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Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
1. Trata-se de apelação cível interposta por Marilene Bryk Cordeiro, da sentença (mov. 321.1) que julgou improcedente a ação de indenização proposta em face de Angelo Henrique Rafatti Silva e Outro, condenando-a ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios “arbitrados para cada qual em 15% sobre o valor da causa (atualizado pela média do INPC-IBGE e IGP-DI a partir do ajuizamento da ação) com fundamento no artigo 85, §§1º e 2º do CPC”.Em suas razões recursais (mov. 327.2), a Autora alega, em síntese, que os médicos sempre souberam que o paciente tinha diabetes e que 80% das pessoas com Síndrome de Fournier não evoluem para óbito, situações que, somadas à demora desse diagnóstico, foram cruciais para a morte do “Sr. Jorge”.Discorre que do “depoimento do Dr. EDUARDO BISINELLA, ficou demonstrado a falha no atendimento prestado pelos réus, os quais deram causa ao resultado morte do Sr. Jorge”.Acrescenta que “por conta do falecimento do Sr. Jorge, ficou comprovado o dano moral, que acarretou a saúde da autora, por conta de ter perdido seu marido da forma em que perdeu, assim não resta dúvida quanto a condenação dos réus ao que se refere os danos morais, em favor da autora”.Apresentadas as contrarrazões (movs. 339.1 e 340.1), os autos foram remetidos a este Tribunal.
2. Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso, conforme análise a seguir. Síntese fática/processualAo promover, na data de 26/09/2019, a presente ação de indenização por erro médico em face de Santa Casa de Misericórdia de Ponta Grossa e Angelo Henrique Rafatti Silva, a autora Marilene Bryk Cordeiro discorreu na petição inicial que: em 19/06/2019, “o falecido Sr. Jorge que exercia a função de motorista de Caminhão da empresa Costa Teixeira, fora carregar o caminhão para efetuar uma viagem de sua empregadora, e quando voltou para casa no horário do almoço, começou a sentir uma dor muito forte nas costas com sinais de cor amarelada pelo corpo todo, inclusive os olhos. Mais tarde naquele mesmo dia a autora e seu falecido marido foram até a Santa Casa de Misericórdia de Ponta Grossa onde o ‘de cujus’ possuía plano de saúde, para averiguar o que poderia estar ocasionando sua dor”; o falecido tinha diabetes e isso foi informado quando do atendimento; “já em outro dia, o Sr. Jorge retornou ao Hospital Santa Casa relatando a mesma dor próximo dos rins, onde foram atendidos por outro médico o plantonista Dr. Ângelo Henrique Rafatti Silva, que prestou atendimento com um ar de sarcasmo, dando seu parecer de que rins não doem”; “Quando chegou o resultado dos exames, o Sr. Jorge e a autora foram informados pelo plantonista Dr. Ângelo que estava tudo bem, que não precisava se preocupar, que apenas era uma pequena inflamação simples”; “No dia seguinte o Sr. Jorge com a liberação e aval do médico Dr. Ângelo, foi viajar à trabalho, e mais tarde neste dia o mesmo ligou para a autora dizendo não estar bem, que a injeção de BUSCOPAN aplicada no dia anterior em sua consulta, só tinha acalmado a dor momentaneamente, mas que a mesma havia voltado mais intensa. O Sr. Jorge então como já estava na estrada resolveu cumprir com a viagem, e quando fosse voltar para casa propôs a autora a ambos procurarem um especialista para verificar mais a fundo sobre a situação. Chegando para descarregar o caminhão na cidade Uberaba não aguentou mais de dor, teve de deixar o caminhão para outro motorista da empresa continuar e retornou a cidade de Ponta Grossa”; “No dia 23 de junho de 2019 o Sr. Jorge ao acordar, mal conseguia sentar devido à dor que estava tendo, onde a autora sugeriu ao mesmo retornar ao Hospital Santa Casa para realizar novas consultas, e o Sr. Jorge respondeu que era melhor deixar pra ir na segunda feira em um especialista, pois, o médico plantonista Dr. Ângelo do Hospital Santa Casa sequer examinou o falecido direito, quando lá foram, dizendo que não era nada demais. Após este fato, ambos resolveram ir a outro hospital, onde optaram por ir à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) consultar outro médico, e também tomar alguma medicação mais forte pra aliviar a dor, ao chegar lá o médico que os atendeu foi muito atencioso, e pediu ao Sr. Jorge vários exames”; “Quando chegaram os resultados, o médico falou que ao Sr. Jorge estava com uma infecção, e que iria conversar com outro plantonista para ver qual era a melhor maneira para tratar, onde receitou antibiótico e comentou que se caso não melhorasse era pra voltar consultar. A noite o Sr. Jorge foi piorando, então por conta disso entrou em contrato o Hospital Santa Casa, ora ré, para marcar uma consulta com um urologista na segunda de manhã. No dia 24 de junho de 2019 ao fazer a avaliação médica com o urologista Dr. Eduardo Bissinela que ao ver a situação de dor do Sr. Jorge orientou a interna-lo imediatamente, onde solicitou uma ressonância magnética para ver o que estava acontecendo”; “Na terça feira dia 25 de junho de 2019 após fazer o exame de ressonância, em seu resultado apareceu a infecção, e por conta desta infecção marcaram cirurgia para o Sr. Jorge com urgência para as 18h do mesmo dia, onde o mesmo fez o procedimento que levou 5 horas para retornar ao quarto”; “depois de retornar da cirurgia, já no quarto foi questionado pelo médico Dr. Bissinela do porque deixaram a infecção chegar a este ponto, perguntando para a autora porque e o mesmo não procurou atendimento antes, deixando a infecção chegar neste estado. Foi então que a autora falou ao médico que o seu colega de plantão Dr. Ângelo que o examinou 3 vezes, havia falado que não era nada demais, que não precisavam se preocupar, e então o Dr. Bissinela ficou estarrecido e dizia não acreditar no que estaria ouvindo, pois, após analisar o exame efetuado pela primeira analise feita, disse que já havia constatação de que o Sr. Jorge já estaria com uma infecção grave no sangue, e que agora estava muito mais grave”; o “Sr. Jorge por estar fazendo tudo através do seu plano de saúde e não particular, era mal atendido no Hospital, a autora tinha de ficar indo atrás das equipes de enfermagem para arranjarem a medicação, onde levavam até 4 horas para atender, os curativos encharcavam devido a demora de substituição, e com muita insistência trocavam fazendo pouco caso”; “No dia 04 de julho de 2019 o Sr. Jorge estava nervoso, onde relatou a autora que não aguentava mais, que tinha muita dor, que não iria melhorar, e então não falou mais. À noite quando o mesmo não estava na presença da autora falaram que ele passou muito mal e que tiveram que entuba-lo, que os rins já não estavam mais funcionando, tendo piorado no quadro clinico, e esta piora o fez entrar em coma. Passados alguns dias que o Sr. Jorge estava na UTI em coma, mais especificamente no dia 08 de julho de 2019 a equipe do hospital ligou para a autora relatando seu óbito”. Assim, pugnou pela condenação dos Réus ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 199.600,00.Em subsequente emenda à petição inicial, a Autora pleiteou, ainda, pela condenação dos Réus ao pagamento de danos materiais no valor de R$ 4.210,00 (mov. 12.1).O Hospital/réu ofereceu contestação (mov. 106.1), momento em que arguiu, preliminarmente, sua ilegitimidade passiva. No mais, defendeu que: “já no primeiro atendimento realizado nas dependências do hospital, o paciente foi conduzido com diligência e cuidado, eis que realizou os exames indicados aos sintomas descritos e somente foi liberado após o resultado que não apresentou qualquer anormalidade além do PCR alterado”; “como o próprio Sr. Jorge informou quando da sua anamnese, onde foi relatado que havia sido submetido há pouco tempo a um tratamento de bursite, além de ter um histórico de dor em sua perna esquerda por ser caminhoneiro (prontuários médicos anexos), tal anormalidade, frente os sintomas identificados, não demandavam novos exames ou indicavam qualquer outra providência, além da medicação e diretrizes tomadas”; “embora o Sr. Jorge tenha recebido alta, tanto este quanto a Requerente foram cientificados quanto ao retorno imediato caso as dores permanecessem após a ingestão do medicamento prescrito”; “o paciente em verdade faleceu pois estava acometido de síndrome de Fournier, conforme se verifica do destaque abaixo, extraído da certidão de óbito”; “o grupo de pessoas mais atingidas pela grave síndrome são homens e portadores de diabetes, como foi o caso do paciente”; “os sintomas relatados nos primeiros atendimentos, não se enquadravam nos sintomas da síndrome, não tendo como se prever que estava acometido de tal doença”; “Tanto é verdade que os sintomas não correspondiam a síndrome e não indicavam outro problema que não uma corriqueira infecção urinária, que no atendimento realizado junto a UPA, igualmente de prescreveu medicação para infecção urinária e da mesma forma como no atendimento junto à Primeira Requerida pelo Segundo Requerente, deu-se as indicações de cuidados, retorno, medicação e feitos exames relacionados aos sintomas”. Ao final, concluiu pela improcedência da demanda, ao argumento de estar evidente “a absoluta ausência de qualquer vício, falha ou omissão nos serviços hospitalares prestados pela Primeira Requerida, bem como evidente a absoluta ausência de solidariedade desta com os alegados atendimentos realizados pelo Segundo Requerido e tidos como falhos, conforme alegado pela Requerente”.O Médico/réu também apresentou sua contestação (mov. 107.1), argumentando que: “O paciente chegou com queixas de dor nas costas, região mais alta, com dificuldade pra urinar, o que levava a pensar, primeiramente, em infecção urinária. Assim, foram pedidos exames, e no resultado se constatou que havia um marcador inflamatório inespecífico aumentado, contudo os outros exames estavam normais, inclusive o parcial de urina, descartada assim a principal hipótese de diagnóstico em razão das dores relatadas. Não obstante, o paciente apresentou melhora com a medicação, apresentando exame físico normal, não havendo nenhuma outra queixa que justificasse internação”; “como a queixa era de dor lombar alta, foi feito exame abdominal, pulmonar, cardíaco e exames laboratoriais complementares, reforçando o bom quadro de saúde do paciente, não sendo constatado nada além desse marcador inflamatório que é inespecífico”; “Pela anamnese consta também o relato do paciente de que teria feito tratamento recente para bursite, conforme prontuário anexo à exordial, que por si só, poderia alterar o marcador inflamatório PCR”; “não havia como ser feito diagnóstico a princípio, por ser uma doença que causa dor, inchaço e secreção de região próxima ao ânus e/ou região escrotal e ele não apresentava nenhuma queixa nessas regiões quando da consulta com o 2º Requerido. Foi liberado, orientado, conforme consta em prontuário, que caso apresentasse piora nos sintomas retornasse de imediato ao pronto atendimento”; “Em cerca de 3 (três) à 4 (quatro) dias depois, o Sr. Jorge foi para a UPA, pelo relato da Autora foi dado antibiótico para suspeita de infecção urinária, mas igualmente foi liberado não havendo necessidade de internamento. No dia seguinte consultou com médico especialista urologista, e já apresentava queixas mais específicas do local da bolsa escrotal, que traziam a possibilidade de diagnóstico”; “pelo prontuário médico restou comprovado que o 2º Requerido, ao contrário do alegado pela Autora, informou ao paciente e à Autora que deveriam retornar imediatamente se a dor continuasse”. Finalizou que “Não se verifica em nenhum momento culpa, negligência, imprudência ou imperícia do 2º Requerido, pelo contrário, todo o conjunto probatório colacionado aos autos, como prontuários médicos e os exames realizados corroboram a correta atuação do médico”.Apresentada a réplica (mov. 111.1), o Médico/réu pugnou pela produção da prova pericial (mov. 117.1), ao passo que a Autora e o Hospital/réu requereram as provas oral e pericial (mov. 120.1 e 121.1).Na decisão saneadora (mov. 123.1), o juiz singular afastou a preliminar de ilegitimidade passiva arguida pelo Hospital/réu, reconheceu a incidência do CDC, inverteu o ônus da prova, fixou os pontos controvertidos e deferiu as provas documental, oral e pericial.Juntado aos autos o laudo pericial (mov. 238.1) e os complementares (movs. 257.1 e 268.1), foi realizada a audiência de instrução em 01/06/2023, com a tomada do depoimento pessoal do Médico/réu e a inquirição de dois informantes e uma testemunha (mov. 315).Apresentadas as alegações finais, adveio a sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais.Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso. Responsabilidade civilA controvérsia diz respeito à responsabilidade civil do Médico e do Hospital em que o falecido esposo da Autora foi atendido em algumas oportunidades, mas apenas depois do retorno e internamento em 24/06/2019 acabou por ser diagnosticado com Síndrome de Fournier, o que levou à realização de procedimentos cirúrgicos em 25/06/2019, 01/07/2019 e 08/07/2019, data em que veio a falecer.Considerando a alegação da Autora de que seu marido, quando atendido pelo Médico/réu, não foi devidamente diagnosticado e tratado, cabe registrar que a responsabilidade médica é circunscrita ao dever geral de diligência (obrigação de meio), devendo assim ser empregados todos os esforços no sentido de melhor zelar pelos interesses do paciente, independentemente do sucesso ou insucesso do tratamento.Em outras palavras, o médico não se obriga a curar o paciente, mas a dispender um tratamento, dentro da técnica, satisfatório para o caso.O art. 951 do Código Civil trata da responsabilidade dos profissionais da área de saúde: "Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho".Ainda, em exceção à responsabilidade objetiva que rege as relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor prevê no par. 4º do art. 14 que "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa".Assim, a responsabilidade do médico pelos atendimentos deve ser analisada sob o prisma da responsabilidade subjetiva, de acordo com o art. 186 do Código Civil – “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” –, cujos pressupostos são: a conduta culposa do agente, o nexo causal e o dano.Por outro lado, “A responsabilidade das sociedades empresárias hospitalares por dano causado ao paciente-consumidor pode ser assim sintetizada: (i) as obrigações assumidas diretamente pelo complexo hospitalar limitam-se ao fornecimento de recursos materiais e humanos auxiliares adequados à prestação dos serviços médicos e à supervisão do paciente, hipótese em que a responsabilidade objetiva da instituição (por ato próprio) exsurge somente em decorrência de defeito no serviço prestado (art. 14, caput, do CDC); (ii) os atos técnicos praticados pelos médicos sem vínculo de emprego ou subordinação com o hospital são imputados ao profissional pessoalmente, eximindo-se a entidade hospitalar de qualquer responsabilidade (art. 14, § 4, do CDC), se não concorreu para a ocorrência do dano; (iii) quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional. Nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (arts. 932 e 933 do CC), sendo cabível ao juiz, demonstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC)” (REsp 1145728/MG, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/6/2011, DJe 8/9/2011).Logo, o hospital somente responde pelos serviços médicos se comprovada a culpa do profissional, ante a relação subjetiva de preposição (negligência, imprudência e/ou imperícia - art. 932, III CC), mas, de fato, é objetiva a sua responsabilidade enquanto prestador de serviços, envolvendo internação do paciente, instalações, equipamentos e serviços auxiliares, nos termos do art. 14 do CDC, sendo afastada sempre que comprovada a inexistência de defeito na prestação do serviço ou a culpa exclusiva do consumidor, ou de terceiro, ex vi do art. 14, § 3º, do CDC.Em suma, a responsabilidade do Hospital/réu é objetiva em relação aos serviços hospitalares, mas no tocante aos atos questionados pela Autora, que foram praticados pelo Médico/réu, depende da comprovação do elemento subjetivo do respectivo profissional.Nesse aspecto, percuciente a lição de Sérgio Cavalieri Filho: “Nunca vimos a menor incompatibilidade entre a responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares e a responsabilidade objetiva estabelecida no Código de Defesa do Consumidor, mesmo em face dos enormes riscos de certos tipos de cirurgias e tratamentos, tendo em vista que o hospital só responderá quando o evento decorrer de defeito do serviço. Lembre-se que mesmo na responsabilidade objetiva é indispensável o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. Destarte, ainda que tenha havido insucesso na cirurgia ou outro tratamento, mas se não for possível apontar defeito no serviço prestado, não haverá que se falar em responsabilidade do hospital.Entre as causas que excluem a responsabilidade do prestador de serviços, o Código de Defesa do Consumidor refere-se à inexistência de defeito do serviço – ‘o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste’ (art. 14, § 3º, I) -, de sorte que, para afastar a sua responsabilidade, bastará que o hospital ou médico prove que o evento não decorreu de defeito do serviço, mas sim das condições próprias do paciente ou de fato da natureza”. (in Programa de responsabilidade Civil, 14.ed. – São Paulo: Atlas, 2020, p. 436) No caso dos autos, consta na certidão de óbito que o Sr. Jorge faleceu em decorrência de “infecção de pele e partes moles – sind. Fournier” (mov. 1.10).Nesse passo, o perito judicial, ao analisar os prontuários médicos do falecido, atestou (mov. 238.1 – f. 08/11): “• O Sr. Jorge Luiz Cordeiro era diabético e passou em consulta com o Endocrinologista em 30/05/2019. Nessa consulta, foi anotado que tinha sido diagnosticado com diabete do tipo II recentemente (em 2019), que havia lhe sido prescrito Metformina, mas que ainda não tinha iniciado o uso. Sua glicemia de jejum era de 256mg/dl em exame realizado no dia 25/05/2019. Referia que não desejava usar insulina. Foram prescritas medicações hipoglicemiantes orais, dieta e orientado a retornar em um mês com novos exames.• Jorge foi atendido na Santa Casa de Misericórdia de Ponta Grossa em 19/06/2019, às 15:48 pelo Dr. Ângelo Henrique Refatti (Residente do primeiro ano da Clínica Médica, sob supervisão da Dra. Paola). Referia que estava urinando pouco após ter iniciado o tratamento para diabete (em 30/05/2019), cujo diagnóstico fora feito recentemente. Relatava também, dor em ambos os flancos, irradiada para o epigástrio, há 5 dias. Negava ter disúria. Tinha, também, antecedente de hipertensão arterial. Fazia uso de medicações hipoglicemiantes orais, de anti-hipertensivos e de antiagregante plaquetário. Não fazia uso de insulina.➢ Ao exame físico, foi verificado que estava em bom estado geral, lúcido e orientado, corado, hidratado, afebril, eupneico e possivelmente ictérico (interrogado). Não tinha alterações aos exames cardíaco, pulmonar, do abdome e dos membros inferiores.➢ Foram dadas as hipóteses diagnósticas de infecção urinária e/ou piora da função renal e solicitados exames laboratoriais.➢ Os exames laboratoriais mostraram que não estava ictérico (bilirrubinas normais), sem alterações no exame de urina e a proteína C reativa mostrou resultado bastante alterado (221,10mg/l).➢ Sob supervisão do Dr. Vinícius, às 18:34 de 19/06/2019, o Dr. Ângelo reavaliou o Sr. Jorge, que referia melhora dos sintomas e que realizara tratamento recente para bursite, sendo lhe dada alta com orientação de retorno imediato, se necessário. • No dia 23/06/2019, às 12:27, o Sr. Jorge consultou na Unidade de Pronto Atendimento com o Dr. Rodolfo L. S. Souza, e queixava-se de dor intensa na região do baixo ventre/supra-púbica, iniciada quatro dias antes e com piora progressiva. [...].➢ Ao exame físico, apresentava-se taquicárdico e afebril, com demais dados vitais normais. Ao exame abdominal, apresentava dor à palpação profunda de todo o baixo ventre, principalmente na região inguinal direita, mas não tinha sinais de irritação peritonial.➢ Foi dado o diagnóstico de dor abdominal a esclarecer e solicitados exames complementares, além de ser medicado com cetoprofeno....➢ Às 15:16 de 23/06/2019, o Dr. Rodolfo anotou no prontuário que havia alterações nos exames de proteína C reativa e hemograma, indicando quadro infeccioso. Que o exame de urina mostrava cristais de urato, proteinúria e piúria. Que o Sr. Jorge apresentava diagnóstico recente de diabete do tipo 2. Que não era possível, naquele momento, fechar o diagnóstico sobre o foco infeccioso, pois os exames complementares eram inespecíficos, assim como o exame físico. Foi dada alta para o Sr. Jorge, com orientação de retornar se não houvesse melhora ou se piorasse, sendo fornecida receita de antibióticos e medicações sintomáticas, além da suspensão temporária das medicações hipoglicemiantes. • Em 24/06/2019, às 12:48, Jorge consultou com o Dr. Eduardo Bisinella na Santa Casa de Ponta Grossa. Referia dor no baixo ventre, dificuldade miccional, dor na região perineal e perianal. Referia ser hipertenso e diabético e que fez uso de antibióticos nos dias anteriores.➢ Ao exame físico, apresentava infiltração nas regiões glútea e perianal, sem ponto de flutuação. O abdome era doloroso à palpação do baixo ventre e região inguinal direita. Foram solicitados exames de imagem e laboratoriais e iniciado outro esquema de antibioticoterapia.➢ A ressonância magnética da pelve foi realizada em 24/06/2019 às 12:49 e o laudo foi liberado no dia seguinte.➢ Os exames laboratoriais de 24/06/2019 mostravam proteína C reativa extremamente aumentada (574,45mg/l), discreto aumento da creatinina, hiperglicemia, discreta alteração da coagulação sanguínea (RNI=1,50) e hemograma com discreta leucocitose. • Às 13:44 de 25/06/2019, foi vista pelo Dr. Bisinella a ressonância magnética (cujo laudo definitivo foi liberado às 14:28 de 25/06/2019), que mostrou fístula perianal transesfincteriana à esquerda, com formação de coleção; líquido coletado na região extraperitoneal da pelve, predominantemente à direita; alterações inflamatórias relacionadas à musculatura glútea, obturador à direita e do complexo esfincteriano do ânus (miosite), bem como da gordura perineal e das fossas ísquio-anais e retais. A conclusão do laudo foi de que o conjunto de achados do exame era compatível com gangrena de Fournier.➢ Foi programada a drenagem do abscesso no centro cirúrgico e orientados paciente e familiares sobre a gravidade do caso.➢ Às 18:35 de 25/06/2019, foi realizada pelo Dr. Bisinella a cirurgia de drenagem e desbridamento de gangrena de Fournier, em cuja descrição está relatado que foi feito o desbridamento da pele necrótica escrotal inferior, drenagem do abscesso perineal, dissecando até o canal inguinal bilateral, incisão perianal bilateral com drenagem de secreção purulenta dissecando o espaço pré-sacral, pararretal e glúteo. Foi feita lavagem com soro fisiológico e colocados drenos de Penrose. • Nos dias seguintes à cirurgia, evoluiu com piora do quadro clínico (entre elas, alterações renais e hepáticas) e infeccioso, a despeito da antibioticoterapia que estava recebendo. Neste período, foi acompanhado, além de seu médico assistente, por infectologista e coloproctologista.➢ Em 29/06/2019, foi feita tomografia computadorizada do abdome que mostrou que houve evidente melhora das coleções evidenciadas na ressonância magnética feita antes da cirurgia.➢ A cultura da secreção do abscesso mostrou a bactéria Proteus vulgaris. • Em 01/07/2019, havia áreas de necrose delimitadas na região escrotal, necrose de tecidos subcutâneos e piora da infiltração nas regiões da fossa ilíaca direita e inguinal.➢ No final da tarde de 01/07/2019 (por volta das 18:00), foi realizada nova abordagem cirúrgica, sendo os cirurgiões responsáveis, a Dra. Ediala Kosma Pires de Oliveira Aurichio e o Dr. Eduardo Bisinella. Nesta data, foi realizada colostomia protetora, debridamento de tecido desvitalizado do períneo e drenagem de secreções. Havia extensa área necrótica. Foi feita incisão e drenagem na região inguinal direita, posicionados drenos de Penrose nas regiões inguinal direita e perirretais posteriores bilateralmente.➢ No pós-operatório imediato, foi encaminhado para a UTI devido a múltiplas disfunções orgânicas e sepse.➢ Durante o internamento na UTI, continuou evoluindo com piora do seu quadro clínico, apresentando sinais de complicação do quadro séptico, como desenvolvimento de acidose, hipercalemia e outras alterações laboratoriais, insuficiência renal (seu caso também foi avaliado por Nefrologista), necessidade de ventilação mecânica, necessidade de uso de drogas vasoativas, necessidade de transfusões sanguíneas e troca do esquema de antibióticos. • Em 08/07/2019, havia necrose sacral e infiltração no flanco direito.➢ Em 08/07/2020, por volta das 19:20, foi realizada nova cirurgia, aos cuidados do Dr. Eduardo Bisinella, que consistiu em novo debridamento de tecido necrótico da pele peniana e região perineal e drenagem de secreções, além de laparotomia exploradora. Neste ato cirúrgico, foram evidenciadas diversas áreas necróticas (fáscia da musculatura inguinal, tecido subcutâneo, períneo, pele e subcutâneo da região sacral e parede abdominal da região inguinal até o peritônio). Foi confeccionada “bolsa de Bogotá” no flanco direito e colocado dreno de Penrose na cavidade abdominal.• Evoluiu para óbito às 23:50 de 08/07/2019”. Assim, o perito concluiu que “não era possível o diagnóstico da Síndrome de Fournier pelo quadro clínico-laboratorial apresentado pelo Sr. Jorge nas datas de 19/06/2019 e 23/06/2019. Podem ser pontuados uma série de fatores que contribuíram para o desfecho desfavorável ocorrido (morte), devendo ser destacados a presença de fator de risco (diabete mal controlado), a relutância do paciente em tratar a sua doença (diabete) adequadamente com insulina, o atraso involuntário no diagnóstico (devido à apresentação clínica com pobres comemorativos) e a demora no tempo entre o efetivo diagnóstico e a realização do tratamento cirúrgico (aproximadamente 30 horas entre o momento em que foi realizada a ressonância magnética que mostrou a doença e a realização da primeira cirurgia). Deve-se levar em consideração, porém, que o principal fator que levou o Sr. Jorge ao óbito é a gravidade da doença que apresentou (Síndrome de Fournier), na qual estatisticamente 1 em cada 5 pessoas que a apresentam evoluem para o óbito” (mov. 238.1 – f. 13).Ao responder os quesitos das partes, o expert esclareceu ainda: “o QUESITOS DA PARTE REQUERENTE...2- O primeiro diagnóstico apresentado pelo médico condizia com a realidade do paciente? O paciente foi corretamente avaliado e liberado para sua casa?Na data em questão, não foi chegado a nenhum diagnóstico e o Sr. Jorge foi liberado para casa após referir melhora dos sintomas. O quadro clínico do Sr. Jorge naquele momento era inespecífico, não permitindo o diagnóstico da Síndrome de Fournier.3- O tratamento proposto e realizado pelo médico foi correto e adequado ao diagnóstico apresentado? Em que consistiu tal tratamento?O Sr. Jorge, após referir que havia melhorado, foi orientado a retornar caso houvesse piora. Não foi prescrito tratamento para nenhuma patologia em específico....7- Com base no quadro clínico relatado, se o paciente fosse submetido a outro tratamento a morte poderia ter sido evitada?Os tratamentos realizados foram os recomendados para o caso em questão....9- De posse da documentação médica disponibilizada, o ambiente hospitalar teve influência no quadro apresentado?Não.10- A ciência pelo médico acerca da doença diabetes e demais comorbidades que o paciente era acometido, poderia evitar a piora do seu quadro?Todos os médicos que atenderam o Sr. Jorge estavam cientes de suas doenças prévias.O diabete mal controlado tem forte correlação com o desenvolvimento da Síndrome de Fournier e com a sua evolução desfavorável....13- O médico utilizou todos os meios e conhecimentos aceitos e disponíveis para o atendimento do paciente?Sim, pois na data em que o Dr. Ângelo atendeu o Sr. Jorge, os sinais e sintomas eram inespecíficos, não permitindo o diagnóstico da Síndrome de Fournier.14-É possível estabelecer-se, com certeza, nexo causal entre os atos médicos do médico e os danos do paciente?Este Perito não identificou nenhum ato realizado pelo Dr. Ângelo que tivesse relação om os danos do paciente, pois na data em que atendeu o Sr. Jorge, os sinais e sintomas eram inespecíficos, não permitindo o diagnóstico da Síndrome de Fournier....o QUESITOS DA PARTE REQUERIDA (ÂNGELO HENRIQUE REFATTI SILVA)1- O atendimento inicial prestado pelo 2º Réu, Dr. Angelo, foi realizado de acordo com os protocolos de Pronto Atendimento e prestado de maneira adequada?Sim.2- Com relação ao quadro clínico inicial, juntamente dos exames laboratoriais, existiam sinais suficientes para internação no atendimento inicial prestado pelo 2º Réu, Dr. Angelo?Não.3- Consta no prontuário do atendimento prestado pelo 2° Réu, Dr. Ângelo, que o paciente deveria retornar caso observasse piora no quadro, com retorno imediato, sendo que o paciente não retornou mesmo com a alteração do seu quadro. Poderíamos dessa forma, afirmar que o paciente corroborou com a piora e agravamento do seu quadro? Visto que o Dr. Ângelo frisou ao paciente a necessidade de retorno imediato!O paciente retornou quatro dias depois para consulta em outro Serviço, e mesmo neste outro Serviço, devido ao seu quadro inespecífico, não foi diagnosticado com Síndrome de Fournier, ou seja, mesmo que retornasse imediatamente, provavelmente também não seria diagnosticado com a Síndrome de Fournier.Pelo entendimento deste Perito, portanto, não houve colaboração do paciente com a piora do seu quadro (salvo pelo fato de que era diabético e não realizava o tratamento adequado com insulina)....5- Existiam alterações clínicas e laboratoriais que poderiam firmar o diagnóstico de Gangrena de Fournier no atendimento prestado pelo Dr. Ângelo? Ressalta-se que o 2º Réu prestou somente o atendimento inicial do paciente.Na data em que atendeu o Sr. Jorge, os sinais e sintomas eram inespecíficos, não permitindo o diagnóstico da Síndrome (Gangrena) de Fournier....9- É possível afirmar que o atendimento inicial prestado pelo 2º Réu, Dr. Angelo, possui relação com o resultado morte do paciente? Visto que prestou somente o primeiro atendimento ao paciente.Pela análise deste Perito, o atendimento inicial prestado pelo Dr. Ângelo não teve relação com o resultado morte do Sr. Jorge. o QUESITOS DA PARTE REQUERIDA (SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PONTA GROSSA)...2- O que é Síndrome de Fournier?A Síndrome de Fournier é uma infecção grave da região dos planos teciduais profundos do períneo, que causa necrose dos tecidos locais.3- É uma doença agressiva, com evolução rápida?Sim.4- Existe uma predisposição do paciente diabético a desenvolver a gangrena de Fournier?Sim.5- Em paciente diabéticos, a evolução do caso é mais grave?Sim.6- No momento do atendimento, houve queixa de abaulamento, dor ou hiperemia na região perineal/ bolsa escrotal ou perianal?No atendimento realizado pelo Dr. Ângelo, não....9- Os sinais vitais dos atendimentos do dia 30 de maio e do dia 19 de junho de 2019 eram compatíveis com sepse (febre, taquicardia ou taquipneia)?Não.10- Os exames realizados no dia 19 de junho são diferentes dos exames realizados pelo Sr. Jorge no dia 30 de maio de 2019?Sim.11- Se no dia 19 de junho de 2019 houve solicitação por parte do médico assistente para que o Sr. Jorge retornasse à Requerida Santa Casa de imediato se necessário?Sim, houve....13- Havia contraindicação para a alta do Sr. Jorge no dia 19 de junho de 2019, considerando os resultados de seus exames?Não.14- O antibiótico prescrito é adequado para tratamento da Síndrome de Fournier?Os antibióticos prescritos após a Síndrome ter sido diagnosticada (em 24/06/2019), sim.15- Como é feito o tratamento da Síndrome de Fournier?Tratamento clínico (antibioticoterapia de amplo espectro) e cirúrgico (debridamento dos tecidos necróticos limpeza e drenagem de secreções).16- O tratamento prestado foi adequado (cirurgia + antibioticoterapia?)Sim.17- A cirurgia do Sr. Jorge foi realizada quanto tempo após o diagnóstico?Aproximadamente 30 horas após ter realizado a Ressonância Magnética da Pelve que diagnosticou a Síndrome de Fournier.18- Qual a taxa de mortalidade da Gangrena de Fournier em pacientes diabéticos?Em torno de 20%.19- A doença, apesar do tratamento adequado, pode evoluir para sepse, insuficiência renal e óbito?Sim.20- Se a Requerida Santa Casa disponibilizou estrutura, material e medicamento necessários para os atendimentos do Sr. Jorge?Sim....23- Se durante o período de atendimento e de internação o Sr. Jorge recebeu a assistência adequada por parte da Requerida Santa Casa?Sim.24- Se o Dr. Ângelo agiu de forma adequada ao recomendar a alta do Sr. Jorge quando de seu atendimento?Sim.25- Se é possível relacionar o nexo causal entre os atendimentos realizados pelo Dr. Ângelo face ao falecimento do Sr. Jorge?Não. o QUESITOS DO JUÍZO1- Se houve erro de diagnóstico em algum dos atendimentos dispendidos ao esposo da Autora, no dia 20.06.2019 e subsequentes, pelo Réu Ângelo e, existindo erro, se este agravou a situação do esposo da Autora (ônus de prova da Autora).Pela avaliação deste Perito, na data em que o Sr. Jorge foi atendido pelo Dr. Ângelo, em 19/06/2019, ainda não havia meios de diagnosticar a doença, pois o quadro clínico era inespecífico”. No laudo complementar, ficou ainda mais evidente a inexistência de erro nos atendimentos dispendidos ao cônjuge da Autora pela equipe médica do Hospital/réu, incluindo o Médico/réu (mov. 257.1): “2) Por qual razão, após a melhora do Sr. Jorge, este evoluiu ao óbito?Jorge evoluiu para o óbito devido à gravidade da sua doença (Síndrome de Fournier), tendo o tratamento cirúrgico conseguido levar à melhora parcial e transitória da doença, porém não suficiente para evitar o novo agravamento da patologia e o seu óbito.3) É possível afirmar que caso a cirurgia do Sr. Jorge tivesse sido realizada no dia 24/06/2019, data da realização do exame de ressonância magnética, referido paciente teria se curado da Síndrome de Fournier?Não se pode afirmar com convicção que Jorge não evoluiria para o óbito em decorrência da Síndrome de Fournier caso tivesse sido operado no dia anterior, pois em 24/06/2019 já se encontrava com quadro grave (ou seja, o risco de evolução para o óbito já era grande naquela data), porém, conforme já explicitado no Laudo Pericial de mov. 238.1, quanto mais precoce o tratamento cirúrgico, maior a chance de cura, logo, teria maiores chances de cura caso fosse operado em 24/06/2019”. Levando em conta a responsabilidade objetiva em relação aos serviços hospitalares e o disposto no § 3º do art. 14 do CDC, de que “O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar... que o defeito inexiste”, recaiu sobre o Hospital/réu o ônus de provar a inexistência de defeito no serviço prestado ou a ocorrência de qualquer outra causa de exclusão de responsabilidade, configurando inversão do ônus da prova ope legis. De qualquer modo, o juízo a quo determinou a inversão do ônus da prova no mov. 124.1.Sobre a consequência dessa inversão, valioso é o escólio de Sérgio Cavalieri Filho: “A inversão estabelecida no § 3º dos arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor, específica para a responsabilidade civil do fornecedor, é ope legis, vale dizer, não está na esfera de discricionariedade do juiz. É obrigatória, por força de lei.Conforme já ressaltado, ocorrido o acidente de consumo e havendo a chamada prova de primeira aparência, prova de verossimilhança, decorrente das regras da experiência comum, que permita um juízo de probabilidade, o Código do Consumidor presume o defeito do produto ou serviço, só permitindo ao fornecedor afastar o seu dever de indenizar se provar – ônus seu – que o defeito não existe (arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I). Se cabe ao fornecedor provar que o defeito não existe, então ele é presumido até prova em contrário, havendo aí, portanto, inversão do ônus da prova ope legis, e não ope iudicis.(...)Tenha-se em conta, todavia, que a inversão do ônus da prova ope legis não é uma varinha de condão capaz de transformar, num passe de mágica, o irreal em real. O consumidor não fica dispensado de produzir prova em juízo. Embora objetiva a responsabilidade do fornecedor, é indispensável para configurá-la a prova do fato do produto ou do serviço, isto é, da efetiva ocorrência de um acidente de consumo, ônus do consumidor. O que a lei inverte (inversão ope legis), repita-se, é a prova quanto ao defeito do produto ou do serviço. Ocorrido o acidente de consumo (fato do produto ou serviço) e havendo a chamada prova de primeira aparência (ônus do consumidor), prova de verossimilhança que permita um juízo de probabilidade, o CDC presume o defeito do produto, cabendo ao fornecedor provar (ônus seu) que o defeito não existe para afastar o seu dever de indenizar.Não basta, portanto, ao consumidor simplesmente alegar a existência de um acidente de consumo sem fazer prova de sua ocorrência, mesmo porque não cabe ao fornecedor e nem a ninguém fazer prova de fato negativo. Precisa e inquestionável a observação de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino neste ponto: ‘Deve ficar claro que o ônus de provar a ocorrência dos danos e da sua relação de causalidade com determinado produto ou serviço é do consumidor. Em relação a esses dois pressupostos da responsabilidade civil do fornecedor (dano e nexo causal), não houve alteração da norma de distribuição do encargo probatório do art. 333 do CPC’ (Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor, 2. Ed., Saraiva, 2007, p. 344)”. (in Programa de responsabilidade Civil, 14.ed. – São Paulo: Atlas, 2020, p. 537) Independentemente da inversão do ônus da prova ope legis e ope iudicis, permanece sendo da Autora a incumbência de provar os danos e o respectivo nexo de causalidade com os serviços médicos e hospitalares prestados pelos Réus.E não há ressalva alguma na perícia quanto às condições do centro cirúrgico do Hospital/réu e/ou às cirurgias realizadas, tendo o perito apenas mencionado que houve “demora no tempo entre o efetivo diagnóstico e a realização do tratamento cirúrgico (aproximadamente 30 horas entre o momento em que foi realizada a ressonância magnética que mostrou a doença e a realização da primeira cirurgia)”. Todavia, ainda assim, o expert atestou clara e expressamente não ser possível “afirmar com convicção que Jorge não evoluiria para o óbito em decorrência da Síndrome de Fournier caso tivesse sido operado no dia anterior, pois em 24/06/2019”.Não houve qualquer comprovação de que os médicos e funcionários do Hospital/Réu tenham agido com descaso ou de maneira desrespeitosa, como insinuado na petição inicial.Assim, não foram falhos ou defeituosos os atendimentos médicos que o Sr. Jorge recebeu nas dependências da Santa Casa de Misericórdia de Ponta Grossa, seja pelo Médico/réu em 19/06/2019, seja pelos demais membros da equipe médica após o internamento em 24/06/2019.A prova produzida comprova que o fato de o falecido ser portador de hipertensão e diabetes tipo II, a qual não estava controlada, foi decisivo no agravamento da sua doença, que é de difícil diagnóstico e, por si só, bastante grave.A única testemunha ouvida em juízo, Sr. EDUARDO BISINELLA, é médico e também prestou atendimento ao falecido, tendo afirmado categoricamente que o resultado óbito decorreu da Síndrome de Founier, que apresenta até 50% de taxa de óbito, independente do tratamento. Ressaltou que a diabetes é o principal fator de risco em casos como o do de cujus. Também relatou não acreditar ter sido determinante o período decorrido entre o diagnóstico e o primeiro procedimento cirúrgico, pois o paciente estava monitorado e medicado e o quadro do Sr. Jorge era estável.Com efeito, nada nos autos aponta para a prática de conduta culposa dos profissionais médicos que atenderam o falecido no Hospital/réu, seja antes, durante ou depois do diagnóstico de Síndrome de Fournier, cabendo reiterar que a responsabilidade médica em questionamento é subjetiva, com obrigação de meio e não de resultado.Nesse contexto, embora não se desconheça a dor e o sofrimento suportados pela esposa, impositivo reconhecer que ante a ausência de falha nos serviços médico/hospitalar prestados e de conduta culposa do Médico/réu em relação aos danos invocados, não há que se falar em obrigação de indenizar.A propósito, mutatis mutandis: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SUPOSTO ERRO MÉDICO DEVIDO À DEMORA NO DIAGNÓSTICO DE APENDICITE AGUDA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECURSO INTERPOSTO PELA AUTORA.1. AGRAVOS RETIDOS AVIADOS POR AMBOS OS RÉUS. AUSÊNCIA DE PEDIDO ESPECÍFICO PARA ANÁLISE DOS RECURSOS. DESCUMPRIMENTO DO ART. 523, “CAPUT” E §1º, DO CPC/1973, APLICÁVEL AO CASO. RECURSOS NÃO CONHECIDOS.2. RESPONSABILIDADE DO HOSPITAL PELOS ATOS MÉDICOS SUJEITA À COMPROVAÇÃO DA CONDUTA CULPOSA DOS SEUS PREPOSTOS. ART. 14, “CAPUT” E §4º, DO CDC. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA DOS MÉDICOS. OBRIGAÇÃO DE MEIO. ATENDIMENTO DA REQUERENTE NO PRONTO-SOCORRO DO HOSPITAL RÉU. DEMANDANTE QUE NÃO APRESENTOU SINTOMAS CLÁSSICOS DE APENDICITE AGUDA. DIAGNÓSTICO DIFICULTADO PELA EXISTÊNCIA DE VARIAÇÃO ANATÔMICA DA POSIÇÃO DO APÊNDICE (RETROCECAL). PROVA PERICIAL QUE DEMONSTROU QUE SE TRATAVA DE CASO DE DIFÍCIL DIAGNÓSTICO E INVESTIGAÇÃO. CONDUTAS MÉDICAS ADEQUADAS DIANTE DO QUADRO DE SAÚDE DA PACIENTE. INEXISTÊNCIA DE ERRO MÉDICO. AUSÊNCIA DE FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS HOSPITALARES. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA.3. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E DESPROVIDA”. (TJPR - 10ª Câmara Cível - 0034448-24.2013.8.16.0001 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR GUILHERME FREIRE DE BARROS TEIXEIRA - J. 06.05.2021) “APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. CIRURGIA DE CATARATA ENDOFTALMITE. AUSÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. RESPONSABILIDADE MÉDICA. ART. 186 DO CÓDIGO CIVIL. São pressupostos da responsabilidade civil subjetiva: a conduta culposa do agente, o nexo causal e o dano, e a ausência de quaisquer destes elementos afasta o dever de indenizar. RESPONSABILIDADE CIVIL DA CLÍNICA. É cediço que os hospitais e clínicas, na qualidade de prestadores de serviços, respondem independente de culpa pelo serviço defeituoso prestado ou posto à disposição do consumidor, responsabilidade que é afastada sempre que comprovada a inexistência de defeito ou a culpa exclusiva do consumidor, ou de terceiro, ex vi do art. 14, § 3º do CDC. DEVER DE INDENIZAR. INOCORRÊNCIA. Não estando comprovada nos autos a imperícia dos réus, quando da realização da cirurgia oftalmológica no autor, inviável a sua responsabilização pela endoftalmite adquirida no pós-operatório, mormente porque a intercorrência é uma possibilidade admitida pela doutrina médica, ainda que adotado tratamento correto. Erro na conduta médica não demonstrado, ônus que competia à parte autora. Sentença de improcedência mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA”. (Apelação Cível, Nº 70079387726, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em: 13.12.2018) Por conseguinte, como a responsabilização do Hospital está condicionada a verificação de culpa do profissional médico e, no presente caso, as provas constantes nos autos indicam que a conduta do médico foi correta e não houve negligência, imprudência ou imperícia, conclui-se pelo desprovimento da apelação interposta pela Autora.Destarte, uma vez que ausente o dever de indenizar, a sentença de improcedência deve ser mantida, com a majoração dos honorários advocatícios devidos pela Autora para 20% sobre o valor atualizado da causa (R$ 203.810,00 em 26/09/2019), nos termos do artigo 85, 11 do CPC, ressalvado o benefício da assistência judiciária concedido a ela. 3. Diante do exposto, voto por conhecer e negar provimento à Apelação interposta pela Autora, nos termos da fundamentação.
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