Íntegra
do Acórdão
Ocultar
Acórdão
Atenção: O texto abaixo representa a transcrição de Acórdão. Eventuais imagens serão suprimidas.
I. Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, em face dos itens 5 e 6 da Orientação nº 002/2022, expedida pela Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Paraná, os quais dispõem sobre a atuação da Polícia Judiciária Militar na hipótese de coexistência de procedimentos investigatórios instaurados. Aduziu, em síntese, o autor que a presente ação direta de inconstitucionalidade constitui o instrumento adequado para impugnar os itens 5 e 6 da Orientação nº 002/2022, expedida pelo Corregedor-Geral da Polícia Militar do Estado do Paraná, uma vez que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite o controle abstrato de constitucionalidade sobre atos normativos de natureza regulamentar que contenham conteúdo jurídico-normativo de caráter primário, como é o caso do ato ora impugnado, o qual detém carga normativa e ostenta os atributos da generalidade, abstração e impessoalidade. Sustentou que os dispositivos impugnados violam a competência constitucionalmente atribuída à Polícia Civil para a investigação de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, disposta no artigo 125, §4º da Constituição Federal. Arguiu, para tanto, que tal afronta decorre da determinação contida nos itens questionados, que vedam o acesso da Polícia Civil aos elementos de investigação e aos suspeitos militares envolvidos, no procedimento investigatório militar, sob a justificativa de que a competência investigatória seria atribuída à Polícia Judiciária Militar, em detrimento da Polícia Civil. Destacou, ainda, que o artigo 125, §4º, da Constituição Federal confere à Justiça Militar competência para processar e julgar os militares dos Estados nos crimes militares definidos em lei, ressalvando, todavia, a competência do tribunal do júri nos casos em que a vítima seja civil; assim, na hipótese de um militar cometer crime de competência do júri contra um civil, a investigação recai exclusivamente sobre a Polícia Civil. Afirmou não haver irregularidade na concomitância entre o inquérito policial militar e o civil, conforme jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse contexto, concluiu que, sendo atribuição da Polícia Civil investigar crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, a autoridade militar responsável pelo inquérito paralelo não pode obstaculizar o acesso daquela aos objetos apreendidos, tampouco à oitiva de suspeitos. Por fim, pleiteia a procedência do pedido, para que seja declarada a nulidade parcial dos itens 5 e 6 da Orientação n° 002/2022, emitida pela Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Paraná, de modo que sejam excluídas de seu campo de aplicação as investigações referentes aos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, para o fim de adequar os dispositivos impugnados à regra disposta no artigo 125, §4º, da Constituição Federal. O Corregedor-Geral da Polícia Militar (mov. 21.2) suscitou a preliminar de inadequação da via eleita para impugnação dos itens 5 e 6 da Orientação Normativa nº 002/2022, sob o argumento de que referida norma não possui como fundamento de validade o texto constitucional, mas sim as disposições constantes no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar. Assim, eventual vício de legalidade deve ser aferido por meio do controle de compatibilidade vertical, por se tratar de hipótese de ilegalidade, e não de inconstitucionalidade. Asseverou, ainda, que, embora tanto o Código Penal Militar quanto a Constituição Federal atribuam ao Tribunal do Júri a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de pessoa civil, essa atribuição não se confunde com a competência para a fase investigativa de tais delitos. Nesse sentido, aduziu que compete à autoridade de polícia judiciária militar a apuração dos mencionados crimes, com o posterior encaminhamento dos elementos informativos ao Ministério Público, a quem caberá avaliar a suficiência dos indícios coletados para eventual oferecimento de denúncia. Sustentou, outrossim, que, na hipótese de militar estadual, no exercício de sua função, vir a praticar crime doloso contra civil, a apuração deverá ocorrer por meio de inquérito policial militar, tendo em vista a tipificação de tais condutas no Código Penal Militar. Diante disso, concluiu pela inadmissibilidade da presente demanda, em sede preliminar, e, no mérito, pugnou pela improcedência do pedido. O Secretário de Segurança Pública do Estado manifestou-se (mov. 24) no sentido de que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis devem ser considerados crimes militares, e que o fato de serem submetidos ao julgamento pelo Tribunal do Júri não os descaracteriza como crimes militares, razão pela qual a atribuição para investigá-los recai sobre a autoridade policial militar. Ressaltou que os itens aguerridos não se contrapõem à competência do Tribunal do Júri para julgar crimes militares dolosos contra a vida de civis e que se limitam apenas a orientar os procedimentos relacionados ao inquérito policial militar, em conformidade com o disposto no artigo 9º do Decreto-Lei nº 1.002/1969. Afirmou, ainda, que a presente medida não se presta à discussão da constitucionalidade do texto, tendo em vista que este reflete tão somente o conteúdo da legislação federal e da Constituição Federal. Em razão disso, sustentou a ilegitimidade ativa do Procurador-Geral de Justiça para a propositura da presente ação direta de inconstitucionalidade. Concluiu, por fim, pela constitucionalidade dos itens questionados. O Governador do Estado do Paraná e a Procuradoria-Geral do Estado pronunciaram-se (mov. 25) pela improcedência da demanda. Alegaram, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do Procurador-Geral de Justiça do Paraná para propor a presente, sustentando que, nos termos do art. 111, inciso II, da Constituição do Estado do Paraná, a legitimidade constitucional atribuída ao Procurador-Geral de Justiça limita-se à propositura de ação direta de inconstitucionalidade de atos normativos que afrontem exclusivamente a Constituição Estadual, não abrangendo atos que contrariem a Constituição Federal. Ainda em preliminar, arguiram a incompetência absoluta do Poder Judiciário do Estado do Paraná, ao entenderem que, sendo a norma impugnada alegadamente inconstitucional por violar o disposto no art. 125, §4º, da Constituição Federal, a competência para análise da constitucionalidade do ato é do Supremo Tribunal Federal, conforme prevê o art. 102, inciso I, alínea "a", da Constituição Federal. Assim, pugnaram pela extinção do feito sem resolução de mérito, em razão da ilegitimidade ativa do Procurador-Geral de Justiça do Paraná e da incompetência absoluta do Poder Judiciário do Estado do Paraná. No mérito, defenderam que a norma em questão não desdobra os limites constitucionais, pois compete à Corregedoria-Geral da Polícia Militar “expedir orientações sobre a aplicação da legislação relativa à apuração das infrações criminais e disciplinares (...)”. No tocante ao item 5 da Orientação Normativa impugnada, asseveraram que ele se destina a assegurar a integridade probatória do inquérito policial militar, na medida que a vinculação de bens aprendidos ao inquérito é indispensável para o cumprimento legal do disposto no art. 23 do CPPM. Alegaram que o item 6 cinge-se a preservar a competência da Justiça Militar em caso de existência de crime doloso contra a vida de civil praticado por militar, e, sendo assim, não há afronta ao disposto no art. 125, §4º, da Constituição Federal. Ao final, pugnaram pela improcedência da demanda. Por fim, a Procuradoria-Geral de Justiça emitiu parecer ratificando integralmente a inicial, requerendo ao final a procedência do pedido.
II. A controvérsia diz respeito à compatibilidade vertical dos itens 5 e 6 da Orientação n0 002/2022, da Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Paraná, alusivos à competência investigatória da Polícia Judiciária Militar em crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, com o disposto no art. 125 §4º, da Constituição Federal. É o teor dos dispositivos: “5. Na hipótese de simultaneidade de procedimentos investigativos instaurados (Inquérito Policial Militar e Inquérito Policial) e havendo a solicitação para entrega ou apresentação de instrumentos ou objetos relativos ao fato apurado, deverá ser comunicada ao solicitante a impossibilidade da pretendida apresentação, face estarem os objetos e instrumentos já apreendidos, no âmbito de IPM, havendo obrigatoriedade de sua remessa à Justiça Militar, com base no Art.23 do CPPM; 6. Procedimento análogo deverá ser observado pela Autoridade de Polícia Judiciaria Militar quando, na concomitância de inquéritos, houver solicitação para apresentação de militares estaduais suspeitos, investigados ou indiciados, informando-se à autoridade solicitante que não será possível atender, tendo em vista o disposto no Art. 82 § 2º do CPPM (extensão do foro militar), e por já se encontrarem os militares sob investigação em IPM“. À primeira vista, a demanda parece desafiar a vedação ao controle de constitucionalidade, pela via direta, de atos subalternos e meramente regulamentares. O diploma impugnado, expedido pela Corregedoria-Geral da PMPR, não ostenta o predicado de lei em sentido formal, tratando-se de ato de natureza administrativa. Contudo, infere-se ser o ato em questão dotado de abstração, generalidade, autonomia e impessoalidade, uma vez que disciplina a atuação dos militares, impondo lhes obrigações novas e produzindo efeitos sobre todos os procedimentos investigatórios, sejam aqueles já existentes ou aqueles que venham a ser instaurados.
Quer dizer, à Orientação expedida pela Corregedoria-Geral da Polícia, se pode conferir o status de norma jurídica primária, pois não decorre diretamente de outra noma legal. Ainda que se preste a regulamentar a legislação penal militar, a norma estabelece obrigação/vedação ali não prevista. Esse foi o raciocínio exposto pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6466/DF para admitir a fiscalização direta sobre uma Portaria Interministerial. São as palavras do Ministro Edson Fachin: “É também da jurisprudência, no entanto, que os atos normativos federais que se revestem de conteúdo regulatório dotado de abstração, generalidade e impessoalidade, possuindo alta densidade normativa, estão sujeitos ao controle de constitucionalidade abstrato. Assim, quando do julgamento da ADI nº 5.543, cujo objeto envolvia a restrição de doação de sangue aos chamados ‘grupos de risco’ (consubstanciando-se na Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, e na Resolução da Diretoria Colegiada nº 34/2014 da Anvisa), fiz observar que as normas regulamentares poderiam constituir-se como objeto das ações de controle, não apenas por sua natureza jurídica, mas, sobretudo, porque a discussão da questão constitucional que fora ali posta adquiria relevo em face do núcleo mais íntimo do princípio constitucional da dignidade humana. Ao se criarem, naquele conjunto específico de regras, classificações de caráter discriminatório, o agir administrativo oferece direta violação ao texto constitucional, exigindo do Tribunal uma postura menos deferente com as chamadas delegações ao Poder Executivo. No presente caso, o pedido formulado na petição inicial diz respeito, por um lado, à existência de interpretações possíveis do art. 4º, §2º do Estatuto do Desarmamento que se encontrariam em desalinho com a Constituição da República; e, por outro, à dedução da inconstitucionalidade de um corpo de normas regulamentares que, em sua abstração, generalidade, autonomia e impessoalidade, conflitam com a interpretação correta defendida. Constato, assim, a aptidão das normas vergastadas a sofrer a fiscalização abstrata” - (ADI 6466, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 04-09-2023 PUBLIC 05-09-2023). Entendimento semelhante foi adotado pelo STF na ADI 3.731-MC/PI: “(...) a Resolução nº 12.000-001 GS/2005 reveste-se de características tais que lhe autorizam impugnação por meio de ação direta de inconstitucionalidade, pois: a) não tira fundamento de validade de nenhuma lei; b) consubstancia ato administrativo subalterno, com pretensões de autonomia; e c) guarda caráter normativo de eficácia geral e abstrata”- (ADI 3731 MC, Relator(a): CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 29-08-2007, DJe-121 DIVULG 10-10-2007 PUBLIC 11-10-2007 DJ 11-10-2007 PP-00038 EMENT VOL-02293-01 PP-00043 RTJ VOL-00202-03 PP-01090). Aliado a isso, é certo que, a despeito da denominação de “Orientação”, o ato em questão prescreve deveres para seus destinatários. Bem-postas, no tópico, as palavras do autor: “O caráter impositivo anunciado pelo preâmbulo é confirmado pelos verbos empregados ao longo do texto (v.g., ‘...deverão adotar as seguintes providências:...’ (item 1); ‘...deverá ser lavrado o competente Auto de Prisão em Flagrante Delito...’ (item 3); ‘...deverá ser comunicada ao solicitante a impossibilidade...’ (item 5). Às características semânticas adotadas se agrega o perfil constitucional da Polícia Militar, que, segundo a dicção do art. 42 da Carta Magna se organiza com base na hierarquia e disciplina. Em outras palavras, ainda que se tratasse de genuína recomendação, a cultura hierárquica da Polícia Militar conferiria carga impositiva ao ato, pois as máximas de experiência permitem concluir-se que a orientação do Corregedor seria cumprida pelas demais instâncias da corporação”. Identifico, pois, no ato impugnado feição de regulamentação normativa autônoma, o que torna possível o controle de constitucionalidade pela via direta.
Indo além, a Procuradoria-Geral do Estado suscitou, em sede de preliminar, o não cabimento de ação direta para a impugnação da Orientação n0 002/2022, tendo em vista que a inconstitucionalidade alegada se fundamenta em dispositivo da Constituição Federal, e o objeto de parâmetro para o controle concentrado pelos Tribunais de Justiça Estaduais deve se restringir à Constituição do respectivo Estado. Sem razão. É cediço que os Tribunais de Justiça, em regra, detêm competência para julgamento, na via de controle concentrado, apenas das ações de inconstitucionalidade que manifestem como parâmetro de controle a Constituição Estadual. Nesse sentido, é a regra insculpida no artigo 101, VII, “f”, da Constituição do Estado do Paraná: “Art. 101. Compete privativamente ao Tribunal de Justiça, através de seus órgãos: (...) VII - processar e julgar, originariamente:(...) f) as ações diretas de inconstitucionalidade e de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais contestados em face desta Constituição e a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional;” Não obstante, é atribuído aos Tribunais Estaduais conhecer e julgar pela via abstrata ações cujo parâmetro sejam normas de reprodução obrigatórias contidas na Constituição Federal. Isso porque as referidas normas inserem-se automaticamente no ordenamento constitucional do ente federativo, não necessitando estar explícitas na Carta Estadual. Sobre esse tema, a Suprema Corte já se manifestou. Vejamos: "AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CONSTITUCIONAL. CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. ATO NORMATIVO DE CONCRETO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. IMPUGNAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DE NORMA ESTADUAL NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PARÂMETRO: CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PRECEDENTES.AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO" - (STF - RE 656160 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 05/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-158 DIVULG 15-08-2014 PUBLIC 18-08-2014)"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO CONHECIDOS COMO AGRAVO INTERNO EM RECLAMAÇÃO. REGIME DA LEI 8.038/90 E CPC/73. REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL.PARÂMETRO DE CONTROLE. ADI 409. 1. Ausente relação de aderência estrita entre acórdão de Tribunal de Justiça que julgou procedente representação de inconstitucionalidade, com parâmetro em normas da Constituição Estadual reproduzidas da Constituição Federal, e o julgado na ADI 409, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. 2. O Supremo Tribunal Federal firmou sua orientação no sentido de que o controle de constitucionalidade por via de ação direta, quando exercido pelos Tribunais de Justiça, deve limitar-se a examinar a validade das leis à luz da Constituição do Estado, o que não impede que a respectiva decisão seja embasada em norma constitucional federal que seja de reprodução obrigatória pelos Estados-membros.3. Embargos de declaração conhecidos como agravo interno, a que se nega provimento" - (STF - Rcl 6344 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 30/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-173 DIVULG 04-08-2017 PUBLIC 07-08-2017) - Destaquei Verifica-se que o autor, de fato, indicou como parâmetro dispositivo da Carta Magna. Todavia, nota-se que referido dispositivo versa sobre repartição de competência, sendo, portanto, de reprodução compulsória pelas ordens constitucionais dos Estados-Membros, razão pela qual se desvela legítimo para ostentar a condição de parâmetro de controle nesta demanda objetiva. Inclusive, em caso análogo a este, a Suprema Corte assim entendeu: “EMENTA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO. DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL. PROCURADOR ESTADUAL. LEGITIMIDADE PARA RECORRER. PRECEDENTE. RE 459.689-AGR-SP, PLENO. REL. MIN. GILMAR MENDES. MÉRITO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO ART. 125, §§ 2º E 4º, DA LEI MAIOR. NÃO OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PROCESSUAL. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS LOCAIS. NORMAS DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. NORMA IMPUGNADA QUE VERSA SOBRE MATÉRIA INQUISITORIAL MILITAR RELATIVA A CRIMES DOLOSOS PRATICADOS POR MILITAR CONTRA VIDA DE CIVIL. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. TRIBUNAL DO JÚRI. CONSONÂNCIA DO ENTENDIMENTO ADOTADO NO ACÓRDÃO RECORRIDO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. OMISSÃO. OCORRÊNCIA. DECLARATÓRIOS ACOLHIDOS, SEM EFEITOS INFRINGENTES, PARA SANAR OMISSÃO. 1. Detectada omissão quanto à análise dos dispositivos constitucionais indicados nas razões recursais, bem como sobre a tese da legitimidade da Procuradora-Geral para manejar recursos em defesa do ato impugnado em ação de controle normativo abstrato, de rigor o acolhimento dos aclaratórios. 2. Ao julgamento dos embargos de divergência no RE 459.689-AGR-SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 18.5.2021, o Plenário desta Suprema Corte, por unanimidade, nos termos do voto do relator, decidiu acolher e dar provimento aos embargos para conhecer do recurso extraordinário, assentando que “o Procurador dispõe de legitimidade para interpor recurso extraordinário contra acórdão de Tribunal de Justiça proferido em representação de inconstitucionalidade em defesa de lei ou ato normativo estadual ou municipal”. 3. Esta Suprema Corte já se pronunciou pela constitucionalidade do exercício, pelos Tribunais de Justiça, do controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos locais em face da Constituição da República, quando se tratar de normas de reprodução obrigatória pelos Estados-Membros. 4. O entendimento adotado no acórdão recorrido não diverge da jurisprudência firmada neste Supremo Tribunal Federal, no sentido da competência privativa da União para legislar sobre direito processual, bem como da competência do Tribunal do Júri para processar e julgar crimes dolosos praticados por militar contra a vida de civil. 5. Embargos de declaração acolhidos para assentar a legitimidade recursal da Procuradora-Geral do Estado de São Paulo e acrescentar a fundamentação acerca da violação do art. 125, §§ 2º e 4º, da Lei Maior” - (ARE 1224544 AgR-ED, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 09-05-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-090 DIVULG 10-05-2022 PUBLIC 11-05-2022) - Destaquei. Ademais, consta na Constituição do Estado do Paraná, no art. 108, § 2º, redação idêntica à do art. 125, § 4º da Constituição Federal. Vejamos: Constituição Federal“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.(...) § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.Constituição Estadual Art. 108. A Justiça Militar é constituída, em primeiro grau, pelos Conselhos de Justiça e, em segundo, pelo Tribunal de Justiça ou por Tribunal de Justiça Militar.(...) § 2º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares do Estado nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri, quando a vítima for civil, cabendo ao Tribunal de Justiça decidir sobre a perda do posto ou da patente dos oficiais e da graduação dos praças”.
Constata-se, desse modo, que a Constituição Estadual reproduz integralmente o texto da Constituição Federal, o que fulmina a preliminar aventada. Faço ver que também foi aventada pela Procuradoria-Geral do Estado preliminar de ilegitimidade ativa do Procurador-Geral de Justiça, ao argumento de que a legitimidade deste estaria restrita a atos normativos contestados em face da Constituição Estadual. Tenho que a alegação há de ser entendida, em verdade, como uma preliminar de inadequação da via eleita; assim há de ser porque a legitimidade ativa do Procurador-Geral de Justiça para propor ação direta de inconstitucionalidade está literalmente expressa no artigo 111, inciso II, da Carta Estadual. Vejamos: "Art. 111. São partes legítimas para propor a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal, em face desta Constituição:
(...)II - o Procurador-Geral de Justiça e o Procurador Geral do Estado". O que diz a Procuradoria-Geral do Estado, parece-nos, é que o processo foi manejado em desacordo com suas hipóteses de cabimento, situação que não se traduz em ilegitimidade do Procurador-Geral de Justiça. Nesse cenário, é certo que a questão da adequação do parâmetro de controle nesta ADI já foi analisada na questão preliminar anterior. Afastada as preliminares, passa-se à análise do mérito. Cinge-se a controvérsia à compatibilidade vertical dos itens 5 e 6 da Orientação n0 002/2022 da Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Paraná naquilo em que tocam a competência investigatória da Polícia Judiciária Militar em crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, conforme o disposto no art. 125 §4º da Constituição Federal. Segundo a argumentação delineada pelo autor na peça inicial, os dispositivos impugnados ostentariam vicio material de inconstitucionalidade por violarem a competência da Polícia Civil para investigar crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis. A norma estaria em descompasso com a Constituição ao instituir que, na hipótese de concomitância de procedimentos investigativos instaurados, eventual solicitação da polícia civil para entrega de objetos ou apresentação de suspeitos militares vinculados ao Inquérito Policial Militar deve ser indeferida, por se tratar de competência da polícia judiciária militar. Em contrapartida, a Procuradoria Geral do Estado argumentou que não há afronta ao dispositivo constitucional apontado, vez que a norma se destina a regulamentar regra legal contida no art. 82 do Código Penal Militar, a fim de preservar a competência da Justiça Militar. Pois bem. Inicialmente, convém registrar que, desde o advento da Lei nº 9.299/96, os crimes previstos no art. 9º do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são de competência da Justiça Comum. Vejamos: “Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: § 1 Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri”. – Destaquei. Sabe-se que o pano de fundo da alteração legislativa foi a repercussão gerada por eventos sangrentos envolvendo militares na primeira metade dos anos 90 (Carandiru, Candelária, Vigário Geral etc.). A Lei 9.299/96, popularmente conhecida como “Lei Rambo”, foi uma resposta às preocupações advindas de tais acontecimentos, transferindo a competência para julgar esses crimes para o tribunal do júri. Sobre o tema, é o escólio de Guilherme Souza Nucci: “(...) a partir de 1996, alterou-se o conteúdo do art. 9º do CPM, para excluir da competência da Justiça Militar o delito doloso contra a vida de civil, mesmo quando cometido no exercício da função militar. O enfoque voltou-se, basicamente, ao policial militar, quando integrava grupo de extermínio ou agia como justiceiro. Diante disso, os crimes previstos no Código Penal Militar – dolosos contra a vida – são: homicídio (art. 205), participação em suicídio (art. 207) e genocídio (art. 208), embora o forte dos fatos reais concentre-se no homicídio”- (Código Penal Militar Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 41). Posteriormente, a EC nº 45/2004 constitucionalizou referida alteração de competência, sacramentando o júri popular como sede natural de julgamento desses crimes (artigo 125, §4º). Aqui, inexiste controvérsia. O ponto nodal diz respeito à sede adequada para a investigação de tais delitos. As manifestações trazidas pela Corregedoria da Polícia Militar, pela Secretaria de Estado da Segurança Pública e pela Procuradoria-Geral do Estado defendem remanescer a cargo da Justiça Castrense a condução do inquérito, com posterior remessa à Justiça Comum. Invocam o disposto no artigo 82, §2º, do Código de Processo Penal Militar, que assim enuncia: “Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:(...) § 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticado contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”. Segundo argumentam, à luz de tal disposição, a Justiça Militar seria competente para realizar a investigação e, após sua conclusão, remetê-la às Justiça Comum. Os dispositivos impugnados parecem ecoar tal entendimento. Contudo, tenho que a leitura mais leal do Texto Constitucional é a que confere à polícia judiciária civil os poderes investigativos, sem prejuízo de que a militar conduza, em paralelo, sua própria apuração em relação a crime militar praticado no mesmo contexto fático. Reiteradas vezes, o Superior Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido de ser da Justiça Comum a competência para a investigação de tais delitos, dando inclusive interpretação conforme ao artigo 82, §2º, do CPPM. Vejamos: “PROCESSUAL PENAL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. ADMISSIBILIDADE DE CONFLITO EM FASE PRÉ-PROCESSUAL. COMPETÊNCIA JUÍZO DA CAUSA. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS. I - É assente na jurisprudência a admissibilidade de conflito de competência em fase inquisitorial. II - Embora previsto no artigo 125, §4º, da CF, ser da competência da justiça comum processar e julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militar em face de civil, nota-se que inquéritos policiais persistem no juízo castrense indevidamente. III - A interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 82, §2º, do Código de Processo Penal Militar compele a remessa imediata dos autos de inquérito policial quando em trâmite sob o crivo da justiça militar, assim que constatada a possibilidade de prática de crime doloso contra a vida praticado por militar em face de civil. IV - Aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juiz de Direito da Vara do Júri e das Execuções Criminais da Comarca de Osasco/SP” - (CC 144.919, Relator o Ministro Felix Fischer, Dje de 1º.7.2016). “PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INVESTIGAÇÃO DE SUPOSTO CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. MILITAR CONTRA CIVIL. ART. 125, § 4º, DA CF. ART. 9º DO CÓDIGO PENAL MILITAR. ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. INQUÉRITO CONDUZIDO PELA POLICIAL CIVIL E DUPLICIDADE DE APURAÇÃO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. RECURSO IMPROVIDO.1. A competência da Justiça Militar tem previsão constitucional, ressalvando-se a competência do Tribunal do Júri nos casos em que a vítima for civil, conforme art. 125, § 4º, da CF. Dessa forma, assentou a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que, nesses casos, o inquérito pode ser conduzido pela Polícia Civil, pois, aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais (CC n. 144.919/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 22/6/2016, DJe 1º/7/2016).2. Por outro lado, a existência de concomitante inquérito promovido pela Polícia Militar, com o intuito de investigar a prática de suposta transgressão militar/crime militar, não existe o apontado constrangimento ilegal, pois, em caso de configuração de crime militar, nos termos do art. 102, "a", do Código de Processo Penal Militar, o feito será cindido. 3. Agravo regimental improvido” - (AgRg no RHC n. 122.680/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 3/3/2020, DJe de 9/3/2020). “Os crimes de homicídio imputados ao paciente foram todos praticados, em tese, contra vítimas civis, sem exceção, sendo pacífico o entendimento desta Corte no sentido de que os crimes previstos no art. 9º, do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da Justiça comum e, em consequência, da Polícia Civil a atribuição de investigar” - (HC 47.168/PR, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 16/02/2006, DJ 13/03/2006). “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO, EM TESE, PRATICADO POR POLICIAIS MILITARES, EM SERVIÇO, CONTRA CIVIL. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL CIVIL. DUPLICIDADE DE INQUÉRITOS (CIVIL E MILITAR). CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INEXISTÊNCIA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. COMPETE À JUSTIÇA COMUM ESTADUAL O PROCESSAMENTO E JULGAMENTO TANTO DO INQUÉRITO POLICIAL QUANTO DA AÇÃO PENAL DELE DERIVADA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.- Havendo nítidos indícios de que o homicídio foi cometido com dolo, é de se reconhecer a competência da Justiça comum estadual para o processamento e julgamento tanto do inquérito policial quanto da eventual ação penal dele derivada, não havendo que se falar, portanto, em trancamento do inquérito policial civil. Precedentes.- Ademais, não há que se falar em ilegalidade na manutenção concomitante do inquérito civil (82782/2018), para apurar a prática do crime doloso contra a vida, e no inquérito promovido pela Polícia Militar (419/2018), visando a investigar prática de suposta transgressão militar/crime militar pois, em caso de configuração de crime propriamente militar, o feito será cindido, nos termos do art. 102, "a", do Código de Processo Penal Militar.- Agravo regimental não provido” - (AgRg no RHC n. 112.726/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 26/5/2020, DJe de 2/6/2020). “AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO COLEGIADO. INOCORRÊNCIA. SUPOSTO CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA DE CIVIL PRATICADO POR POLICIAL MILITAR. ALEGADA ATUAÇÃO EM LEGÍTIMA DEFESA. INQUÉRITO POLICIAL MILITAR. ARQUIVAMENTO PELA JUSTIÇA CASTRENSE. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI PARA JULGAMENTO DA CAUSA. REMESSA À JUSTIÇA COMUM. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DESTA CORTE. AGRAVO DESPROVIDO.1. Inexiste ofensa ao princípio da colegialidade nas hipóteses em que a decisão monocrática foi proferida em obediência ao art. 932 do Código de Processo Civil - CPC e ao art. 3º do Código de Processo Penal - CPP, por se tratar de pedido em confronto com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ. Ademais, o julgamento colegiado do agravo regimental supre eventual vício da decisão agravada.2. A competência para o julgamento dos delitos de homicídios contra civis praticados por policiais militares em serviço, ainda que verificadas as excludentes de ilicitude de legítima defesa e do estrito cumprimento do dever legal, é da Justiça Comum, não cabendo ao Juízo Militar, de ofício, a determinação do arquivamento do inquérito penal militar.3. Agravo regimental desprovido” - (AgRg no AgRg no AREsp n. 2.264.343/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 20/10/2023). Dignas de nota são as palavras do Ministro Felix Fischer no citado Conflito de Competência nº 144.919-SP: “Observando-se a jurisprudência deste col. Superior Tribunal de Justiça, é notória a discrepância ocorrida em todo o país em se tratando de crimes dolosos contra a vida praticado por militar em face de civil, embora previsto na Constituição Federal a competência de forma clara, tem-se que alguns procedimentos inquisitoriais seguem sob administração da justiça castrense, que, inclusive, insiste em aplicar excludentes de ilicitude admitindo pedidos de arquivamento de autos, conforme ementa abaixo: (...)Ora, é necessário realizar uma interpretação harmônica entre a Constituição Federal e o Código de Processo Penal Militar para dirimir tais conflitos definitivamente. Na jurisprudência resta concretizado que o foro competente para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida praticado por militar em face de civil é da justiça comum. Desta forma, sendo da competência do juiz de direito o processamento e julgamento de tal natureza, não há dúvida que será também o juízo administrativo competente para conduzir o inquérito policial, ainda que com funções limitadas de verificar regularidades procedimentais, com raras exceções legais de decisões (prisão temporária, busca e apreensão, arquivamento, etc.).Tem-se como fundamento da conclusão supra a aplicabilidade da teoria dos poderes implícitos, importada do Direito Norte Americano, consagrada no caso (case) McCULLOCH v. MARYLAND, quando John Marshall, Presidente da Suprema Corte Americana, decidiu sobre os poderes dos estados federados frente ao governo federal, que em síntese define que do poder consagrado pela Constituição Federal emergem implicitamente demais poderes capazes de instrumentalizar o poder previsto constitucionalmente, teoria explorada de forma ímpar no voto do Ministro Celso de Mello no HC n. 87.610/SC. (...)Não há como permitir que inquéritos policiais que versam sobre crimes dolosos contra a vida praticado por militar em face de civil continuem sendo conduzidos pela Justiça Castrense, porque não é dela a competência constitucional de processar e julgar a ação penal. Imperioso anotar que, nesta fase, vigora o princípio do in dubio pro societate e não comporta valorações por juízes especializados, como se percebe com alguns arquivamentos de inquéritos policiais militares, uma vez que se trata de usurpação de possível competência do juízo da causa. Assim sendo, a regra é que a Justiça Comum conduza o Inquérito Policial administrativamente e, caso perceba claramente não se tratar de delito doloso contra a vida, remeterá o IP ao Juízo Militar o processo, e não o inverso”. Bastante difundido na teoria constitucional é o método hermenêutico-concretizador, segundo o qual o sentido da Constituição é buscado na conciliação entre o texto e a situação em que ele se aplica. Valho-me aqui da lição de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco: “A tarefa hermenêutica se faz a partir de um problema e com vistas a equacioná-lo, estando, porém, o aplicador vinculado ao texto constitucional. Para obter o sentido da norma, o intérprete parte de sua pré-compreensão do significado do enunciado, atuando sob a influência das suas circunstâncias históricas concretas, mas sem perder de vista o problema prático que demanda a sua atenção” (Mendes, Gilmar Ferreira; Gonet Branco, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 103). Nesse contexto, o cotejo entre o problema em exame (competência para a investigação dos crimes em questão) e o texto constitucional revela-nos que o foro especial do júri há de prevalecer sobre a competência da Justiça Militar. Seria, deveras, descuidado interpretar que, a despeito de transferir a competência jurisdicional dos referidos delitos à Justiça Comum, a Constituição deixou de entregar os poderes investigativos à Polícia Judiciária Civil. É correta, pois, a conclusão autoral de que a competência para apurar tais ilícitos não é da autoridade castrense. Inclusive, as Constituições Federal e Estadual assim determinam, respectivamente: “Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:(...) § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. “Art. 47. A Polícia Civil, dirigida por delegado de polícia, preferencialmente da classe mais elevada da carreira, é instituição permanente e essencial à função da Segurança Pública, com incumbência de exercer as funções de polícia judiciária e as apurações das infrações penais, exceto as militares.“ - Destaquei. Pertinente, por fim, a transcrição do seguinte julgado da 1ª Câmara Criminal desta Corte de Justiça: “CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. VERIFICAÇÃO DA POSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL. ENCAMINHAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL MILITAR PARA A VARA CRIMINAL COMPETENTE. COMPETÊNCIA DA VARA CRIMINAL DA COMARCA DE CLEVELÂNDIA. CONFLITO PROCEDENTE” - (TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0021757-87.2023.8.16.0013 [0006601-59.2023.8.16.0013/0] - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADORA LIDIA MATIKO MAEJIMA - J. 19.08.2023). Indispensável, nesse caminho, subtrair do âmbito de incidência dos dispositivos impugnados as investigações alusivas a crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis. Tem lugar, para tanto, a declaração de nulidade parcial, sem redução. A esse respeito, assim escreve Clever Vasconcelos: “Já a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto implica a situação em que o STF pode declarar que a mácula da inconstitucionalidade reside em determinada aplicação da lei, ou em dado sentido interpretativo” (Curso de direito constitucional. São Paulo: Thomson Reuter Brasil, 2024 – e-book).
Posto isso, voto pela procedência da demanda para o fim de declarar a nulidade parcial, sem redução de texto, dos itens 5 e 6 da Orientação nº 002/2022 da Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Paraná, de modo a excluir de seu campo de incidência as investigações relativas à prática de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares em desfavor de civis, garantindo a adequação dos dispositivos à regra prevista no § 4º do art. 125 da Constituição da República.
|