21.926/2024 sob outra numeração. Quer dizer, a dita revogação da lei impugnada não ocorreu no plano substancial, havendo apenas a troca de um veículo normativo por outro. Os dispositivos objeto desta demanda estão agora transcritos no artigo 111, inciso VII, §1º a 4º, da nova lei. A única diferença está no § 5º da nova lei, o qual guarda relação com inciso XI e não trata especificamente do parto, mas de treinamento de primeiros socorros para o nascituro. Vejamos: Lei Estadual nº 21.926/2024Lei Estadual nº 20.127/2020Art. 111. São direitos da gestante e da parturiente: (...) VII - parto adequado, respeitadas as fases biológica e psicológica do nascimento, garantindo que a gestante participe do processo de decisão acerca de qual modalidade de parto atende melhor às suas convicções, aos seus valores e às suas crenças; (...) §1º O parto adequado mencionado no inciso VII deste artigo é aquele que: I - promove uma experiência agradável, confortável, tranquila e segura para a mãe e para o bebê; II - garante à parturiente o direito a ter um acompanhante durante o parto e nos períodos préparto e pós-parto; III - respeita as opções e a tomada de decisão da parturiente na gestão de sua dor e nas posições escolhidas durante o trabalho de parto. §2º Nas situações eletivas, é direito da gestante optar pela realização de cesariana, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos, e tenha se submetido às avaliações de risco gestacional durante o pré-natal, na forma do inciso I deste artigo. §3º A decisão tomada pela gestante deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, de modo a atender as características do parto adequado. §4º Para garantir a segurança do feto, a cesariana a pedido da gestante, nas situações de risco habitual, somente poderá ser realizada a partir da 39ª semana de gestação, devendo o registro constar em prontuário. §5º A orientação e o treinamento mencionados no inciso XI deste artigo poderão ser oferecidos ao acompanhante da parturiente ou a pessoa por ela indicada. Art. 1.º Altera o inciso VII do art. 3º da Lei nº 19.701, de 20 de novembro de 2018, que passa a vigorar com a seguinte redação:VII – o parto adequado, respeitadas as fases biológica e psicológica do nascimento, garantindo que a gestante participe do processo de decisão acerca de qual modalidade de parto atende melhor às suas convicções, aos seus valores e às suas crenças;Art. 2.º Acresce os §§ 1º, 2º, 3º e 4º ao art. 3º da Lei nº 19.701, de 2018, com a seguinte redação: § 1º O parto adequado mencionado no inciso VII deste artigo é aquele que: I – promove uma experiência agradável, confortável, tranquila e segura para a mãe e para o bebê; II – garante à parturiente o direito a ter um acompanhante durante o parto e nos períodos préparto e pós-parto; III – respeita as opções e a tomada de decisão da parturiente na gestão de sua dor e nas posições escolhidas durante o trabalho de parto.(NR) § 2º Nas situações eletivas, é direito da gestante optar pela realização de cesariana, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos, e tenha se submetido às avaliações de risco gestacional durante o pré-natal, na forma do inciso I deste artigo. § 3º A decisão tomada pela gestante deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, de modo a atender as características do parto adequado. § 4º Para garantir a segurança do feto, a cesariana a pedido da gestante, nas situações de risco habitual, somente poderá ser realizada a partir da 39ª semana de gestação, devendo o registro em prontuário. 19. Nesse caminho, é desnecessária a emenda da petição inicial e a intimação prévia dos envolvidos, podendo o julgamento prosseguir levando-se em conta o novo cenário legislativo. Repita-se, estamos diante de uma situação de simples alteração do número da lei, sem qualquer alteração de conteúdo. Não se pode perder de vista o caráter instrumental do processo, que se traduz na necessidade de que ele efetivamente resolva o conflito material que justificou sua inauguração. Sobre o tema, dizem Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antônio Carlos de Araújo Cintra que “as exigências formais do processo só merecem ser cumpridas à risca, sob pena de invalidade dos atos, na medida em que isso seja desejável para os objetivos desejados” (Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 42). 20. Anote-se que o Supremo Tribunal Federal já considerou dispensável o aditamento da petição inicial em ação direta de inconstitucionalidade quando constatada a ausência de alteração substancial das normas impugnadas. Vejamos: “Ação direta de inconstitucionalidade. Arts. 6º e 11-a da lei n. 11.598/2007, alterados pelo art. 2º da medida provisória n. 1.040/2021. Conversão da medida provisória n. 1.040/2021 na lei n.14.195/2021. Inexistência de alteração substancial das normas impugnadas. Ausência de prejuízo pelo não aditamento tempestivo da petição inicial. Conversão da apreciação da medida cautelar em julgamento de mérito. Procedimento automático e simplificado de emissão de alvará de funcionamento e licenças ambientais para atividade de risco médio no sistema de integração REDESIM. Vedação de coleta de dados adicionais pelo órgão responsável à realizada no sistema REDESIM para a emissão das licenças e alvarás para funcionamento de empreendimentos ambientais. Desobediência ao princípio da prevenção e ao dever de proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da constituição da república). Ação direta julgada parcialmente procedente para dar interpretação conforme à constituição. 1. Conversão da apreciação da medida cautelar em julgamento de mérito: prescindibilidade de novas informações. Princípio da razoável duração do processo. Precedentes. 2. A ausência de aditamento à petição inicial não importa no prejuízo da ação quando não constatada alteração substancial das normas impugnadas. Precedentes. (...)” (ADI nº 6808 - Relator(a): Cármen Lúcia - Tribunal Pleno - julgado em 28-04-2022 - processo eletrônico DJe-139 divulg 13-07-2022 public 14-07-2022). Destaquei. 21. Pertinente, ainda, a transcrição de fragmento da decisão deste Órgão Especial na ADI nº 0006520-62.2017.8.16.0000 (nº antigo 1.657.284-2), lavrada pelo Desembargador Robson Marques Cury: “Respaldado pela consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não vejo prejudicado o controle de constitucionalidade a ser realizado no presente processo. Isso porque, muito embora o diploma normativo originariamente objurgado tenha sido revogado no curso dessa ação, a sobrevinda alteração legislativa não extirpou do mundo jurídico as normas atacadas, tão somente conferiu-lhes nova roupagem. Tenho que o controle de constitucionalidade não se reduz à análise fria do texto de lei, mas sim, e também, da norma que dele se extrai e das consequências dela no mundo fenomênico (nesse caso, especificamente, quando se aquilata eventual inconstitucionalidade material da lei). Bem por isso, após o cotejo entre as duas previsões – a revogada e a revogadora - identifico que o conteúdo normativo outrora constante da Lei nº 4.345/2015 foi transferido com tímidas alterações para a Lei nº 4.588/2017, de sorte que a mens legis que se extrai de ambos os diplomas é a mesma, justificando-se, destarte, o prosseguimento do controle de constitucionalidade, agora sobre o novo objeto, mas com os mesmos parâmetros. O que houve, em última análise, foi a troca de numeração da lei; a de 2015 foi substituída pela de 2017.” (TJPR - Órgão Especial - ADI nº 0006520-2017.8.16.0000 - DJe: 23.10.2018). 22. Assim, diante da verificação da continuidade normativa, impõe-se a análise do artigo 111, inciso VIII, §1º a 4º, da Lei Estadual nº 21.926/2024, em lugar da Lei Estadual nº 20.127/2020, já revogada. Da questão preliminar 23. Em terceiro lugar, não merece acolhimento a preliminar de carência de ação por ofensa reflexa e indireta à Constituição aventada pelo Assembleia Legislativa do Paraná e pela Procuradoria-Geral do Estado. O autor aponta de forma bastante precisa os dispositivos das Constituições Estadual e Federal que entende terem sido frontalmente violados pela legislação estadual. A necessidade de cotejo entre a lei impugnada e outros diplomas normativos de caráter infraconstitucional se dá somente no tocante à alegação de invasão da competência legislativa da União, situação que franqueia a análise pretendida pelo autor em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Do mérito 24. Em quarto lugar, no tocante à alegação de vício formal por usurpação da competência da União, sabe-se competir a esta, nos termos do artigo 24, incisos XII e XV, da Constituição Federal, estabelecer normas gerais sobre a defesa da saúde e à proteção infanto-juvenil, cabendo aos Estados promulgar disposições suplementares. A dinâmica da repartição de competências apresentada pela Constituição de 1988 combina caraterísticas do chamado federalismo dual, em que há domínios de atribuições radicalmente separados entre União e Estados (repartição horizontal), com elementos do chamado federalismo cooperativo, no qual União e Estados partilham de uma mesma competência, cabendo ao ente central estabelecer normas gerais e aos entes locais apresentar normas complementares (repartição vertical). Sobre o tema, trago a explicação de Paulo Mohn, exposta em artigo dedicado exclusivamente ao tema: “No sistema da Constituição de 1988, convivem a repartição horizontal e a repartição vertical de competências. Sob a orientação de repartição horizontal, foram relacionadas as competências da União, no campo material e legislativo, permanecendo os Estados com as competências remanescentes e os Municípios com as competências definidas indicativamente (BRASIL, 1988, arts. 21, 22, 25 e 30). O Distrito Federal acumula as competências estaduais e municipais, com poucas exceções (arts. 21, XIII, XIV, e 22, XVII).Quanto à repartição vertical, ela se aplica onde possa haver atuação concorrente dos entes federativos. Foram previstos domínios de execução comum, em que pode ocorrer a atuação concomitante e cooperativa entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BRASIL, 1988, art. 23). No campo legislativo, foram definidos domínios de legislação concorrente, nos quais a União estabelece as regras gerais, a serem suplementadas pelos Estados, Distrito Federal e pelos Municípios (BRASIL, 1988, arts. 24 e 30, II).(...)A repartição de competências da Constituição de 1988 seguiu as linhas do federalismo contemporâneo europeu, mais especificamente da Lei Fundamental de Bonn (HORTA, 2002, p. 446), de onde buscou várias de seus preceitos. Lembra Almeida (2005, p. 76) que a Constituição brasileira de 1934 também serviu como fonte de inspiração para o constituinte de 1987/88, particularmente quanto ao rol de competências materiais comuns (BRASIL, 1934, art. 10), cujo conteúdo foi parcialmente repetido pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1988, art. 23). O modelo adotado teve a pretensão de tirar o melhor proveito da utilização das competências concorrentes, que havia significado um avanço, na Alemanha, “no sentido de propiciar um relacionamento federativo melhor balanceado, principalmente em função do tratamento que deu à competência legislativa” (ALMEIDA, 2005, p. 76).” (A repartição de competências na Constituição de 1988. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010). 25. No tocante aos desafios advindos do modelo apresentado pelo constituinte, convém trazer o escólio de Fernanda Dias Menezes de Almeida: “[...] o problema nuclear da repartição de competências na Federação reside na partilha da competência legislativa, pois é através dela que se expressa o poder político cerne da autonomia das unidades federativas. De fato, é na capacidade de estabelecer as leis que vão reger as suas próprias atividades, sem subordinação hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que se traduz fundamentalmente a autonomia de cada uma dessas esferas. Autogovernar-se não significa outra coisa senão ditar-se as próprias regras. (...) Está aí bem nítida a ideia que se quer transmitir: só haverá autonomia onde houver a faculdade legislativa desvinculada da ingerência de outro ente autônomo. Assim, guarda a subordinação apenas ao poder soberano no caso o poder constituinte, manifestado através de sua obra, a Constituição -, cada centro de poder autônomo na Federação deverá necessariamente ser dotado da competência de criar o direito aplicável à respectiva órbita. E porque é a Constituição que faz a partilha, tem-se como consequência lógica que a invasão não importa por qual das entidades federadas do campo da competência legislativa de outra resultará sempre na inconstitucionalidade da lei editada pela autoridade incompetente. Isso tanto no caso de usurpação de competência legislativa privativa, como no caso de inobservância dos limites constitucionais postos à atuação de cada entidade no campo da competência legislativa concorrente” (Competências na Constituição de 1988, 3ª edição, Atlas, pág. 97). 26. A temática tratada na lei em exame - política pública relacionada ao “parto adequado” - está inserida entra as competências legislativas que reclamam a convivência entre normas federais e estaduais. Deveras, não poderia a União legislar isoladamente a respeito de todos os aspectos das políticas públicas de saúde e proteção à maternidade e à infância. Entretanto, os entes federados, na tarefa de acrescer os pormenores necessários à legislação federal, não podem descuidar dos parâmetros gerais fincados pela União. Aqui, recorro, outra vez, às palavras de Paulo Mohn: “Se as normas gerais fixam o que é uniforme a todos, as normas complementares virão, exatamente, dispor sobre as necessidades e especificidades de cada Estado.” 27. Em quinto lugar, a Lei Estadual nº 20.127/2020, revogada e substituída pela Lei Estadual nº 21.926/2024, trouxe sensível alteração na Lei Estadual nº 19.701/2018, que dispõe sobre a violência obstétrica e os direitos da gestante e da parturiente. Com o advento da nova lei, excluiu-se a expressão “parto natural” do rol de direitos da parturiente, substituindo-a pelo chamado “parto adequado”, conferindo ainda à mulher um poder decisório mais relevante quanto à modalidade de parto. Vejamos: Lei Estadual nº 19.701/2018 (redação original)Lei Estadual nº 21.926/2024Art. 3° São direitos da gestante e da parturiente:(...)VII - o parto natural, respeitadas as fases biológica e psicológica do processo de nascimento, evitando-se práticas invasivas sem que haja uma justificativa clínica;Art. 111. São direitos da gestante e da parturiente: (...) VII - parto adequado, respeitadas as fases biológica e psicológica do nascimento, garantindo que a gestante participe do processo de decisão acerca de qual modalidade de parto atende melhor às suas convicções, aos seus valores e às suas crenças;
28. Nota-se, ademais, que havia a determinação para que fossem evitadas práticas invasivas quando inexistisse recomendação clínica para tanto; privilegiava-se, portanto, o parto natural. Com o novo cenário legislativo, não mais subsiste o dever de evitar o procedimento cirúrgico, conferindo-se poder decisório à mulher quanto à modalidade de parto. Os demais aspectos do “parto adequado” são minudenciados nos parágrafos do artigo 111, verbis: “§1º O parto adequado mencionado no inciso VII deste artigo é aquele que: I - promove uma experiência agradável, confortável, tranquila e segura para a mãe e para o bebê; II - garante à parturiente o direito a ter um acompanhante durante o parto e nos períodos préparto e pós-parto; III - respeita as opções e a tomada de decisão da parturiente na gestão de sua dor e nas posições escolhidas durante o trabalho de parto. §2º Nas situações eletivas, é direito da gestante optar pela realização de cesariana, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos, e tenha se submetido às avaliações de risco gestacional durante o pré-natal, na forma do inciso I deste artigo. §3º A decisão tomada pela gestante deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, de modo a atender as características do parto adequado. §4º Para garantir a segurança do feto, a cesariana a pedido da gestante, nas situações de risco habitual, somente poderá ser realizada a partir da 39ª semana de gestação, devendo o registro constar em prontuário. Destaquei. 29. Em sexto lugar, importa aferir se tais disposições contrariam as diretrizes estabelecidas pela União acerca da saúde pública e dos direitos da parturiente e do nascituro. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) assim estabelece em seu artigo 8º, §8º: “Art. 8º É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde. (...)§8º A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016).” Destaquei. 30. Já a Lei nº 8.080/1990, a qual “regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado”, dispõe em artigo 19-Q o seguinte: “Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.” 31. A Portaria MS/SAS nº 306/2016, do Ministério da Saúde, aprovou as “Diretrizes de Atenção à gestante: a operação cesariana”, documento que, vinculando os demais órgãos do Sistema Único de Saúde, compila as evidências científicas acerca das situações médicas para as quais a cesariana é benéfica para a gestante e/ou para o bebê. Segundo se extrai, o documento contou com a contribuição de 3.451 pessoas, incluindo 2.218 profissionais de saúde e 1.323 pessoas leigas e usuários dos serviços de saúde. Os estudos elencados nas diretrizes sinalizam para uma quantidade maior de riscos associados à cesariana, a exemplo do maior tempo de internamento e de uma chance mais elevada de admissão do recém-nascido em unidade de terapia intensiva neonatal. Vejamos: “As evidências da revisão sistemática demonstraram que não há diferença na incidência de lesão cervical e vesical, lesão iatrogênica, embolia pulmonar, falência renal aguda, infecção e ruptura uterina em gestantes submetidas à cesariana programada. Três estudos avaliaram taxa de mortalidade materna, um deles mostrou maior mortalidade em cesariana programada (16) e dois estudos não obtiveram diferença significativa comparando com parto vaginal (17, 18). Dos três estudos que avaliaram incidência de histerectomia pós-parto, dois evidenciaram maior risco de histerectomia em mulheres submetidas à cesariana programada (17, 18), um estudo mostrou maior risco de trombose venosa profunda (17), choque cardiogênico (17) e maior tempo de internação hospitalar (19) comparando com parto vaginal. Um estudo avaliou dor abdominal e perineal nos primeiros três dias pós-parto, evidenciando menos dor na cesariana programada (20) e um estudo mostrou maior chance de lesão vaginal quando a gestante submetida a parto vaginal planejado (18). Quanto às repercussões neonatais, a revisão evidenciou maior risco de admissão em unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal nos recém-nascidos de cesariana programada, não havendo diferença significativa com relação à incidência de hipóxia e encefalopatia isquêmica, hemorragia intracraniana e morbidade respiratória quando comparados aos nascidos de parto vaginal (21, 22) (qualidade de evidência 3).” 32. Nesse contexto, compreende-se que o Estado do Paraná, em que pese a louvável pretensão de robustecer o poder decisório da mulher no venerável ato de dar à luz, editou norma que não se encontra em sintonia com as normas federais a respeito do tema. A centralização da elaboração das leis de saúde pela União contribui para a uniformidade e a consistência das políticas de saúde em todo o território nacional, além de assegurar que os princípios fundamentais do SUS sejam aplicados de forma consistente em todo o país. 33. Convém notar, ainda, que a redação anterior da Lei Estadual nº 19.701/2018 não proibia expressamente a realização da cesariana eletiva, apenas determinava que práticas invasivas desnecessárias fossem evitadas. O texto anterior da lei estava alinhado ao que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente e às diretrizes do Ministério da Saúde acerca da questão. Sublinhe-se que a lei aqui examinada estabeleceu que “é direito da gestante optar pela realização de cesariana”, colocando, assim, em segundo plano a participação do profissional de medicina e os interesses do próprio nascituro. Indubitável que os critérios médicos para a realização da cesariana não devem ser enfraquecidos pela legislação paranaense. 34. Resta, então, configurada a mácula formal de inconstitucionalidade em razão do extravasamento da competência suplementar conferida ao Estado em relação às normas gerais federais. Sobre o tema, assim já decidiu este Órgão Especial: “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei “r” nº 119/2021, do Município de Toledo, que proíbe a exigência de comprovação da vacinação contra o coronavírus ou de qualquer medida restritiva que implique meio indireto ao cumprimento da vacinação obrigatória. Legitimidade constitucional da vacinação compulsória, a ser implementada por meio de medidas indiretas pelas autoridades em suas respectivas esferas, já assentada pelo Supremo Tribunal Federal (ARE 1.267.879-RG, pleno, Rel. Roberto Barroso, j. 17/12/2020, tema 1.103 de repercussão geral; ADI 6586, pleno, Rel. Ricardo Lewandowski, j. 17/12/2020). Vícios materiais caracterizados. Lei municipal que vai na contramão da promoção à saúde da coletividade (art. 167, CE; art. 196, CR), Inobservando o objetivo de construir uma sociedade solidária (art. 3º, i, da CR). Norma que, ademais, avança em matéria clausulada pela reserva de administração, subtraindo do poder executivo local eventual decisão pela vacinação compulsória, que está abarcada no planejamento e execução de ações de vigilância epidemiológica. Afronta à separação dos poderes (arts. 7º, caput, e 168, da CE; arts. 2º e 197 da CR). Vícios formais igualmente demonstrados. Extrapolação da competência municipal para suplementar a legislação federal em tema de saúde pública. Contrariedade às normas gerais previstas na lei federal nº 13.979/2020. Lei que retira a eficácia de eventual ordem de vacinação compulsória advinda do Estado ou da União. Violação aos arts. 12, inc. II, 13, inc. XII e § 1º, e 17, inc. II, da CE; arts. 23, inc. II, 24, inc. XII e §§ 1º a 4º, e 30, in. II, da CR. Vício de iniciativa igualmente identificado quanto ao artigo 5º da lei, que dispõe sobre o regime jurídicos de servidores públicos, matéria sujeita a iniciativa privativa do chefe do poder executivo, nos termos do art. 66, II, da CE. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade da íntegra da lei.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0026081-96.2022.8.16.0000 - Relª. Desª. Ana Lucia Lourenco - Órgão Especial - Julgado em 19-9-2022). Destaquei. 35. Pertinente, também, a citação de julgado da Corte Paulista que tratou exaustivamente do tema: “I. Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Diretório Estadual do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, em que pretende a declaração de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 17.137, de 23 de agosto de 2019, que garante à parturiente a possibilidade de optar pela cesariana a partir de 39 (trinta e nove) semanas de gestação, bem como a analgesia, mesmo quando escolhido o parto normal. II. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Inépcia da inicial – Alegação de falta de indicação dos fundamentos jurídicos do pedido em relação a cada uma das impugnações. Há no petitório inaugural a pormenorizada explanação da inconstitucionalidade levantada, com a expressa indicação dos dispositivos constitucionais lesados, no entendimento do autor. Suficientemente trazidos o fato ou conjunto de fatos jurídicos e a relação jurídica, não se nota, assim, petição genérica e sem fundamentação. É pertinente mencionar que a (alegada falta de) robustez dos fundamentos não deve ser confundida com sua inexistência. Apta a inicial, a pertinência de seus argumentos deve ser analisada quando do mérito da demanda. (...)V. A Constituição Federal consagra regras de distribuição formal de competências legislativas de acordo com princípio da predominância de interesses, ora delimitando um rol de matérias que só podem ser objeto de leis federais (competência legislativa privativa da União - artigo 22 da CF), ora prevendo hipóteses de competências concorrentes, permitindo maior descentralização da atividade normativa (artigos 24 e 30, inciso I, da CF). VI. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL – Lei que trata da opção por um procedimento médico atinente ao nascimento, conferindo-a à gestante. Ainda que toque matérias diversas, como o direito à autonomia, a relação médico-paciente ou, em mais larga escala, a relação entre prestador de serviço e seu beneficiário, essencialmente, toca aspectos relativos à saúde e à vida da gestante e da criança, que termina por ser o tema central do diploma legislativo. Necessária sua subsunção, portanto, ao artigo 24, inciso XII, último item, da Constituição Federal. Cenário que trata da competência da União para o estabelecimento de normas gerais e dos Estados para suplementá-las, havendo competência legislativa plena na hipótese de inexistência de norma federal que trate da questão. A lei questionada não traz em seu bojo qualquer elemento capaz de demonstrar a particularidade deste Estado a justificar a edição de legislação suplementar. Ausente o cenário específico deste ente da federação que justifique a suplementação federal, necessário concluir que se trata de norma geral, que seria de competência do Estado apenas na ausência de legislação federal reguladora do assunto. Matéria já disciplinada, de modo geral e abrangente por legislação federal. Trata-se da Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências), que "regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado". Não bastasse isto, há também a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências) , que prevê : ( ... ) Do Direito à Vida e à Saúde Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Art. 8º É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde. ( ... ) § 8º A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos. VII. A interpretação não precisa se afastar da meramente gramatical. Assegura-se à parturiente o parto natural cuidadoso, e estabelece-se a cesariana por motivos médicos. Há, assim, nítido confronto entre a legislação vergastada e o regramento federal, mais antigo a abrangente. Nesta, resta estabelecida a necessidade de critérios médicos para o parto cesariano. Já a lei estadual, mais recente, prevê a livre opção da parturiente, ainda que não haja recomendação médica para o procedimento almejado. A tutela da Saúde encontra-se no campo da ciência e não da mera volição emocional. VIII. Há que se concluir, à luz da síntese dos argumentos trazidos até então, que a lei estadual em foco invadiu a esfera de competência da União ao disciplinar matéria, como norma geral, que já fora regrada de modo diverso (restando afastada, com isso, a hipótese de competência legislativa plena por parte do Estado de São Paulo). IX. Usurpação de competência legislativa da União, afrontando o disposto nos artigos 144 da Carta Bandeirante e 24, inciso XII , da Constituição Federal. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 17.137, de 23 de agosto de 2019.”(TJSP - Direta de Inconstitucionalidade nº 2188866-94.2019.8.26.0000 - Rel. Des. Alex Zilenovski - Órgão Especial - Julgado em 1º-7-2020 - Data de Registro 2-7-2020). Destaquei. 36. Não desconheço que a decisão da Corte Paulista sofreu reforma, por decisão monocrática, no Recurso Extraordinário nº 1.309.195/SP. Insta salientar, porém, que a decisão, lavrada pelo Ministro Lewandowski (DJE nº 131, de 01-07-2021), é unipessoal e está ancorada na jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de que os entes federados ampliem, no exercício da competência concorrente, a proteção estabelecida no âmbito das relação de consumo. A decisão não tratou expressamente do confronto entre as disposições federais acerca do parto e as disposições da lei paulista. Aliás, no referido recurso extremo, a Procuradoria-Geral da República pugnou, ante a relevância da questão discutida, que o recurso fosse destacado como paradigma. 37. Conclui-se, nesse rumo, ser procedente a alegação de inconstitucionalidade formal do diploma aguerrido. 38. Em sétimo lugar, remanesce a alegação de inconstitucionalidade material do ato normativo. Ao que defendeu o Procurador-Geral de Justiça, além de extrapolar da competência para suplementar a legislação federal, a lei teria contrariado, em seu aspecto material, o direito à saúde e o dever de proteção à infância e à juventude. 39. Sem dúvida, o Poder Judiciário não tem a palavra final no que diz respeito a temas relacionados ao conhecimento científico. As ciências da saúde, de modo especial, são aprimoradas de maneira constante e indomável a partir dos avanços tecnológicos das últimas décadas, aliados à facilidade da troca de informações. Não se pode jamais pretender que a decisão judicial seja um “ponto final” no tocante ao estado da ciência. 40. Não se pode olvidar que à luz do conhecimento reunido até determinado momento, é possível que o Poder Judiciário alcance conclusão assertiva acerca de tema específico, sem prejuízo de que a ciência continue seu processo de busca por novas respostas. A título de exemplo, no julgamento da ADI nº 4.066, pelo Supremo Tribunal Federal, cinco entre os nove Ministros votantes, deram-se por convencidos, para além da dúvida razoável, de que a substância amianto crisotila é nociva à saúde humana e que, por tal motivo, seria inconstitucional a tolerância de seu emprego na indústria e no comércio. Disseram os Ministros que “O consenso médico atual identifica, para além de qualquer dúvida razoável, a contração de diversas doenças graves como efeito direto da exposição ao amianto.” 41. Voltando ao caso em exame, a contribuição das entidades médicas ouvidas no processo há de ser sopesada na obtenção de respostas acerca da lei aqui questionada. A Sociedade Paranaense de Pediatria assim afirmou: “A via de parto vaginal é frequentemente considerada a melhor opção para o recém-nascido em comparação com a cesariana, desde que seja uma opção segura para a mãe e o bebê. É importante notar que cada caso é único, e a decisão sobre o método de parto deve ser feita após uma avaliação cuidadosa das condições médicas da mãe e do bebê, além de respeitar a autonomia da mulher, fornecendo informações adequadas para que ela possa tomar uma decisão consciente sobre a via de parto.(...)As normas de direitos humanos, a ética médica e os padrões técnicos fortalecem o conceito integrador da assistência, como elemento fundamental da qualidade do cuidado perinatal. Esta é posição as Sociedade Paranaense de Pediatria, que entende ser o parto via vaginal como o melhor para o recém-nascido e gestante, salvo indicação onde a cesárea será o melhor para o binômio. Cuidado centrado na mulher, RN e sua família faz parte da atuação do pediatra desde a consulta pré natal, com as devidas orientações sobre esclarecimentos sobre vias de parto possíveis e os benefícios do parto via vaginal, conscientização sobre a importância do aleitamento exclusivo até 6 meses e até 2 anos ou mais, importância da primeira hora de vida e ainda sobre o papel do pediatra na sala de parto, onde o profissional capacitado pode fazer a diferença no primeiro minuto de vida, com a reanimação adequada se houver necessidade, evitando-se assim hipóxia perinatal e suas morbidades e até mesmo a mortalidade neonatal precoce.” 42. Consignou, ainda, existir recomendação advinda do Conselho Nacional de Saúde (nº 11/2021) com a rotina administrativa a ser seguida em caso de manifestação de interesse, pela mulher, na realização de cesárea sem indicação clínica. Entre as etapas da rotina está a aplicação de “Formulário de Agendamento de Cesarianas Eletivas Sem Indicação Clínica” e a assinatura de termo de consentimento. 43. A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Paraná informou ter emitido pronunciamento público acerca da Lei ora examinada, cujo conteúdo está disponível na internet. Do referido pronunciamento, impõe-se destacar os seguintes fragmentos: “Primeiramente, é importante afirmar que apoiamos medidas que favoreçam a autonomia da paciente. Fundamentalmente, apoiamos e embasamo-nos nas Boas Práticas de Atenção ao Parto e Nascimento (Organização Mundial da Saúde – OMS, 1996), que foram idealizadas para repensar o modelo obstétrico e organizar uma rede de atenção à saúde , visando diminuir a mortalidade materno infantil. Dentre diversas ações, as Boas Práticas propõem que mulheres em trabalho de parto devem ser tratadas com respeito, ter acesso às informações baseadas em evidências e serem incluídas na tomada de decisões.(...)A cesariana aumenta as taxas de infecção, de tempo de internamento no hospital, de problemas no vínculo materno-fetal e de hemorragias após o parto. Além disso, a indicação de tratamento com antibióticos é 5 vezes maior no parto cesáreo quando comparado ao parto vaginal.(...)Assim, é consenso na literatura que a cesariana é um procedimento cirúrgico alternativo ao nascimento por via vaginal e não é isenta de riscos para a mãe e para o bebê. Consciente disso, a OMS vem acompanhando atentamente as crescentes taxas de cesariana em todo o mundo, visando a redução desse marcador. A taxa de cesárea recomendada pela OMS nas mulheres brasileiras é de 29%, sendo que a média de cesáreas realizadas no Estado do Paraná no período de 2012 a 2019 foi de 62,3%.Dessa forma, ressaltamos que o médico obstetra, a equipe de saúde, as instituições e, especialmente, a paciente e seus familiares, devem estar cientes das informações apresentadas nesse texto antes da tomada de decisão pelo parto cesariano, visto que, em via de regra, este tipo de parto não aumenta a segurança da mãe e do bebê.(...)No momento do parto, a parturiente deve ser suprida em todos os seus direitos, como ter a presença de acompanhante a sua escolha, poder alimentar-se e beber líquidos se as condições clínicas permitirem, ter à disposição métodos não farmacológicos de controle da dor, e, principalmente, dispor de analgesia de parto, de forma universal. Ampliar o acesso da gestante à analgesia de parto é, sem dúvidas, uma das principais estratégias para reduzir o número de cesáreas a pedido.Com base em todo o exposto a SOGIPA considera que a lei no 20127 de 15/01/2020 está na contramão das bases científicas para a boa prática da Obstetrícia, e repudia que medidas legais prepotentes e desconexas proponham ações na prática médica sem que sejam ouvidos os órgãos a quem compete o conhecimento ético e científico específico. Colocamo-nos à disposição para discutir o tema e convidamos de antemão os interessados a participarem de nossas atividades em prol da boa prática obstétrica.” (disponível em https://www.sogipa.org.br/posicionamento-da-sogipa-em-relacao-a-lei-no-20127-de-15-01-2020/). Destaquei. 44. Ademais, o site da Organização Pan Americana de Saúde (OPAS) informa existir no mundo apenas 5 cinco países onde as cesarianas já superam os partos normais, estando, entre eles, o Brasil. (https://www.paho.org/pt/noticias/16-6-2021-taxas-cesarianas-continuam-aumentando-em-meio-crescentes-desigualdades-no-acesso). Segundo dados apresentados pela Defensoria-Pública do Estado do Paraná, nosso Estado tem a segunda maior taxa de partos cesarianos do Brasil (mov. 71.1.); extrai-se que, em 2011, a taxa de cesarianas para gestações de risco habitual, no Paraná, foi de 34,6%, em 2022, a taxa já estava em 68,6% (mov. 71.14). 45. No ano de 2015, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu a seguinte declaração acerca das taxas de cesárea: “1. A cesárea é uma intervenção efetiva para salvar a vida de mães e bebês, porém apenas quando indicada por motivos médicos. 2. Ao nível populacional, taxas de cesárea maiores que 10%-15% não estão associadas com redução de mortalidade materna e neonatal. 3. A cesárea pode causar complicações significativas e, às vezes, permanentes, assim como sequelas ou morte, especialmente em locais sem infraestrutura e/ou a capacidade de realizar cirurgias de forma segura e de tratar complicações pós-operatórias. Idealmente, uma cesárea deveria ser realizada apenas quando ela for necessária, do ponto de vista médico. 4. Os esforços devem se concentrar em garantir que cesáreas sejam feitas nos casos em que são necessárias, em vez de buscar atingir uma taxa específica de cesáreas. 5. Ainda não estão claros quais são os efeitos das taxas de cesáreas sobre outros desfechos além da mortalidade, tais como morbidade materna e perinatal, desfechos pediátricos e bem-estar social ou psicológico. ‘São necessários mais estudos para entender quais são os efeitos imediatos e em longo prazo da cesárea sobre a saúde’.” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE - OMS. Declaração da OMS sobre Taxas de Cesáreas. Human Reprodution Programme - HRP. 2015 – disponível em https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf;jsessionid=F511500FB3EEFB4F2A5E844B21B6D5A5?sequence=3). 46. Nesse rumo, reputo estar devidamente evidenciado o cenário de descompasso entre as boas práticas recomendadas pela comunidade científica e a política instituída pela lei aguerrida. Por conseguinte, a grande preocupação do Estado deve ser a de garantir atendimento digno e de qualidade à gestante e ao recém-nascido. Por outro lado, o poder público não pode estar comprometido com práticas de saúde desestimuladas pela ciência. É o que fez a lei estadual em questão ao abrir mão da priorização do parto natural. 47. Por outro lado, o § 2º da lei impugnada diz que “nas situações eletivas, é direito da gestante optar pela realização de cesariana”, vale dizer, nos partos programados com antecedência a mulher pode decidir sempre pela cesariana, o que vai ao contrário do que afirma a ciência atual que recomenda preferencialmente o parto natural. 48. Com efeito, está presente o vício de inconstitucionalidade também pela ótica material, pois a lei efetivamente viola o direito à saúde garantido nos artigos 167 e 216 da Constituição do Estado do Paraná. 49. Outrossim, considerando que no decorrer da tramitação desta demanda objetiva expediu-se o Decreto Estadual nº 11.570/2022, é de rigor a extensão, por arrastamento, da declaração de inconstitucionalidade ao ato regulamentar.
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